Sinos, trovões, cantilenas de ruído, feedback, loiça remexida e bombos embutidos em desenhos. Eis uma curta descrição daquilo que se encontra em Matéria Inédita, peça sonora que João Bento criou a partir d’O Limpo e o Sujo — espectáculo seminal da coreógrafa Vera Mantero, da qual foi autor da banda sonora — e que pode ser vista no Facebook, Instagram e YouTube da Culturgest, esta sexta-feira, às 21h00.
Desde 2015 que o artista visual e sonoro trabalha com Vera Mantero, mas já antes, desde 2001, criava som para palco paralelamente ao seu trabalho mais museológico, a partir de objetos sonoros, esculturas com vida, numa mistura entre composições analógicas e eletrónicas que tornam o seu trabalho algo profundamente particular. Para palco tem colaborações com alguns dos nomes mais significativos do panorama das artes performativas em Portugal como João Fiadeiro, Filipa Francisco, Elizabete Francisca, John Romão ou Paula Diogo, aos quais se juntam figuras internacionais de destaque como Ben. J Riepe e Pablo Fidalgo.
Matéria Inédita é uma criação que recicla horas e horas de gravações de ensaios — onde reinavam as improvisações — d’O Limpo e o Sujo, espectáculo que Vera Mantero estreou em 2016 (numa primeira equipa que incluía a própria, Elizabete Francisca e Volmir Cordeiro, este último entretanto substituído por Francisco Rolo para versões mais recentes) e no qual João Bento teve uma importância central. É aliás bastante óbvia a conclusão — isto para quem teve a oportunidade de ver alguma das récitas de O Limpo e o Sujo, claro — de que aquilo que João Bento fazia em cena lhe conferia uma condição de quarto intérprete, bastante próximo dos bailarinos, ainda que com diferentes armas.
“O Limpo e o Sujo partiu de uma frase coreográfica da Vera, encontrada através de improvisações. Além disso, tinha algumas premissas ligadas a crenças, ligadas a uma ideia de limpeza interior, uma espécie de ecologia do ‘eu’, isso já existia. Mas depois o que aconteceu foi uma coisa mais coreográfica, em que essa frase da Vera foi desmontada em várias secções e todos os intérpretes a aprenderam, inclusivamente eu, para trabalhar no som da mesma. A peça sonora que agora fiz para a Culturgest tem uma série de desenhos feitos na altura a partir dessa sequência de movimentos. E sim, o som foi mesmo um quarto corpo que estava ali sempre presente”, garante.
Nessa medida, aquilo que agora chega às plataformas digitais da Culturgest é de outra natureza, ainda que, como já se percebeu, mantenha a ideia de reciclagem, a preocupação ecológica interna tão importante para o trabalho de Vera Mantero, especialmente na criação em questão. A isto acresce os desenhos feitos durante o processo, em 2015, que também serviram inspirações para cena e que agora ajudam a pintar Matéria Inédita.
“É bastante diferente, tinha horas de gravações, de experiências de ensaios, e houve muita coisa que não usei. A ideia foi mesmo essa: ir buscar partes que não tinha usado, por aí, mesmo assim uso algumas coisas que só estão presentes nesta criação para marcar uma ligação, até porque me interessava ter essa narrativa de ligação à peça, mas fui buscar esses sons e utilizei-os de forma diferente, são mais extensos, são misturados de outra forma. E depois há a série de desenhos, que para mim são muito especiais, que foram feitos para apreender os movimentos e que são uma timeline que ocupava o estúdio quase todo em folhas A4 e que foi muito importante para os intérpretes visualizarem”, explica.
Esclareçamos então em que contexto se cruzaram os universos de Vera Mantero e de João Bento — mas para isso, estimado leitor, precisamos de recuar, não estranhe a viagem. João Bento nasceu no Fundão, na Beira Baixa, um sítio que na sua adolescência “não fervilhava propriamente de cultura”. Ou seja: Bento e os seus companheiros culturais tiveram de inventar essas condições que reduzissem o sentimento de pasmaceira e de interioridade. Foi baterista numa banda de hardcore e, na escola secundária, teve a sorte de ter professores do agrupamento de artes atentos às sensibilidades dos alunos: “Deram-nos acesso a um auditório onde trabalhámos três anos num projeto ligado à performance, à dança, à música. E isso foi muito produtivo, tínhamos a chave do auditório, íamos lá quando queríamos, fazíamos o que queríamos, foi uma altura muito rica”, conta.
O sentimento juvenil de isto-é-tudo-nosso concretizou-se naquele lugar. Ainda assim, aos 18 anos, João Bento só queria largar o Fundão. E foi aí que foi parar à ESAD — Escola Superior de Artes e Design, nas Caldas da Rainha, onde se formou em Artes Plásticas e Escultura: “Na altura até entrei em cerâmica, no primeiro ano, queria era sair do Fundão. Tinha um sonho de fazer arquitetura, em miúdo, mas as médias eram muito altas. Fui parar a cerâmica e realmente apercebi-me que as artes plásticas tinham uma possibilidade imensa, era uma coisa muito mais aberta. E é interessante como ainda hoje em dia a escultura está muito ligada à maneira como faço som. O espaço. É sempre uma experiência muito espacial, embora também faça coisas mais ligadas à escultura, como objetos sonoros, por exemplo. Mas considero que as artes plásticas não são um meio muito fácil de sobreviver a partir dele, e desde há muitos anos que trabalho muito mais para palco do que para museu”, admite.
Ainda sobre a experiência na ESAD, João Bento voltou a ser um tipo sortudo, uma vez que chegou à Universidade no ano em que esta inaugurou um novo edifício, caracterizado por ter um sem fim de novas tecnologias, sobretudo em 1998, quando ainda não era assim tão fácil ter acesso a materiais tecnológicos — materiais que podia alugar na escola. Tudo isso, mais o ambiente transdisciplinar que tanto caracteriza a ESAD, guiou João Bento por um jeito de fazer escultura que muito se conectava com o som, por oposição à imagem, que era o seu terreno mais comum à época, diz-nos: “Nessa altura até era muito ligado a essa matéria, mas comecei a questionar muito o processo de criação da imagem, como é capturada, de onde vem o mecanismo, o som das máquinas fotográficas, meio que houve uma rutura, comecei a desligar-me da imagem e a trabalhar muito com som.”
Daí até começar a apresentar o seu trabalho de forma regular, sobretudo em formato de som para palco, mas também em criações autónomas feitas em parceria com performers, e que sempre cruzavam disciplinas e abordagens, foi um pestanejar. E como é normal, filho pródigo que abandona a sua cidade, um dia tem de voltar em braços. A Câmara Municipal do Fundão já há muito que tinha mostrado interesse em apresentar o trabalho de João Bento, que por lá já tinha passado, com pequenas atividades pontuais, sobretudo ligadas ao cinema independente. Mas em 2014, através do programador cultural do município Miguel Rainha, a coisa efetivou-se de forma mais larga. “Inicialmente, o convite que me foi feito era para criar uma exposição individual, era essa a ideia embrionária. E depois, em conversa com o programador, a ideia estendeu-se e transformou-se num programa ao longo de um ano, porque me interessava também envolver a comunidade estudante, voltar a esse auditório onde tinha estado em jovem. Fizemos lá um workshop e ainda levei, durante um fim-de-semana, propostas onde faço som, ou seja, não só propostas em que faço o desenho de som, como também propostas minhas para palco, uma série de coisas”, enquadra.
Falamos de Passagem#1, uma série de momentos esticados ao longo do ano de 2014, em que Bento tanto serviu instalações — de onde destacamos uma instalação em que uma ventoinha, colada a um piano despido com fita o faz soar tocar —, como deu workshops. No fundo, agitou o Fundão. Antes que o estimado leitor pense que nos perdemos no caminho: foi aqui que conheceu Vera Mantero. Isto porque em diálogo com Miguel Rainha pensaram que seria interessante ter um Passagem#2, convidar um artista que permanecesse, durante um ano, em diálogo com a cidade beirã. O nome de Vera Mantero surgiu de imediato: “Quando acabou o meu programa, fizemos uma passagem de testemunho para a Vera, apresentei o meu livro e depois fizemos uma improvisação, eu toquei Theremin e a Vera fez movimento, uma coisa não muito trabalhada nem pensada, mas foi super bonito. E isso levou a que até hoje colaboremos”, admite.
Desse programa no Fundão, nasceu também o livro Passagem, uma edição que detalha todo o processo e onde podemos ver fotografias de João Bento a captar som, todo equipado, no meio da natureza, fotografias bonitas que serviram de desculpa para perguntar que tipo de equipamento utiliza o artista normalmente: “Uma delas, que é assim primordial, é o meu sistema de captação de som, que é um bom sistema MS, que captura centro e lados, é quase como uma lente, posso ir buscar sons só de lado, só de frente. Mas também uso muita matéria analógica, para lá de vários microfones diferentes, como microfones de contacto, hidrofones, microfones direcionados para coisas específicas que não são só a voz ou o som ambiente. É claro que não são só materiais analógicos, há uma grande mistura, com elementos eletrónicos.”
No mesmo livro sugere-se um epíteto ideal para João Bento: o caçador de sons. E, de facto, o próprio admite que é algo que encaixa bem: “É muito curioso, sim. Tenho feito capturas na natureza e sempre que as faço fico a pensar que é algo que no futuro adorava fazer mais. Em alguns momentos parece mesmo uma cena de caça, é preciso fazer silêncio, por vezes é preciso ter o material de captação coberto para a fauna não se assustar e há mesmo técnicas de captação de som na natureza que fazem lembrar muito uma perseguição. E no futuro gostava de investir mais nisso, se calhar até de uma forma mais ecológica do que artística. Tenho dois irmãos que vivem em Maputo e estive em sítios incríveis a capturar sons, estive em sítios com medo, deixava o gravador lá fora e vinha para dentro do quarto, são sons que não estamos habituado a ouvir. Mas é incrível essa coisa de aumentar os sons à nossa volta.”
A analogia aqui estabelecida diz respeito a uma caça inofensiva, que não magoa animais. Se porventura, daqui a uns anos, estivermos no meio do mato e encontrarmos um sujeito com uma perche de 20 metros e 40 proteções contra o vento, muito provavelmente será João Bento, o caçador de sons que não está ali à procura de javalis. Se não o encontrarem, talvez seja por isto: “Quem sabe se na minha reforma não serei bailarino”.