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Era quase impossível imaginar que o ouviríamos assim, como o ouvimos em “Feel Away” — uma canção que fez na companhia de James Blake e dos Mount Kimbie, que saiu há quase meio ano mas que é um dos temas mais importantes e mais emotivos do seu novo disco, Tyron, acabado de sair.
Quando Slowthai lançou em setembro do ano passado esta “Feel Away”, prometendo desde logo que faria parte do seu segundo álbum, a internet não se dividiu entre a surpresa e o maravilhamento. Em vez disso, aliou as duas sensações na reação. A revista musical New Musical Express chamou-lhe “pungente”, os fãs escreviam nas caixas de comentários que sempre souberam que o seu ídolo era diferente, que era capaz de os surpreender. Mas assim?
De repente ouvíamos Tyron Frampton, o nome que (já não) se esconde atrás do nome artístico Slowthai, a puxar para público o seu lado emocional.
Para se perceber a surpresa, é preciso recuar aos últimos anos de Tyron, o rapper que se apresentou ao mundo como um rebelde endiabrado, semi-nu em concertos, enérgico para não dizer incendiário. Era o rapper que carregava na tensão e na agressividade no tom das músicas, o miúdo de ar alucinado — para os padrões dos humanos “normais”, bem-comportados, de ar arrumado — que escarafunchava na raiva, nas desilusões, na sensação de abandono dos jovens e dos jovens que cresceram remendados e sentindo-se incompreendidos pela “elite”, pelos “ricos”, pelos mais velhos, pelas convenções sociais. O tipo que fazia de cada concerto um desvario coletivo.
Quem ouvisse Slowthai até chegar aqui, e quem o ouvisse nesse aclamado álbum de estreia que foi Nothing Great About Britain (2019), dificilmente esperava isto, dificilmente o via como um escritor de canções de sensibilidade pop, como alguém capaz de misturar o rap com o canto numa espécie de canção-Xanax, capaz de fazer uma cantiga que pedisse a emoção dolente de James Blake no refrão.
E no entanto, a canção chegou — um tiro absolutamente certeiro que o mostra num registo que até aqui pouco explorara. O novo disco, Tyron, não é inteiramente assim: continua lá, na primeira metade (as primeiras sete canções), o Slowthai enérgico, o Slowthai de dentes afastados que soa a alguém capaz de iniciar uma revolução a qualquer momento, que rappa a uma velocidade estonteante. Ainda é o agitador endiabrado das batidas e das rimas que parece adaptar os universos Trainspotting e Laranja Mecânica — caóticos, acelerados, alucinados q.b., movidos a speeds — ao hip-hop. Agora menos ancorado no grime, mas ainda com uma dose desse género britânico do hip-hop, com uns pós de drill à mistura, com um trap americano “pesado”. Mas está lá também, na segunda metade do disco, um Slowthai novo, um Slowthai de canções, a permitir que pedaços musicais mais lentos e emocionais entrem na sua música e no seu rap.
Já ouvíramos deles canções mais cantadas e menos vitaminadas (“Crack” do disco anterior, por exemplo) mas não esperávamos em 2021 ser confrontados com Tyron a dizer coisas como “sempre quis fazer canções que façam as pessoas chorar” (revista The Face) ou “sou muito emotivo, bastante sensível” e “estou num momento diferente da minha vida em que não estou tão zangado, pelo que me é mais fácil escrever canções mais soft” (GQ). Afinal, estamos a falar do rapaz que apareceu, com um sorriso travesso e provocatório, a segurar uma réplica da cabeça de Boris Johnson na mão; do tipo que em Nothing Great about Britan cuspia sem clemência na direção da rainha: “I will treat you with the utmost respect only if you respect me a little bit Elizabeth, you cunt”. Slowthai cresceu — e cresceu porque sobreviveu.
i’ll treat you with the upmost respect only if you respect me a little bit elizabeth… YOU CUNT!!! FUCK YOU AND FUCK BORIS
— TYRON (@slowthai) August 28, 2019
O puto de Northampton cresceu aos trambolhões (e quase virou dealer)
Slowthai apareceu na indústria musical como uma espécie de ET, o que dá logo uma história apreciável e romantizável a um anti-herói. Desde logo, não cresceu em Londres nem em Manchester nem em nenhuma área sofisticada e culturalmente na moda do Reino Unido. Cresceu em Northampton, uma área de onde praticamente não saíram artistas de sucesso.
Northampton, situada a 97 quilómetros de Londres, nunca foi conhecida por exportar músicos, bandas ou movimentos culturais — foi e é conhecida por exportar sapatos, tendo no calçado a sua grande indústria dinamizadora. Contam-se pelos dedos das mãos os músicos com notoriedade dali saídos e os Bauhaus, de Peter Murphy, lideram o grupo.
Na canção “Northampton Child”, o rapaz que ficou conhecido como Slowthai por se chamar Tyron (o “Thai” é um trocadilho com “Ty”) e por falar de forma lenta e meio balbuciante contava um pouco da sua história, hoje amplamente conhecida.
Nasceu filho de uma mãe com origem nos Barbados e que o teve aos 16 anos e de um pai inglês que deixou a mãe e o rapaz quando “Ty” tinha três anos (a mãe tinha então 19). A infância e a adolescência foram passadas aos trambolhões, com mudanças de morada regulares — chegou a viver em casa de amigos da mãe e na casa de avós, a dormir com a progenitora e a irmã à molhada na mesma divisão.
Com o pai ausente, com liberdade de se mover pelas ruas de Northampton fruto das horas intermináveis que a mãe passava a trabalhar, Tyron parecia ter tudo para se encaminhar para um futuro sombrio: os atos ilícitos rondavam-no e tentavam-no como meio de subsistência, o prognóstico do próprio é que se tornaria provavelmente “dealer” e acabaria na prisão, a morte do irmão mais novo (de um ano) quando tinha 8 ainda veio tornar tudo mais negro e a existência de familiares com problemas de droga e as relações abusivas em que a mãe esteve envolvida compunham o cenário.
Tyron não conta bem o que é que fez na adolescência, mas diz que fazia o que não podia fazer e dá a entender que o estilo de vida era o suficiente para irritar a mãe e a irmã — e suficiente para ter hoje tatuadas no corpo as palavras “sorry mom” (desculpa mãe).
A música e o hip-hop apareceram cedo. Fruto da idade da mãe, apanhou o gosto pelo “garage”, pelo “jungle”, pela música de dança, pelo trip-hop dos Portishead e pelo R&B. O hip-hop foi começando a espalhar-se como gosto partilhado com os amigos mas o interesse explodiu quando viu o filme “8 Mile” e o “underdog” Eminem a surpreender os manda-chuvas do bairro com as suas rimas estonteantes — como contou à revista GQ, ficou com a percepção que “se ele consegue, eu também consigo”. Mais tarde vieram os The Streets de Mike Skinner, veio o disco Boy In Da Corner de Dizzee Rascal que a mãe ouvia compulsivamente e repetidamente, a ponto do rapaz já não o suportar.
A passagem pela faculdade, nomeadamente pelo curso de tecnologia musical da Universidade de Northampton, ajudou. Foi aí, conta Tyron a quem o quiser ouvir, que conheceu miúdos do indie-rock e punks que o ajudaram a sentir-se confortável com ser esquizóide, com não ter um aspecto “normal” e “arrumado”, com quem partilhou novos gostos musicais — apareceram os Radiohead, os Arctic Monkeys, os Gorillaz e os Blur de Damon Albarn, até Eliott Smith.
Trocando o futuro de “dealer” pelo futuro de rapper e cantor, Slowthai, que tem hoje 26 anos, ainda teve uma série de trabalhos temporários pelo meio. Mas em 2017 lançava o seu primeiro EP, ou mini-álbum, e daí em diante foi apurando a sua música até entrar nas bocas do mundo em 2019 com o disco de estreia Nothing Great About Britain.
O primeiro álbum era um disco pacifista mas zangado, de “comentário social” como o próprio rapper o descreveu. Começar o disco com a afirmação do título, que dava nome à primeira canção e onde Slowthai se rebelava contra o meio em que cresceu, dava o mote para as canções seguintes: uma mistura entre a energia rockeira e punk e o rap agressivo, o sotaque britânico e a estética britânica do hip-hop (o grime) a contaminar o rap e o drill (outro sub-género das rimas e batidas mas nascido nos EUA, em Chicago), a tensão e o vigor da juventude a fazerem de Slowthai o novo anti-herói preferido de muita miudagem britânica e de críticos musicais um pouco por todo o lado.
Neste rap britânico de rua e de margem estava uma estética sonora diferente de muitos dos seus pares, que garantia a Slowthai uma originalidade no som e no hip-hop que o tornou um nome muito comentado. Era fácil perceber que a sua música era diferente: aqui estava um puto rufia a emancipar-se das ruas mal frequentadas e a disparar contra elas, a pôr em ponto de mira as estruturas de poder com as quais não pôde contar, a levar o espírito rude e sabido do pub para o interior do rap.
O lado bem-sucedido do disco, que o pôs a fazer digressões e a dar concertos baratos (chegou a cobrar cinco libras por bilhete) mas atolados de gente, cheios de suor e mosh pit, é a cara da história de Slowthai — mas também há a coroa.
Desde os primeiros passos mais sérios na música que o consumo de drogas era um problema para Tyron. Ao jornal Evening Standard chegou a recordar um período de 2017 em que “estava viciado em Xanax” e achou que estava a ficar louco, em que se refugiou em Portugal e “não conseguia dormir” por estar “tão habituado a simplesmente ‘desmaiar’ e assim”. Mas depois de 2019 e do álbum aclamado de estreia, depois de experimentar a vida de estrada tão propensa a estimular vícios e adições, tudo se complicou. E um episódio em particular fez estilhaçar por momentos a imagem que cultivava de rapaz esgrouviado mas com bom fundo e alerta para problemas sociais.
Há um ano, tudo desabou. “Pensei em matar-me”
É tentador ver no lado mais introspetivo, apaziguado e reflexivo deste novo disco de Slwothai uma reação ao que aconteceu há um ano na cerimónia de entrega dos prémios musicais da revista New Musical Express. Se o que se passou não teve um efeito catalisador direto para o álbum, inspirando-o daí em diante a escrever canções com aquela noite em mente — ainda que haja uma, “Cancelled”, que é filha dessa polémica –, pelo menos fez o rapper voltar-se para dentro, pensar sobre si, mudar de vida. E sem isso seria difícil existir Tyron.
O mais caricato é que Tyron fumou em palco, atirou um microfone para a plateia, desceu para confrontar um espectador, não fosse ter sido travado pelo segurança e tinha-se engalfinhado à pancada no meio do público e mesmo assim esse não foi o momento que mais complicações lhe trouxe naquela noite. Uma troca de palavras com a apresentadora e humorista Katherine Ryan deu para o torto: armado em macho-alfa, o rapper e cantor excedeu-se e começou a provocar a mulher.
O episódio deu falatório e mesmo que Katherine Ryan viesse mais tarde dizer que não ficara incomodada com o momento e que o entendera como humorístico, mesmo que o rapper afiançasse que tudo começara “como uma piada”, a internet decidira: Slowthai esticara-se, assediara a apresentadora e fizera-a reagir humoristicamente por desconforto com o assédio.
A conclusão era tão legítima que o rapper acabou a pedir “desculpas sem reservas” pelo sucedido. E acrescentava que, embora sem intenção, a troca de galhardetes atingira um ponto de “ações vergonhosas” da sua parte. Estava o caldo entornado para um artista cuja canção mais ouvida (de longe) no Youtube chama-se “Ladies”.
(2/2) katherine, you are a master at your craft and next time i’ll take my seat and leave the comedy to you. to any woman or man who saw a reflection of situations they’ve been in in those videos, i am sorry. i promise to do better. let’s talk here.
— TYRON (@slowthai) February 13, 2020
I knew you were joking and congratulations on your very award-worthy album! I hope you know that a bad day on social media passes so quickly. Everything will be better tomorrow. Xx
— Katherine Ryan (@Kathbum) February 13, 2020
Talvez vendo ainda no mundo um lugar ocupado por bons e maus, cidadãos correctos e malfeitores, feministas de todas as horas e machistas nojentos, muitos utilizadores das redes sociais decidiram: o comportamento de Slowthai naquela noite não era apenas reprovável, censurável e errado, era um sinal claro de que o rapper era um crápula, um machista, um hipócrita que defende uma coisa e faz outra, alguém que não merece a nossa atenção como ouvintes.
Aquele momento, contudo, também tem um contexto — que não o desculpa, simplesmente ajuda a enquadrá-lo e talvez aconselhe prudência nas análises de caráter mais impiedosas. Naquela noite Slowthai estava alcoolizado e não estava alcoolizado apenas por ser uma noite de festa, por estar feliz, estava alcoolizado porque estava um caco.
À revista The Face, o rapper disse: “Estava seriamente em baixo, a odiar tudo, a sentir-me mal, fosse por beber demasiado ou consumir demasiadas drogas. Sentia-me uma merda, simplesmente — é a melhor forma de pôr a coisa. Sentia-me como um pedaço de merda. Todos temos dias maus e dias bons mas eu sentia-me como se estivesse num dia mau que não acabava”. Ao jornal Evening Standard, dizia ter uma “personalidade aditiva” e ser um tipo que “toma um pouco disto e um pouco daquilo” mas que naquela fase “chegou a um ponto em que não era só um bocadinho disto e daquilo, eram meses de um pouco disto e um pouco daquilo”.
Naquela época, o uísque Jameson era para o rapper “como água” (disse-o ao The Guardian). Os shots faziam parte do menu de pequeno almoço. Estar em farrapos não justifica o episódio, até porque o próprio assumiu que há um “tipo de humor” que já não faz sentido e que aquilo fez Tyron perceber que transportava coisas dos tempos em que cresceu nas quais tinha de refletir, que tinha de mudar. Mas volvido um ano, a 26 de janeiro deste ano de 2021, Slowthai assumia no Twitter: “Há um ano, por esta altura, pensei em matar-me. Sinto-me muito grato por ainda estar aqui”.
This time last year I thought bout killing myself, I’m so thankful I’m still here.
— TYRON (@slowthai) January 26, 2021
Largar o álcool e ficar sóbrio foi uma das primeiras decisões tomadas a seguir ao incidente nos prémios NME. Hoje a bebida ficou de parte e o consumo de drogas foi reduzido, ficando restrito à erva (que diz que o ajuda a relaxar) e a um consumo que diz ser “moderado” de cogumelos alucinógenos (“não sou um cientista portanto não posso dizer que seja uma cura para a depressão, mas sei que definitivamente ajudou-me”).
Enquanto vai crescendo — tem agora 26 anos –, Slowthai vai mudando. A 12 de dezembro, dizia à revista GQ: “Sou um tipo emotivo, pá! Não costumava ser, costumava estar zangado como a porra”. À revista Rolling Stone, dizia ainda mais recentemente: “Adoro fazer a música pesada que vai deixar as pessoas zangadas e loucas [risos], mas provavelmente até me enquadro melhor a fazer música que não é tão zangada”.
A energia passou a ser conciliada com as “soft songs”, a agitação passou a conviver com a emoção e a procura de comoção e Slowthai não quer só incendiar ânimos, também quer “falar de questões reais e presentes da minha vida”. Tyron é por isso um disco de dualidades: na primeira metade ouvimos o puto endiabrado e até gabarolas que conhecemos — que ele nos deu a conhecer! –, na segunda o rapaz que se está a tornar adulto, que também tem momentos de intimidade e acalmia e que nos quer mostrar isso.
O álbum esteve para não ser assim. Não fosse a pandemia, talvez o disco fosse outro. Falar sobre o que lhe passa pela cabeça, expor os seus pensamentos mais íntimos, pareceu ao rapper apropriado numa altura em que a reclusão para travar a Covid-19 isolou as pessoas, fê-las estar mais consigo e com as suas ideias.
Tyron diz que está “a ficar mais confortável com saber que não vou soar àquilo a que soam o Future [rapper e um dos reis do trap] ou o Jay-Z” (Rolling Stone), que é “estranho como a porra” e quer que a música o evidencie, que não quer ser só mais um rapper porque isso seria chato e também não quer fazer só um estilo de música porque “ninguém quereria comer sushi para o resto da vida quando há tanta comida!” (Evening Standard). Vai até mais longe e diz que preferia ser como o camaleónico David Bowie ou o enigmático Daniel Johnston do que ser um rapper polido, previsível, a explorar sempre o mesmo universo musical — “posso fazer punk, posso fazer indie, enquanto estiver lá a minha voz será sempre o meu som”. Até música de dança mais convencional já fez.
Do rap pirotécnico-punk às confissões e feridas expostas
O álbum arranca com “Smoke”, prenúncio de pirotecnica tal a rapidez e a agressividade com que Slowthai dispara palavras e versos, com que — com batidas graves e uma toada épica por trás — rima “I always run wild, couldn’t find my tribe”, com que atira com pose de dono disto tudo:
I used to rock Lyle & Scott, violent punk from the Eastern side
Doublin’ ’til the day I die, keep doublin’, tryna multiply
Money to me like shit for a fly
So I stay gettin’ P ’cause the world is mine
É porém nas duas faixas seguintes, “Cancelled” e “Mazza”, que a fasquia dispara lá para cima, que Slowthai mostra que neste registo enérgico não está para aqui a brincar, que fez o disco com vontade de nos pôr a invadir a Escócia.
A primeira, com Skepta, tem um beat viciante, hipnótico e repetitivo durante os primeiros versos do rei do hip-hop gabarolas (sem desprimor) no Reino Unido — que lembra aqui, entre outras coisas, que teve miúdas em Glastonbury a agarrá-lo (uau!) mas que também cita Alejandro Jodorowsky –, até Slowthai entrar com versos mortíferos:
I ain’t an actor, fuck the Oscars, main stage in my boxers (Brr)
Thousand grams, fuck the GRAMMYs (Yeah), same-same for the shottahs (Yeah)
As palavras aqui, porém, não podem ser dissociadas da batida — e na volta sem o acompanhamento musical seriam até capazes de embaraçar os autores. O que torna “Cancelled” ou “Mazza”, na qual Slowthai divide o microfone com A$AP Rocky, droga para os ouvidos é a sensação de perigo, de caos, de rebelião que a maneira de entoar as palavras (o flow) e as batidas graves, espécie de banda sonora de filme de terror alimentada a MD, alimentam. A forma como as palavras se atropelam, a batida e no caso do Slowthai um desfasamento ligeiro entre a batida e a palavra (que não se ouve quando seria previsível ouvir-se, parece dita uma velocidade abaixo do normal, o que lhe dá um charme muito distintivo), tudo isto conflui para uma espécie de alucinação rítmica, o punk importado para o presente, uma espécie de injeção-Crank musical.
É nos dois temas em que Slowthai divide protagonismo com dois batidos que as canções mais surpreendem mas em todas as outras (como “Vex”) o enfant terrible mantém o nível elevado, o ouvinte agarrado aos graves, à percussão pesada, aos ruídos meio esquizóides que alimentam a impressão que aqui a qualquer segundo alguma coisa inesperada e louca pode acontecer.
Chega-se a “i tried”, a oitava faixa, e Slowthai começa a abrandar na agressividade, a desacelerar o ritmo frenético, a trazer canto e até uma batida meio lo-fi para mudar o tom da conversa. E ao fazê-lo evita que o disco caia numa toada de monotonia e agressividade excessiva, procura caminhos novos na melodia e nas palavras para mostrar que cada pessoa tem dois lados, que ninguém é bem o que parece. Relativize-se as redes sociais, a imagem “pública” que se tem dos outros — para começar, que temos dele –, ninguém é só o que parece.
Em “Focus”, ouvimo-lo dizer “I just gotta be better”, arrepiamo-nos com os versos “life never precious and I always had a death wish” e “I should’ve been in prison”, apercebemo-nos de que entram em campo as confissões (“I miss my brothers, I miss my fam’ as well”).
A décima faixa, “Terms”, traz mais açúcar ao menú com aquele canto meio R&B de Dominic Fike e Denzel Curry, que Slowthai contrabalança com um regresso breve ao rap acelerado e trappado. Será talvez o passo mais fora de pé do disco, o momento que mais destoa da narrativa (e das canções que vêm antes e depois), pelo que é um prazer passar à faixa seguinte e ouvir a voz da cantora Deb Never a cantar suavemente antes de Tyron regressar às confissões circulares e alucinadas, às rimas de quem sabe falha (“See me, I’m erratic on drugs / Do stuff I regret”) mas de quem faz questão de não nos deixar esquecer de onde ele veio:
Hard times made me stronger
And these drinks make me drunker, drugs made me fonder
Sellin’ drugs get you richer, that’s a royal flush on a river
Go HMP for a winter
I grew up ’round toxic, and people can’t see
‘Cause they live in a pond with some dumb fish
I was with the sharks outside the park
When they start light a spark, nobody wanna try with us
Para as três últimas canções, é mais difícil encontrar descrições. “nhs”, que parte de um agradecimento aos profissionais de saúde para fazer perguntas estilo “o que é isto sem aquilo” (de “Lil Way sem codaine” a “riqueza sem pobres”), é um dos melhores temas de rap feitos em língua inglesa de anos recentes. Sobre “feel away” estamos conversados, é uma canção quase perfeita. E o encerramento com “adhd”, o tema preferido do autor em todo o disco, sigla para a hiperatividade e défice de atenção que lhe foram diagnosticadas em miúdo e uma reflexão numa estética musical que parece mais próxima do hip-hop convencional (até Tyron virar a agulha no final e começar a gritar, elevando a tensão e a raiva aos píncaros), é o momento onde o nosso desalinhado preferido expõe os demónios e as inseguranças todas, nos abre o coração como nunca abrira até aqui:
I can’t deal with the screams, only screamin’ at myself (Ah)
Tryna protect so I project
Deflect and they call it self-defence
Feel the pressure and we all got our reasons
Smile on the out, but inside I keep bleedin’
(…)
Love never felt real, the wheels won’t break
They can’t see the tears through the raindrops
Tough lad and I always put a face on
Told me already that leopards can’t change spots
(…)
Eat, sleep, repeat, what you know about T?
Smoke weed only way I fall asleep
Same routine, drink ’til I can’t speak
(“adhd”, Slowthai, 2021)