Dois meses antes de formalizar a acusação do caso Tancos contra 23 arguidos, o Ministério Público quis fazer uma perícia à personalidade do major Vasco Brazão, tido como um dos principais mentores da operação encenada que levou à recuperação de material de guerra. Com uma particularidade: o militar seria notificado para comparecer no Instituto Nacional de Medicina Legal, mas não lhe podiam ser comunicados os quesitos dos exames — os pontos a avaliar. Justificação? Um dos parâmetros a ser avaliado seria precisamente o seu “estilo manipulativo” e, caso soubesse o que a polícia procurava, poderia conseguir enganar os peritos. O exame acabou por nunca ser feito.
Vasco Brazão, que até à fase de instrução do processo prestou sempre declarações às autoridades e que na comissão parlamentar de inquérito ao caso disse mesmo que iria “contar toda a verdade, doa a quem doer”, tinha encontro marcado esta segunda-feira com o juiz Carlos Alexandre. Mas, na sexta-feira, a audiência de instrução — uma fase em que o magistrado analisa o caso para decidir se ele deve seguir para julgamento — acabou por ser cancelada. Isto porque, apurou o Observador, o militar informou o juiz que iria mesmo remeter-se ao silêncio. Aliás, a opção de chamá-lo partiu do próprio Carlos Alexandre, uma vez que o ex-porta-voz da Polícia Judiciária Militar (PJM) nem sequer tinha pedido para ser ouvido, ao contrário de outros arguidos.
Esta postura foi diferente daquela que manteve ao longo de todo o processo e que levou a Polícia Judiciária, em julho de 2019, a pedir ao MP que mandasse o arguido ser alvo de uma perícia à sua personalidade. Naquela altura, os inspetores já tinham ouvido dezenas de testemunhas e o que elas diziam não batia certo com o discurso do próprio Vasco Brazão. Se, por um lado, o militar dizia que se limitou a cumprir ordens superiores, por outro, os seus colegas descreviam-no sempre como manipulador — manipulando até o ex-diretor da PJM, também arguido no processo. “Depoimentos de várias testemunhas mostram que a personalidade de Vasco Brazão não se coaduna com essa atitude que o mesmo pretende fazer transparecer para os autos”, lê-se no pedido da PJ enviado a 5 de junho ao MP, que consta no processo e a que o Observador teve acesso.
Tancos. Juiz Carlos Alexandre quer ouvir todos os arguidos, mas os primeiros dois não quiseram falar
Nesse pedido de perícia psicológica “em termos de relacionamentos interpessoais e processos mentais deste arguido” para obter “o perfil de personalidade”, a PJ estabelece mesmo os quesitos que devem ser analisados pelos peritos: “volubilidade/encanto superficial, sentir grandioso de si próprio, estilo manipulativo, ausência de remorsos ou sentimentos de culpa; superficialidade afetiva; ausência de empatia; não acatamento de responsabilidades pelas suas ações; impulsividade; irresponsabilidade; egocentrismo; natureza da relação profissional com os seus subordinados, com os pares e com os seus superiores”. Quesitos que, de acordo com o psicólogo criminal Carlos Poiares ao Observador, se coadunam com “critérios de diagnóstico de perturbação antissocial, o que na gíria aparece como um quadro de psicopatia”, diz o especialista sem conhecer o processo em causa.
Para fundamentar as suas suspeitas, a PJ descreve alguns testemunhos ouvidos durante o processo. Um deles é do capitão Bengalinha, o inspetor da PJM que tomou logo conta da investigação no dia em que foi detetado o furto em Tancos — mas que acabou afastado, passando o dossier para Brazão. “É uma pessoa com uma excelente capacidade de persuasão, manipulador, com alguma assertividade e com enorme ascendente sobre o diretor-geral”. Este ascendente seria também referido à PJ pelo tenente-coronel Donato Helder da Costa, da PJM: “Bastante manipulador, o que acontecia, também, relativamente ao diretor-geral Luís Vieira”. E pelo tenente-coronel Amílcar dos Anjos Reis: “Usava o medo que os mesmo nutriam face a si para levar a sua vontade avante”.
“Se a realidade contida nos autos é, por si só, suficientemente demonstradora da participação ativa, determinante e imprescindível do arguido Vasco Brazão tanto nos atos materiais que conduziram à recuperação do material de guerra, na Chamusca, na noite de 17 para 18 de outubro de 2017, como também na conceção e planificação do plano criminoso que conduziu à consecução daqueles factos criminosos, a verdade é que, em obediência ao princípio da investigação, princípio basilar do Direito Processual Penal Português, impõe-se que a investigação realize todas as démarches investigatórias que se revelem importantes e necessárias”, escreve a PJ no pedido, explicando que é preciso destrinçar se Brazão é o “tipo de funcionário que, ao receber uma ordem, a cumpre cegamente, sem qualquer reação, sequer, preocupação em sindicar a legalidade da mesma, ou se, pelo contrário, não é um ‘subordinado fácil'”, como o próprio se descreveu às autoridades.
A resposta do Ministério Público seria assinada pela procuradora Cláudia Oliveira Porto a 11 de julho de 2019. Além de autorizar o pedido de perícia, a magistrada ordenou que os serviços de saúde fossem avisados para que o arguido não tomasse conhecimento dos quesitos que estavam em cima da mesa na sua avaliação, de forma a tornar o resultado “fidedigno”. “Requeremos que não seja dado conhecimento ao arguido do teor da presente promoção”, lê-se no despacho. O que para Carlos Poiares, “é normal” nestes casos.
Tancos. Vasco Brazão foi condenado a pagar multa por recusar perícia à personalidade
No processo consultado pelo Observador consta, também, um pedido de autorização do major Brazão, a 30 de julho de 2019, para poder sair de casa — onde se encontrava, à data, em prisão domiciliária — a fim de comparecer em consultas de psicologia e psiquiatria em nada relacionadas com a investigação. Pedido que foi autorizado.
O Instituto de Medicina Legal marcou, então, para 30 de agosto desse ano a perícia, mas o militar acabaria por faltar. O tribunal foi, por isso, contactado pelos serviços de saúde, que deram conta da falta, e reagendou os exames para o dia 12 de setembro. Três dias antes, a técnica de justiça ainda telefonou para Brazão a avisá-lo e deixou uma mensagem. Também ligou do seu telemóvel pessoal, mas não obteve qualquer resposta por parte do arguido. O tribunal acabou por notificar o seu advogado, Ricardo Sá Fernandes, da data para exame. O ex-porta voz da PJM compareceu na morada indicada pelo tribunal, mas depois de ter sido informado da natureza da “perícia e metodologia” pela perita recusou fazê-la.
“Como tenho o direito ao silêncio informo que não estou disponível para responder às perguntas (ilegível) porque isso interfere no meu direito em manter-me calado”, lê-se na declaração escrita à mão por Vasco Brazão.
Dias depois , a 25 de setembro, seria formalmente acusado dos crimes de associação criminosa, tráfico de armas, denegação de justiça e prevaricação.
No mesmo pedido que a PJ fez ao MP para a perícia, os investigadores deixaram claro o que até aquele momento tinham conseguido na investigação, com provas suficientes que indiciariam que Brazão seria “uma peça fundamental na engrenagem montada com o objetivo de recuperarem, sem sustentação legal, o material militar de guerra furtado em Tancos”. Sublinhavam, sobretudo, os registos telefónicos que colocam Vasco Brazão a participar em reuniões, conjuntamente com os coarguidos da PJM, Pinto da Costa e Mário Lage de Carvalho, e da GNR de Loulé, Lima Santos, Bruno Ataíde e José Gonçalves, para delinearem aquilo que a acusação agora diz ser um plano criminoso para recuperar as armas furtadas de Tancos. Nesta altura, já a PJ tinha Bruno Ataíde como elo de ligação a João Paulino, acusado de ser autor do furto. A PJ chega mesmo a chamar aqueles que trabalharam com Brazão como os seus “correlegionários”.
Brazão acabaria por dizer às autoridades aquilo que disse no gabinete do ex-ministro da Defesa, quando foi recebido pelo general Martins Pereira, chefe de gabinete de Azeredo Lopes: que levou esta operação policial avante porque foi uma condição do informador, Fechaduras, para dar a localização das armas. E que, sendo Fechaduras também informador da PJ civil, temia que a sua família sofresse represálias.
Azeredo Lopes acusa Brazão de ser um “mitómano”
Também no processo constam descrições de outros arguidos e do próprio MP que tentam derrubar a tese que Brazão apresentou em sua defesa até agora, aquela de que estaria a cumprir ordens superiores quando avançou para a investigação ao furto de armas em Tancos — contra o estipulado pela Procuradora-Geral da República, Joana Marques Vidal, que decidira dar a investigação à PJ Civil, alegando podendo estar em causa o crime de terrorismo. “Nunca fui carreirista, sempre cumpri as ordens. Entendi aquilo como uma missão a cumprir, porque o diretor não se cansava de dizer que a questão da competência viria mais cedo ou mais tarde para o nosso lado”, disse o major Vasco Brazão na comissão parlamentar de inquérito ao caso, declarações que foram também usadas no processo-crime.
No parlamento, o ex-porta-voz da PJM, que contou como ele e uma equipa de inspetores da PJM fizeram várias diligências de investigação, juntamente com a GNR de Loulé, paralelamente à PJ civil, chegou a afirmar que o então ministro da Defesa, Azeredo Lopes, sabia de tudo. O ex-governante, que acabaria por demitir-se um ano após a recuperação das armas e que foi também acusado agora no processo-crime, disse ao juiz de instrução que Brazão não dizia a verdade. “Acho que há aqui um momento de alucinação. Já vi coisas que mostram que não é uma coisa… É um mitómano… eu não posso responder pela alucinação de um indivíduo que nunca me viu”, disse.
Vasco Brazão continua a utilizar a internet, mesmo sem poder
O Ministério Público também não foi parco nas palavras quando, em abril de 2019, Brazão pediu ao Tribunal da Relação que reavaliasse a sua prisão domiciliária e o pusesse em liberdade, como fez com o seu superior, o ex-diretor da PJM, Luís Vieira. Àquele tribunal superior, o MP lembrou que o arguido continuou a ser escutado entre janeiro e abril de 2019 e que, pelas escutas, a PJ, se apercebeu como ele usava a comunicação social para “passar mensagens a outros militares”. Naquela altura, reforçava o MP, continuavam a aparecer na investigação várias testemunhas “intimidadas, receosas e que frequentemente dizem aos Magistrados e Inspetores que as inquirem não escreva isso, por favor, analisando, escrupulosamente, as palavras que dizem e ficam escritas, os pormenores que fornecem, escolhendo sinónimos mais suaves, com conotação menos negativa, nitidamente com receio de represálias futuras.”
E o medo neste processo não foi transmitido apenas por testemunhas, segundo o MP. “Alguns arguidos confessam, fora das gravações, ter receio de contar tudo o que sabem, apresentam-se titubeantes na decisão de prestar ou não declarações, medindo as possíveis consequências dessa decisão, até do ponto de vista profissional, interno, ao nível da instituição de origem”, lê-se na resposta do MP.
Os responsáveis pela investigação que está agora a ser instruída por Carlos Alexandre lembram mesmo aos juízes desembargadores que Vasco Brazão foi impedido de, em prisão domiciliária, usar a internet precisamente para impedir contactos com arguidos, testemunhas e militares em plataforma de conversação. Medida que não estaria, à data, a cumprir.
“O arguido, ora recorrente, utiliza, despudoradamente, a internet, manifestando um total alheamento e desrespeito pela decisão judicial do juiz de instrução Criminal, sendo certo que entre essas sessões medeia quase três meses, o que evidencia ser um comportamento que tem vindo a perdurar no tempo. O arguido não só desobedece, totalmente, à decisão do Juiz de Instrução, como, ainda, se apresenta, perante o Tribunal da Relação de Lisboa e perante os Venerandos Desembargadores com uma postura de inocência e bom comportamento de que sabe não ser merecedor”, escreve.
A tese do Ministério Público não foi totalmente acolhida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que acabou por revogar a prisão domiciliária, mas manteve as outras medidas de coação, como a proibição de contactar com outros militares ou de utilizar a internet. Para os desembargadores, estando Brazão suspenso de funções da PJM, não há “perigo de continuação da atividade criminosa”. “Neste aspeto, propendemos a concordar com o recorrente, sobretudo tendo em conta que todos os crimes indiciados foram praticados no exercício das funções que então desempenhava”, decidiu o tribunal superior.
Tancos. Azeredo deixou consequências para a PJM nas mãos da Procuradora-Geral
Na decisão é também argumentado que “foram, entretanto, detidos os arguidos suspeitos da prática do crime de furto das armas de Tancos e do tráfico subsequente, já decorreu o tempo necessário para que o Ministério Público (MP) procedesse às perícias ao computador do recorrente e à demais documentação e que apesar do tempo decorrido, tem cumprido escrupulosamente as obrigações a que está adstrito”. “Efetivamente, mantendo-se a proibição de contactos ordenada em sede de primeiro interrogatório judicial, bem como a proibição de utilização da internet — aliada, claro, à suspensão de funções — afigura-se que o perigo de perturbação do inquérito fica obviado”, lê-se.
O processo de Tancos terminou em 23 acusações, entre suspeitos do furto, arguidos da PJM e da GNR que recuperaram as armas e o ex-ministro da Defesa. Esta semana, o juiz Carlos Alexandre continua a ouvir testemunhas..