“Eu estou viva e é isso que importa”. A afirmação, que parece inócua constatação, ressoa amplificada quando a escutamos da boca de Júlia, jovem mulher brutalmente violada quando, num dia aparentemente sem história, sai para correr na floresta carioca. É a protagonista de Vista Chinesa, novo romance da escritora brasileira Tatiana Salem Levy, que a Elsinore acaba de publicar em Portugal poucos meses depois de o livro ter saído no Brasil.
Vista Chinesa, conhecido miradouro situado na floresta da Tijuca, é o lugar do crime. O ano é 2014. O Brasil está a poucos meses de receber o Campeonato do Mundo de Futebol e a dois anos de se tornar anfitrião dos Jogos Olímpicos. O clima é de euforia — “O Brasil, o país do futuro, parecia bastante próximo de realizar o seu destino”. Mas esse Brasil, o país de todas as possibilidades, é o mesmo onde continua a ser possível que uma mulher saia de casa sozinha e acabe vítima de uma violência difícil de narrar.
No final do romance, uma “Nota da Autora” elimina a possibilidade de equívoco sobre a veracidade dos factos: o caso aconteceu com uma amiga chegada — “a quem chamo de irmã” –, que pediu explicitamente para ser identificada no final. Pouco depois do episódio, Tatiana visitou uma exposição de fotografia onde se exibiam rostos de inocentes injustamente enviados para a cadeia. A ideia de pegar nessa matéria para fazer um romance começa a insinuar-se, mas nada acontece até que, anos depois, quando estava grávida pela segunda vez, a autora sentiu que chegava o momento de dar uma forma ficcional ao que tinha acontecido com a sua amiga Joana Jabace. Entrevistou-a, reconstituiu passo a passo o momento da violação e o calvário que se seguiu, reabriu as feridas que nunca chegaram a fechar, trouxe para o presente a força de um trauma que nunca, na verdade, chegou a ser passado — porque “há coisas que, mesmo depois de terem acontecido, continuam acontecendo”.
O resultado é Vista Chinesa, romance breve e indigesto em proporções semelhantes, escrito na forma de uma carta hipotética aos filhos — “é mais um testemunho. Um testemunho, não. Um testamento”. Relato digressivo, que se aproxima e afasta do facto central e nos faz cúmplices da confusão de Júlia e do seu penoso esforço de memória para tentar recompor o rosto do agressor — “o rosto que a gente nunca lembra mas não consegue esquecer” –, Vista Chinesa esforça-se por lidar com as franjas do trauma: o silêncio, os não ditos, as marcas duradouras no corpo da vítima, a violência que se prolonga na investigação policial, conduzida por um coro de ineptos mais preocupado em enviar alguém para a cadeia do que em descobrir o verdadeiro culpado.
Vista Chinesa é um passo em frente na caminhada de Tatiana Salem Levy enquanto escritora interessada em perceber como os traumas de uma geração continuam mesmo naqueles que não viveram o episódio traumático. Aqui, o desafio foi não se furtar às palavras que nomeassem o interdito.
O Observador encontrou-se com Tatiana em Lisboa, na semana em que Vista Chinesa foi apresentado publicamente na cidade onde vive desde 2013.
Como é que o episódio próximo de uma violação começa a traduzir-se na necessidade de fazer disso uma ficção?
A violação aconteceu em 2014, com uma amiga muito próxima. Alguns meses depois, surgiu a ideia de escrever um romance sobre isso, de contar essa história ficcionalmente. Aquilo que me interessa é explorar a linguagem literária, nunca me passou pela cabeça escrever um relato do que aconteceu. Interessava-me investigar de que forma a literatura poderia narrar essa experiência inenarrável. É uma experiência cercada de indizíveis. Quando se está perto de alguém que sofreu uma violência tão grande, sente-se que aquela pessoa não vai conseguir exprimir o que lhe aconteceu. Existe um abismo entre o que ela viveu e o que pode contar. Isso também angustia quem está perto, a sensação de que nunca vamos chegar lá, de que nunca vamos saber exatamente o que aconteceu mesmo que ela diga tudo o que aconteceu. Como escritora, isso tocou-me particularmente. Como dar conta disso? Será que a literatura nos pode aproximar desse indizível que tomou conta do espaço naquele momento?
E pode?
Acho que pode. Há estratégias próprias da literatura, ou da arte de forma geral, de que o mero relato não daria conta. Poder ir e vir no tempo, poder ser fragmentado, contraditório… Há uma liberdade que é a possibilidade de exprimir mais a nossa subjetividade.
Apesar de não ser um relato, o seu método andou próximo do jornalismo: conversou com uma testemunha, ouviu a sua história e usou-a como matéria da escrita.
Sim, foi o método inicial. Mas o jornalismo iria tratar o assunto em poucos dias, eu fiquei dois anos para entender que forma daria a isto.
Foram conversas à distância?
Sim. Por telefone, por mensagens de Whatsapp… Às vezes ia-me lembrando de alguma coisa, enviava uma mensagem e ela respondia quando podia, outras vezes ela lembrava-se de alguma coisa e escrevia-me sem eu perguntar.
Numa entrevista jornalística, no entanto, seria muito difícil levar a conversa tão longe. O romance desce muito fundo nos detalhes…
O livro beneficia muito da intimidade que eu tenho com esta amiga em particular. Fiz-lhe perguntas que não faria a nenhuma outra amiga. Não só por ela ser uma amiga muito próxima, mas por me sentir particularmente à vontade para fazer perguntas. Somos muito parecidas nisso. Faço muitas perguntas, sou mesmo muito curiosa, e não tenho filtro. Sou capaz de conhecer uma pessoa e começar a fazer-lhe perguntas muito íntimas, a ponto de a pessoa ficar incomodada. Nesse sentido, a Joana é igualzinha a mim. Ela não fica incomodada com as minhas perguntas, eu sei que posso fazer as perguntas que quiser que ela não se vai sentir ofendida. Nestes casos, evitamos fazer perguntas muito detalhadas, porque temos medo de ir longe de mais e magoar o outro. Com ela, eu sabia que podia ir. Ela contou-me coisas que nunca tinha contado a ninguém, nem na sessão de psicanálise. Essa cumplicidade foi fundamental para o livro.
Era importante manter os detalhes do crime?
Antes de colher o depoimento, a minha ideia era não narrar a violação, não contar os detalhes sexuais. Em geral, o que a literatura faz melhor, quando se trata de eventos traumáticos, é narrar pelas bordas, pelos cantos, evocar a imaginação do leitor… Às vezes, uma cena muito descrita acaba por causar a reação contrária, distanciando o leitor em vez de o aproximar.
Mas a questão dos detalhes partiu muito dela, e a partir daí eu fui perguntando. E ela contou cada vez mais detalhes. Dei-me conta, então, de como aqueles detalhes estavam vivos para ela, mesmo quatro anos depois da violação. Não era um acontecimento do passado, era um acontecimento do presente. Nunca mais se tinha falado no assunto, as pessoas à volta dela tinham vivido aquilo de forma muito intensa quando aconteceu, mas depois mais ninguém tocou no assunto. Ela é uma mulher muito bonita, com um corpo muito bonito, teve filhos, olha-se e parece que está tudo bem… Quando falei com ela, percebi que na verdade estava tudo desencaixado. A violação estava ali, completamente presente, todos os dias.
E para resolver isso era preciso falar?
Falar é fundamental. Dar nome às coisas é fundamental. Ela deu-me aqueles detalhes todos, não podia ignorá-los. Tive de rever a minha ideia inicial. Na verdade, não narrar os detalhes é uma estratégia mais fácil. Narrá-los é muito mais difícil, mas era isso que eu precisava de fazer. Se não o fizesse, estaria a continuar a ideia de que não podemos falar sobre isso. Como se falar sobre o crime fosse ainda pior do que o crime — a vergonha é ter sido violada, não é o homem violar a mulher.
Era importante, para mim, que ela não fosse só vítima, ela tinha de se tornar sujeito da sua própria história. Tinha de se refazer. É claro que é a história de uma morte, da morte de um corpo específico, é a história de um luto — porque há algo nela que morreu para sempre –, mas queria que também tivesse muita vida. O livro tinha de ter essa força.
Como surge o dispositivo da carta aos filhos?
A questão do trauma que passa de geração em geração está muito presente em tudo o que escrevo. É uma das minhas obsessões particulares, na minha vida e como escritora. Até aqui, estava muito interessada naquilo que as personagens recebiam como herança dos antepassados. Em A Chave de Casa, o meu primeiro romance, a personagem está paralisada numa cama e recebe no próprio corpo os traumas dos antepassados que viveram histórias de dor e não as contaram. Por não terem sido falados, os traumas transformam-se em sintomas, e ela tem de ir atrás da história para poder fazer alguma coisa por aquele corpo paralisado. Aqui aconteceu o contrário. Foi o primeiro livro que escrevi depois de me ter tornado mãe, e foi o momento em que parei de pensar tanto naquilo que tinha chegado até mim e comecei a pensar naquilo que ia deixar para os meus filhos. No meio dessas perguntas (e porque escrevi este livro grávida), comecei a perguntar o que seria dos filhos da Joana — e, logo, o que seria dos filhos da Júlia, a personagem. Como seria engravidar nesse corpo que já tinha sido violado? É o mesmo corpo, o mesmo lugar, o mesmo espaço físico e sexual. As crianças já nascem com essa história. Comecei a pensar que, se essa mulher não contar aos filhos o que lhe aconteceu, de alguma forma eles vão sabê-lo. Essa história também é deles. Pensei, então, nesta carta.
A história passa-se no Rio, mas o texto não está saturado de números sobre a violência sexual no Brasil. Não se quis desviar da história individual?
Isto é literatura, não é sociologia. É a história da Júlia, nem sequer é a história da Joana. Um dos traços políticos da literatura é que, ao falar de uma coisa particular, está também a falar de uma dimensão coletiva. É a história da Júlia, mas há muitas mulheres que se reconhecem nessa história — nem só brasileiras e nem só mulheres que já foram violadas. Já recebi muitas mensagens de mulheres portuguesas. O medo de ser violada faz parte de todas as mulheres de todos os lugares do mundo.
A violência contra as mulheres é, aliás, um tema recorrente nos seus livros…
Olhando para trás, vejo que está em todos os meus livros. Dou-me conta de que fui falando disso porque é muito presente na minha vida, mas agora falo de uma forma muito mais consciente. Quando lancei A Chave de Casa, ninguém falava em relacionamento abusivo (nem eu falava). Falava-se numa paixão maluca, qualquer coisa assim…
O livro exibe vários tipos de violência sobre o corpo. A violação primeiro, depois o suplício da investigação policial, e por fim a violência natural do parto. É curioso que essas violências se contem exatamente com as mesmas palavras…
Foi uma opção, sobre a qual hesitei. Mas, afinal, são as mesmas partes do corpo, é o mesmo corpo… Achei importante que fossem as mesmas palavras.
A máscara — no caso, a máscara imitando um animal selvagem — é um elemento importante no livro. Qual é a origem das máscaras?
Surgiu por acaso, numa foto de instagram da Adriana Varejão, artista plástica brasileira. O fotógrafo registou-a grávida, muito grávida, numa floresta, com uma máscara. Estava a escrever o livro quando vi a foto e deu-me um clique. Pareceu-me uma imagem muito forte para o livro. Era uma possibilidade de aquele corpo se reinventar. Ao mesmo tempo, a floresta tem um sentido duplo no livro: por um lado, é onde o mal acontece, porque a floresta pode esconder aquela violência. Sem querer, ela é cúmplice do violador. Mas a floresta — do Rio de Janeiro, do Brasil — também foi violentada ao longo dos séculos.
[a foto publicada pela artista brasileira Adriana Varejão no Instagram:]
https://www.instagram.com/p/CGCaRoRlluV/
Como tem sido a receção da Vista Chinesa no Brasil?
Muito boa. Já está na quinta edição. É o meu primeiro romance com tantas redes sociais.
E isso é bom ou distrai?
Distrai imenso, mas é bom para o livro. Não é bom para a vida particular, mas é muito bom para o livro.