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"Succession" e os 10 Mandamentos da Lei de Roy

Uma das melhores séries dos últimos anos regressa para terminar. Sem dragões, zombies ou Cordyceps, apenas com cinismo por todos os lados e estes ensinamentos, que devemos usar como eles não usaram.

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Somos atraídos por universos e histórias, mas são as personagens que nos fazem ficar. Esse é, em termos simplistas, o trunfo das séries face ao cinema: o tempo que têm para desenvolver as personagens, o tempo que lhes damos para entrarem na nossa vida, o tempo para crescerem, mudarem, revelarem-se, redimirem-se – ou perderem-se para sempre. É por elas que fazemos maratonas de binge, voltamos semana após semana ou esperamos, de um ano para o outro, como não esperamos por mais quase nada na vida, uma nova temporada.

“Succession” (cuja quarta e última temporada se estreia na segunda-feira dia 27) não se entranha facilmente porque as personagens são odiosas. Deliberadamente odiosas. Não nos dá com quem identificar, nem por quem torcer, nem ao menos uma alma que queiramos salvar. É uma escala de cinzentos, de controlo de danos, de hipóteses menos más. Como todas as grandes séries, fala de família e poder, mas sem o menor vestígio de um código de honra. Roman, Shiv, Kendall, Tom e, certamente o pai Logan, rir-se-iam com desprezo desta simples expressão: “código de honra”. Aqui, não há heróis, nem vilões, nem vítimas sequer. Todos, à vez, podem ser cada uma destas coisas – e, com isso, matar-nos de frio e de vez a esperança, se ela ainda tiver a ingenuidade de lhes abrir a porta.

[o trailer da quarta temporada de “Succession”:]

Mas a verdade é que, agora que o grande sucesso da HBO depois de “Game of Thrones” e antes de “The Last of Us” regressa para uma derradeira temporada, estamos com este bando de cínicos, egoístas e egomaníacos. Aguardamos, com expectativa, a sequência exata pela qual se apunhalarão, um a um, pelas costas – e quem fica de pé no final, se alguém.

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“Não confies em ninguém” talvez seja o grande ensinamento a tirar do convívio com a família Roy e seus acólitos. Ou, dependendo da índole, “toma o que é teu”, como proclama a tagline da série. Isto é o que aprendemos em três temporadas. A Waystar Royco segundo os velhos 10 mandamentos.

Logan Roy

“Não adorarás a outros deuses senão a mim”

A exigência de exclusividade do monoteísmo fez correr muito sangue ao longo da História – e digamos que a coisa não melhora quando a divindade em questão é o próprio demónio. Logan, o pater familias, líder do império e pessoa acerca da qual se coloca a questão em epígrafe no nome da série, jamais concretizada, é franco candidato a pior pai da história da televisão, taco-a-taco com Tywin Lannister. Perto dele, Darth Vader tem momentos que roçam o sentimental. Roy deveria ser nome de família, mas é nome de um homem só, que todos têm de servir. Gere maquiavelicamente a expectativa dos filhos – de dinheiro e de amor – para os ter na mão quando e como quiser. Em teoria, no fim, acabaria mal, mas se já aprendeu a não esperar uma recompensa emocional de Logan Roy, porque a há-de esperar dos criadores de “Succession”?

Connor Roy

“Não invocarás o Santo Nome de Deus em vão”

Há um pormenor um pouco irritante em “Succession”: a quantidade de personagens pouco inteligentes (para não dizer mentecaptas). Num universo tão competitivo como o que representa, custa a crer que Logan, Shiv ou mesmo Kendall (que não escapa aos seus momentos da mais perfeita, acabada, redonda estupidez) tivessem tão pouca competição – que é como quem diz: num mundo de Gregs e Toms, também eu era dono daquilo tudo. É o primogénito da família, porventura o caso mais irremediável. Connor invoca constantemente o nome da família na esperança de que isso o legitime enquanto indivíduo, às suas opiniões e aspirações. Desfasado a todos os títulos da realidade, que toma pela vida que não teve de viver, não percebe que aluga a mulher que quer que o ame ou que não teria hipótese de ser eleito presidente da junta, quanto mais dos Estados Unidos da América (mesmo considerando que quase tudo é possível nos E.U.A.). Só há um deus em “Succession”: o dinheiro. E Connor, que confunde ter um nome com ter uma personalidade, não tem a menor ideia de como fazer o dele.

Lady Caroline

“Santificar os domingos e festas de guarda”

Mandava o Deus do Antigo Testamento que o descanso no dia do Senhor fosse tão obrigatório como o trabalho nos restantes – digamos que Lady Caroline, a primeira mulher de Roy e mãe da prole de potenciais sucessores, casou bem os dois: fez do descanso o seu trabalho. Efetivamente, em três temporadas, quase não a vemos senão em festas, no casamento da filha ou no dela própria, cuidadosamente guardada pelos autores para que, quando mais precisemos do conforto de um singelo gesto maternal, sejamos antes finamente trinchados por um sarcasmo ainda mais frio que o de Logan. Sim, Lady Coraline ensina-nos a dar (ainda mais) valor às nossas santas mães, e até a acreditar que, com a prática, o ChatGPT poderá ser um companheirão.

Gerri Kellman

“Honrar pai e mãe (e os outros legítimos superiores)”

Macall Polay

Honrar pai e mãe é tudo o que Connor, Kendall, Shiv ou Roman não fazem nem pretendem fazer – e, nesse particular, como censurá-los? Atentemos, pois, na secção complementar do mandamento: “e os outros legítimos superiores”, que, no Antigo Testamento, desenvolvia como “a fim de que venhas a ter vida longa na terra que Jeová teu Deus te dá”. Gerri é a peça de xadrez que chega mais longe no tabuleiro não pertencendo à família Roy, nem por sangue ou por casamento, precisamente por se manter fiel de forma canina a todos eles (até aos bizarros fétiches de Roman). E assim lá vai passando entre as gotas da chuva, que é ditado que não consta se use muito nas torres de Manhattan.

Kendall Roy

“Não matarás”

Kendall é o mais próximo que temos de um herói em “Succession”, mas logo descobrimos que não há herói mais duvidoso, incerto, fraco, corrompido, estilhaçado do que ele. É o grande desafiador dos deuses e o homem que vai sofrer o peso da tragédia. Por desafiar o pai e toldado pelo ego talvez como nenhum outro, Ken fica refém, dentro e fora da sua consciência, do acontecimento que encerra a primeira temporada e paira, dostoievskianamente, sobre todas as outras. Na sua atração pelo abismo, Ken é o Pinóquio que só queria ser um rapaz de verdade. Um Pinóquio com queda para a auto-destruição, que faz dele a única personagem capaz de expressar – e, portanto, inspirar – algum amor. Apenas para constatar que, dentro dele e em volta, não existe nenhum.

Marcia Roy

“Guardar castidade nas palavras e nas obras”

A mulher de Logan, que não chega sequer a ser a madrasta do clã de príncipes herdeiros, é a perfeita doppelganger de Lady Caroline: uma figura fria e estudada, que se move exclusivamente guiada pela necessidade de manter, senão aumentar, o seu estatuto (que é o mesmo que oferece a Logan: o papel de uma esposa, o lugar de grande senhora que se espera da Primeira Dama do maior grupo de media do país). O marido poderá ser, pensar, até fazer tudo o que quiser, desde que tudo o que o mundo veja, palavras e obras, esteja conforme ao acordo matrimonial.

Greg Hirsch

“Não roubarás”

O bobo da corte mais óbvio da série e reincidente na prática do crime da invocação do nome de família em vão. Greg não tem os sonhos de grandeza de Connor, até porque é apenas um sobrinho – e dum ramo desavindo – de Logan Roy, mas tem algo, porventura, um pouco pior: a pequenez. Só quer qualquer coisa. Qualquer coisa. A esmola milionária que lhe quiserem dar pelo favor de ser da família e não abrir a boca para revelar os podres que, diante dos seus menosprezados olhos, se vão revelando. Acresce ter roubado documentos que provam as acusações que possa, um dia, fazer. No fim da terceira temporada, começa a parecer magicamente mais esperto do que até então, mais confiante e muito mais bem-sucedido. Mas isso também seria demasiado reconfortante para “Succession”.

Tom Wambsgans

“Não levantarás falsos testemunhos”

De um génio do mês para outro, o único genro de Logan Roy engole tudo o que for preciso para sobreviver na hierarquia da Waystar Royco. Atinge as profundezas do seu historial de humilhações quando testemunha perante a comissão de inquérito às práticas da empresa de cruzeiros que, circunstancialmente, lidera. E enjeita qualquer empatia que o espectador pudesse ter por ele quando destrata quem tem abaixo – basicamente, Greg – do mesmo como que a mulher e toda a família Roy o destrata a ele. Mas um dia é o da caça e outro o do caçador. E a terceira temporada terminou com o tonto Tom do lado certo do ponto de mira.

Roman Roy

“Guardar castidade nos pensamentos e nos desejos”

Se Logan é o Diabo, Kendall o Lúcifer, no sentido clássico do anjo que deseja o lugar de Deus, e Connor não qualifica, Roman é um daqueles diabretes que, na pintura renascentista, aparecem a rir, de tridente na mão, empurrando os condenados para o fundo do caldeirão fervente. O benjamim da família tem muitas vezes a nossa simpatia, que logo desbarata quando se revela demasiado infantil e superficial para que pudesse, verosimilmente, ser considerado para o lugar que também ele pretende no trono do império. Ainda assim, o que trama mesmo o mais bem-sucedido dos irmãos Culkin são os seus estranhos desejos de puto que ninguém ensinou a amar.

Siobhan Roy

“Não cobiçarás a casa do teu próximo, nem a sua mulher, nem os seus servos e servas, nem o seu boi ou jumento, nem coisa alguma que lhe pertença”

Curiosamente, num universo tão maligno como “Succession”, não há muitas infidelidades. Talvez, desde logo, por não haver fidelidade alguma, nenhuma promessa para quebrar, já que os Roy têm, ao menos, a franqueza de não enganar ninguém acerca daquilo a que vêm. Exceto Shiv. Shiv, a princesa, a única filha mulher, a jovem inteligente, capaz e ambiciosa; aquela que, ao contrário dos irmãos, parecer ter toda a sua “shit together”. A Shiv que, perante a traição de Kendall, seria a sucessora evidente, a menina do papá, tão esperta e manipuladora como ele. Mas Shiv cobiça o próximo, e a mulher dele. E comete por vezes o erro primário de se achar mais esperta do que o resto desta pobre, danificada, ressentida espécie humana.

Veremos quem se salva a partir de segunda-feira. Ide em paz e que um bom advogado vos acompanhe.

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