Sou um felizardo. Foi a primeira vez que me convidaram a ouvir um disco antes deste ser oficialmente lançado. Certo, já todos o fizemos antes, mas sem autorização do músico. Desta vez alguém que não um pirata dos torrents decidiu que eu era merecedor do privilégio. Portanto, não sendo crítico musical de profissão, permitam-me que comece por agradecer ao Observador. É que calhou-me em sorte ouvir um trabalho merecedor de hipérboles como “disco do ano”, “cum caraças, quem é este tipo?”, ou, fazendo minhas as palavras do Valete, “das coisas mais bonitas que o hip-hop português produziu”.
Sei que estou a abusar da minha posição privilegiada e quase nenhum dos leitores teve oportunidade de ouvir o disco, pelo que terão de confiar na minha opinião; isso ou concordar com o Valete, o que talvez vos dê mais street cred. Se isso não for suficiente, comprem um bilhete para o evento de apresentação de TAOSD – The Art of Slowing Down — dia 17 no Estúdio Timeout, e tirem as vossas próprias conclusões. Nesse mesmo dia, o disco estará disponível.
The Art of Slowing Down, empreitada que Slow J iniciou há cerca de três anos e agora se prepara para mostrar ao mundo, é uma coisa de um talento absolutamente fulgurante, imbuída de graves que rebentam com os tímpanos e arrepiam caminho até ao coração do ouvinte. Mas é muito mais do que isso: é a autobiografia muito bem escrita, é o hino à educação auditiva nas melhores escolas, é português, americano e de Cabo Verde, é equilibrado como poucos discos na corda de slackline percorrida pelo hip-hop português. É uma sequência imparável de malhas que expandem e comprimem o ouvido, da pista pontuada por bangers à introspecção dos headphones.
[ao vivo na série “No Ar”, da RTP/Antena 3:]
Ainda ontem o New York Times publicou a excelente colecção de ensaios “25 Songs That Tell Us Where Music Is Going”. Às tantas dei por mim a ler sobre o Future ao som do Slow J e só me ocorria que o futuro do hip-hop português está aqui. Enquanto pensava no quão cliché essa afirmação soava, aproveitei para conferir o resultado final da eleição promovida pelo Ambrosia For Heads: os fãs do site elegeram — muito justamente — o DJ Premier como melhor produtor hip-hop de todos os tempos. De repente imaginei um cruzamento em que alguns veteranos da cena portuguesa, pessoas como Sam the Kid, Boss AC, Valete ou muitos outros que fizeram do género em Portugal um fenómeno incontornável e musicalmente respeitado, se cruzam com miúdos vindos da esquerda (ou left-field) como este Slow J e lhe cedem a passagem. A seguir vão todos para casa tentar fazer melhor. Esta natureza competitiva não é imaginada: está à vista para todos os que acompanham a história do rap, e tem cada vez mais páginas escritas em Portugal.
Bom, acho que já perceberam a ideia. Estou fã do Slow J e do seu novo trabalho, por isso decidi partilhar esta alegria convosco da melhor forma que sei: com gifs de reacção a cada uma das 15 faixas.
“Intro”
O disco arranca com as palavras de José Mujica no documentário “Human” (2015), uma colecção emocionante de testemunhos sobre o que é ser-se humano. É um hino à tolerância, à perseverança diante da adversidade, e à profundidade de histórias simples contadas por quem as viveu. É aquele tipo de conteúdo que aparece no nosso feed de Facebook e nos faz, para citar a internet, ter esperança na humanidade. É por isso um início adequado para este disco e merece, muito justamente, um gif de Marine le Pen a franzir a sobrancelha.
“Arte”
Quando visita a repartição das finanças, Slow J apresenta-se como João Batista Coelho, nome que dificilmente nos levaria a imaginar um rapper multi-facetado. Parece nome de pessoa convidada para bienais, mostras, instalações ou até mesmo trienais. João Batista Coelho parece assunto sério, algo que, curiosamente, este disco mostra ser desde o primeiro momento. Arte, o tema de abertura, arranca com uma guitarra meio ecoante que acompanha as palavras de Slow J. Diz-nos que “queria ser como os grandes cantores”, a guitarra evapora-se, o beat pede licença e João Batista Coelho pergunta ironicamente “ma nigga, diz-me isto é arte”. A pergunta parece dirigida ao ouvinte, por isso eu respondo: é arte, e Slow J sabe isso melhor do que ninguém. Foi para isto que se inventou o bravado, mas até nisso Slow J evita esticar-se. O humble brag só lhe fica bem. A malha vai por ali fora e Slow J vai dançando entre a voz cantada e falada que já lhe garantiu duas mãos cheias de fãs nos circuito do rap português. Ainda não sabemos se temos disco, mas temos uma entrada de rompante que faria Don Johnson tirar os óculos pleno de perplexidade.
“Casa”
Será isto um semba à maneira de Slow J? É dançável, tem guitarras com assento na Cimeira dos PALOP e Slow J a presidir à reunião magna. “Esse é o meu fado, esse é o meu semba”, canta, rematando com um “p’ra quê querer complicar / casa é o mundo inteiro” uma espécie de resposta descomplexada a fãs que dirão que o disco devia ser mais assim ou menos assado, ou a pessoas que não sabem se deviam dançar ao som disto. Avance sem medos.
“Beijos (interlúdio)”
É 1 minuto de Slow J a declarar o seu amor: “Quem já viveu dos teus beijos / Não duvida mais de uma força maior / Quem já viveu dos teus beijos / Não suplica mais por um mundo melhor”. Não sei se devemos continuar a suplicar por um mundo melhor, mas o disco vai continuar a melhorar. Aguarde.
“Sonhei para dentro”
Imaginem. Gisela João, acompanhada de uma guitarra portuguesa vinda dos confins da alma, a cantar:
“eu vivo em cada beco
em cada apartamento
em vivo em cada escada
eu sonhei para dentro
(…) tudo o que eu trago no peito
ma nigga eu tou no grind vinte e quatro sete
à procura da vibe vinte e quatro sete”
Por momentos pareceu uma hipótese plausível, mais ou menos até a “ma nigga”, o ouvinte a quem Slow J se vai dirigindo ao longo deste portento de disco. Sonhar para dentro combina fado, trap e uma escrita inspirada sobre o que move Slow J: imaginação, um sentido estético imaculado e muito trabalho. Cheguei ao fim a pensar naquele cliché: encontra um trabalho de que gostes e não terás de trabalhar um único dia na vida. Não parecendo, dá trabalho. Isso e é uma das melhores faixas do disco.
“Às vezes” (ft Nerve)
Já que falamos de arte, esta é um Miró na forma. O exercício mais minimalista do disco, mas nem por isso menos rico. Sem darmos por isso, especialmente se não conhecermos o ecletismo anteriormente demonstrado por Slow J, damos por nós numa teia electrónica que acompanha a preceito o tom mais confessional do disco: “às vezes dói mas eu escondo”. Acontece mais vezes, mas talvez aqui seja o momento em que melhor reconhecemos Slow J: um miúdo nascido em Portugal e cheio de mundo, musicalmente plantado numa encruzilhada entre o poeta fingidor e a catarse sonora de Frank Ocean. Silêncio que isto é outro fado.
“Comida”
Há muitos ganchos neste disco e estão todos no sítio certo para nos fazer prestar atenção. Isso traduz-se num grande equilíbrio entre faixas. Umas vezes é o beat que se cola à pele, noutras é a conjugação adequada de sujeito e predicado. Comida é Slow J no seu registo mais verboso. Atenção: isto não é alta literatura nem tinha que ser.
“Eu ‘tou tão longe da verdade pura
dura
à procura da sanidade do outro lado da loucura
diz o monge que a verdade cura
jura”
“Isto não é comida bróda
mas espero que te alimente
a fome desta alma que aguça o meu pensamento
abrupta voz da calma nunca dorme, nunca mente
passado no alimento ao meu presente,
eu paro o tempo, para não torrar a mente”
É eloquência na dose que as construções rítmicas de Slow J pedem: imagens vivas, boas rimas internas, e um sentido de melodia na pronunciação que eu não me lembro de ter ouvido muitas vezes em rappers portugueses.
“Biza”
O desfile de produções imaculadas continua. Um beat saído dos anos 90 pontua histórias da vida de Slow J, que nos vai explicando a sua ascensão entre colchas compradas na loja dos trezentos ou o pai “que bazou”. Mais fantasmas de quem sabe para onde vai, mas não se esquece de onde veio, tudo elegantemente acompanhado por um trompete que dá o toque certo de melancolia e faz o disco de Slow J construir mais pontes do que rotundas entre géneros, sempre com a desenvoltura de quem faz isto há muito tempo, ou está há muito tempo a preparar-se.
“Serenata”
Não fiquei muito fã da versão de “Menina estás à janela”, mas a coisa foi ganhando uma certa ginga na passagem para “Serenata”. Aqui funciona lindamente, lembrando que “no peito dos desafinados também bate um coração”.
“Último Empregado (interlúdio)”
Ninguém lhe chama isso no rap, mas a mobilidade social é um tema importante e este interlúdio é sobre isso. Slow J explica no seu elevator pitch: “último empregado da minha família / sangue do meu sangue veio p’a encher a barriga”. É raro nos dias de hoje alguém falar de empreendedorismo sem dizer a palavra startup. Só por isso Slow J merece pontos extra.
“Pagar as Contas”
Esta já conhecem. É um dos singles. Mais uma malha inspirada em trap que não nos faz escorregar em azeite. Neste caso, Slow J lembra que a vida de músico em Portugal não está fácil – ou a de publicitário com dois filhos para criar, mas chega de falar sobre mim. Ainda há pouco Slow J dizia que seria o último empregado da família e estes versos são um bom regresso à realidade. Os versos são um hino da classe média e estão para a “Sexta-Feira” de Boss AC como Dostoievski para Pedro Chagas Freitas. Diz assim:
“Pagar as contas
Saldar as contas
Esquecer as contas
Foder as contas”
Estes versos são raptados e depois cantados ao longo da faixa. Não sei se estas contas são reais ou figuras, mas cheguei ao fim com vontade de rasgar aquele contrato de crédito ao consumo, ou votar em alguém assim.
“Vida Boa”
Outro dos singles. Percebe-se, é uma das canções mais orelhudas. Um conselho: se não decorar mais nenhum verso deste disco, fixe pelo menos estes. Vão dar-lhe muito jeito num qualquer festival de verão ou um dos muitos palcos que Slow J irá pisar este ano, e por bons motivos:
“Não quero uma boa vida / eu quero uma vida boa / nada do que a minha sina diz foi escrito à toa”
“Sado”
R&B competente para desfrutar na companhia certa, eu diria que encostadinho a outro corpo. O que acontece depois é consigo.
“P’ra Ti”
Voz e guitarra num interlúdio / dedicatória sentida a um amigo. Será partilhada, não no Facebook mas no messenger ou no whatsapp ou num quarto, milhares de vezes entre adolescentes que encontraram aqui um abrigo qualquer. Também é para isto que a música serve.
“Mun’Dança”
O mantra com que chegamos ao fim de The Art of Slowing Down — o verso “Depois desta vida vai vir a outra” repetido durante 3 minutos que não cansam por cima de um trap africanizado algures na órbita terrestre – é uma amálgama sonora que parece saída do catálogo de explorações sonoras de Branko, o produtor dos Buraka Som Sistema. Desculpem, o que eu queria mesmo dizer é que é do caraças. O disco termina como começou: a surpreender-nos e a prometer mais vida para além deste grande disco de estreia.
AVALIAÇÃO FINAL
Leram até aqui? Fantástico. Acho que já perceberam. De 0 a 10, é um 11.
Leram bem. Ainda no outro dia fez 20 anos que o Biggie morreu e não precisei de ouvir o Ready to Die para o homenagear. Paz à sua alma. Há muita gente nova a levar a coisa para a frente e a celebrar essa saudade dando novos mundos aos nossos ouvidos. Como diz o presidente José Mujica no seu testemunho em “Human”, que ouvimos na faixa inicial de The Art of Slowing Down, “O homem é o único animal que tropeça vinte vezes na mesma pedra. Cada geração aprende com aquilo que lhe calha viver, não com o que viveram os outros”. Relembramos as palavras do próprio Slow J: nada do que a sua sina diz foi escrito à toa.
Vasco Mendonça é publicitário e co-CEO da associação recreativa Um Azar do Kralj