A cara não denuncia os 30 anos, o estatuto é apenas uma das muitas braçadeiras que ostenta no desporto e na vida. Tomás Appleton, capitão da Seleção de râguebi que conseguiu a melhor participação de sempre em Campeonatos do Mundo juntando a vitória frente a Fiji (que eliminou a Austrália e passou aos quartos) ao empate com a Geórgia, veste várias peles em dias que não parecem ter 24 horas mas onde encaixa um sem número de postos e lideranças. Além de jogador, “agora amador” apesar de já ter experimentado no passado o profissionalismo, é médico dentista, está a tirar mais um curso de Medicina após fazer mestrado e outras prós-graduações, e foi pai há ano e meio. Levantar Benedita no final da partida com Gales ficou como uma das melhores sensações mas tudo o que se passou agora em França, e que fechou com chave de ouro um ciclo de quatro anos dos Lobos, funciona sobretudo como um ponto de início e não de chegada.
Tomás é um bom espelho do râguebi nacional a vários níveis. Começou novo na modalidade tendo o irmão mais velho, Francisco, como fonte de inspiração (embora só mesmo à segunda tentativa tenha ficado de vez convencido), esteve uma época a representar os ingleses do Darlington Mowden Park, da National League One, ainda passou pela Nova Zelândia, assentou arraiais de novo em Portugal entre CDUL e Lusitanos. Até poderia ter ficado por terras de Sua Majestade, onde vive agora o irmão que é advogado, mas quis desafiar o que parecia impossível conciliando tudo aquilo que o faz mover diariamente de um lado para o outro. Agora, olhando para a prestação dos Lobos, vê uma espécie de segunda oportunidade para as novas gerações depois de não haver tanto prolongamento como se pensava da estreia em Mundiais, em 2007. E assim como quer ser uma referência na Medicina Dentária e não só, espera ser um exemplo para os que agora começam.
[Ouça aqui o “Nem tudo o que vai à rede é bola” da Rádio Observador]
Na antecâmara do regresso a Portugal, “onde todos ficarão a ter uma noção mais real do impacto que toda a prestação no Campeonato do Mundo teve por ser a primeira vez que o grupo sai da bolha onde esteve em França”, Tomás Appleton esteve no programa “Nem tudo o que vai à rede é bola” da Rádio Observador para fazer uma análise do Mundial que vai no próximo sábado iniciar a fase a eliminar (e logo com dois encontros grandes, o Irlanda-Nova Zelândia e o França-África do Sul) e abordar aquele que pode (e deve) ser o futuro da modalidade no país, passando ainda por uma vida multifacetada que já tem como meta o ano de 2027.
Que impacto teve esta vitória por 24-23 frente a Fiji, a primeira de Portugal num Campeonato do Mundo de râguebi a coroar aquela que foi a melhor participação de sempre depois do empate com a Geórgia e dos bons jogos com Gales e Austrália?
Acho que esta vitória teve um impacto brutal enquanto equipa. A verdade é que arrancámos para este jogo muito, muito confiantes, sabendo que queríamos ir buscar uma vitória mas foi como disse, este foi sobretudo o culminar de uma de uma excelente participação neste Mundial. Tivemos aqui algumas dificuldades contra contra Gales e contra a Austrália mas acho que acabámos da melhor maneira com Fiji. Em relação ao impacto que isto vai ter, o que queremos é que isto venha construir uma nova base do râguebi em Portugal. Sabemos que vai ser um trabalho longo, tal como aconteceu em 2007 quando fomos ao Mundial haverá um novo boom e temos de aproveitar, mesmo que os frutos só apareçam daqui a uns anos. Queremos aproveitar este embalo para conseguirmos colocar Portugal sempre nos grandes palcos internacionais.
Este jogo com Fiji era especial, não só por ser o último neste Mundial mas também por ser a despedida do selecionador Patrice Lagisquet e de alguns jogadores mais experientes. Foi daí que vieram também as forças extra para aguentar o poderio físico das Fiji na defesa para depois brilhar o virtuosismo das combinações ofensivas que valeram os ensaios?
Claro que sim, sem dúvida. Acho que nós olhamos para este Mundial mas isto na verdade é um processo de quatro anos. Isto foram os últimos quatro anos de muito trabalho, muitos sacrifícios e nós encarámos muito isto por aí. Obviamente que alguns jogadores iam deixar de jogar, o Patrice ia deixar de ser nosso treinador e encarámos isto um pouco à maneira portuguesa, como a última hipótese de fazer história, de agarrar esta oportunidade. Isso foi sem dúvida uma força extra para conseguirmos ganhar este jogo.
Além da vitória com Fiji,que conseguiu eliminar a Austrália e chegar aos quartos, Portugal termina o Mundial com seis pontos, na sua melhor participação de sempre, e com essa imagem de uma Seleção que tinha sempre os estádios cheios em maioria, que cantavam o hino, que teve milhares e milhares de pessoas a seguir pela TV. Tiveram noção também na concentração do impacto que conseguiram em Portugal?
Acho que tivemos noção daquilo que se estava a passar sobretudo no estádio, mais aí. Nós já estamos há uns meses em França concentrados e acho que estamos aqui um bocadinho nesta bolha, temos pouca noção do que poderá ser a chegada a Portugal, do que vai ser o râguebi. A partir de agora, não temos ideia, quando chegarmos vamos começar a ter, se calhar, a noção do que construímos e do que fizemos. Acho que é difícil ter a noção do que é que se passa. Realmente temos tido imenso apoio da comunidade aqui, houve milhares de pessoas que viajaram até cá mas ainda vamos começar a perceber agora esse tal impacto.
Há aqui também uma frase importante que marca a campanha, quando dizem depois da derrota no jogo com a Austrália, no seguimento do empate com a Geórgia, que já não se contentam com vitórias morais. Mesmo sendo a melhor participação de sempre num Campeonato do Mundo, essa mentalidade também acaba por ser uma grande conquista?
Claro e acho que isso tem muito a ver com o ADN desta equipa. A ambição tem essa grande vantagem mas também é um problema, porque a ambição está constantemente a crescer e queremos sempre mais. Mesmo antes do Mundial fizemos jogos contra algumas seleções do top 10 e foram sempre jogos renhidos, tivemos sempre essa ideia na cabeça de que éramos capazes, que tínhamos capacidade de ganhar um jogo. Falámos muito a seguir ao jogo com a Austrália, e mesmo a seguir ao jogo contra a Geórgia, que um dia isto ia cair para o nosso lado. Aconteceu com Fiji. Ainda antes do Mundial, tínhamos feito o compromisso de que em todos os jogos íamos entrar para competir e para ganhar, depois logo se via o resultado.
Surgiram imagens no final do jogo do selecionador de Fiji a passar pelo balneário de Portugal a deixar algumas lembranças, algo que não é comum ver em qualquer desporto. À parte desses aspetos, qual foi a perceção sobre as melhorias de Portugal que passou das outras seleções com quem jogámos? Sentiram essa mudança de paradigma na forma como olham para a equipa de Portugal, até pelos vários elogios que foram recebendo dos adversários?
Obviamente que ser reconhecido é sempre uma coisa brutal, perceberem o trabalho que andamos a fazer é sentir que somos valorizados, ficamos contentes com isso. O que fez o treinador das Fiji é incrível, sabendo que é uma equipa que vai passar aos quartos, uma equipa com tanta história, que já tem construído tanta coisa ao longo do tempo… Ficámos sem dúvida muito contentes que tenham feito isso, mas a verdade é que o râguebi acaba por ser um desporto um bocadinho diferente. Sou suspeito também para dizer isto, mas a verdade é que os valores do râguebi apontam para isso e não é nada surpreendente, são os valores do râguebi a seguir de certa forma aquilo que é a sua ordem natural…
E a forma como olham para Portugal mudou?
Portugal tinha de deixar de ser aquela equipa que vai apenas marcar presença. Nós já vimos isso no Dubai, depois de termos conseguido o apuramento naquele famoso jogo contra os EUA. Nessa viagem falámos entre nós e dissemos que não íamos ao Mundial só para cantar o hino nem para marcar só presença, íamos para competir e íamos para ganhar. Acho que no final do dia conseguimos dar uma excelente amostra disso.
Projetando também aquilo que pode ser o Mundial de 2027 na Austrália à luz do que aconteceu agora em França, como é que equipas como Portugal, Uruguai ou Japão, que confirmou os indicadores de 2019, se vão aproximar das principais potências tendo em conta que só jogam contra eles nesta fase? É necessário mudar aquilo que é o modelo competitivo?
Acho que isso vai ser o caminho natural das coisas. Se o râguebi quer ter este crescimento mundial, se o râguebi se quer começar a expandir para estas seleções ditas mais pequenas e não ficar só fechado naquela bolha das seleções mais fortes, acho que o caminho é esse mesmo. Para dar um exemplo: nós nos últimos quatro anos fizemos um jogo contra uma equipa de top 10, é difícil de repente chegarmos a um Mundial e estarmos a jogar contra a Austrália e contra Gales porque as nossas janelas de jogos internacionais não são contra equipas suficientemente competitivas. Muitas vezes existe uma discrepância grande entre as equipas mas se não se tentar passar por cima disso e se não tentarmos equilibrar os pratos da balança, vai ser muito complicado. Revejo-me nessa questão de haver uma reestruturação das janelas internacionais, terá de ser um dos caminhos para seleções como Portugal, Uruguai, Chile, Geórgia ou Japão irem mais longe depois.
Portugal vai estar agora apenas a acompanhar a fase a eliminar do Mundial. Fala-se muito em duas finais antecipadas logo nos quartos, com Irlanda-Nova Zelândia e França-África do Sul. Consegue identificar algum favorito entre estas equipas, será este o ano da França?
Acho que a França tem uma grande vantagem, que é o facto de estar a jogar em casa. Acho que teve, por outro lado, tiveram uma quebra grande depois da fratura que o Antoine Dupont teve no malar. Isso pode ter trazido aqui algumas questões mas neste momento dizem que ele vai estar bem para jogar os quartos, vamos ver… Mas sim, sem dúvida que a França é uma das favoritas. Acredito também que a Irlanda, que é neste momento a número um do ranking, joga o melhor râguebi deste Mundial. Por outro lado, também temos uma África do Sul que é a atual campeã do mundo e uma Nova Zelândia que não começou bem mas acabou agora a fase de grupos de uma forma brilhante. Vão ser duas finais antecipadas, claramente um dos lados do quadro é mais forte e diria que irá cair para um deles entre Irlanda, África do Sul, França…
O Tomás passou um ano em Inglaterra e uns meses na Nova Zelândia antes de voltar ao CDUL. Existe um pouco a perceção em algumas modalidades que para dar o salto é preciso ir lá para fora. Também é assim no râguebi? E este Mundial abre essas portas?
Acho que o caminho, neste momento, feliz ou infelizmente, o caminho para qualquer jogador profissional, em Portugal ou para qualquer jogador português que ambicione ser profissional, vai passar pelo estrangeiro. Portugal ainda não tem uma estrutura suficientemente grande e profissional, e para conseguir jogar râguebi ao mais alto nível e para se conseguir ser profissional o caminho vai passar por aí, vai passar muito pela por lançar os jogadores lá por fora. Começámos a fazer isso nos últimos anos, lançámos bastantes jogadores, nos últimos três ou quatro anos lançámos muitos jogadores para os campeonatos franceses, mas, ao mesmo tempo, acho que não pode haver só esse foco nos jogadores a desenvolverem no estrangeiro, vai ter de haver um foco brutal no desenvolvimento do râguebi português, numa melhoria do Campeonato. Vai ter de haver este equilíbrio porque dependendo só do jogador no estrangeiro, vai sempre haver algumas limitações. Eu tive a minha experiência, ainda bem que a fiz mas hoje sou jogador amador porque quando era profissional tive de deixar a faculdade a meio. São necessários alguns sacrifícios. Acho que todos os jogadores da Seleção vão ter portas abertas para jogar lá fora e para jogar de uma forma profissional.
Quando o Tomás começou no râguebi, também por influência do irmão mais velho, não teve um amor à primeira vista, desistiu e voltou apenas seis meses depois. Foi essa reflexão e esse regresso que lhe mudaram a vida? O que fez mudar de opinião aí?
Cativar miúdos num desporto complexo como é o râguebi, que é um desporto que tem alguns contactos físicos, não é fácil e acho que o meu primeiro impacto pode não ter sido a coisa mais positiva por isso. Acho que depois me fui apercebendo do que era o râguebi, especialmente pelo meu irmão, que gostava tanto daquilo e aquilo fazia tanto sentido para ele que eu que para mim não fazia sentido nenhum. Dei uma segunda oportunidade e tem-me vindo a moldar para a vida. Hoje em dia não sei o que é que era de mim se não tivesse o râguebi na minha vida.
Entre todo um percurso ligado ao râguebi, o Tomás licenciou-se em medicina dentária, fez um mestrado em Valladolid, continuou a fazer pós-graduações na área e está a fazer mais um curso de Medicina. Como é que se arranja tempo para tudo?
Eu às vezes acho que pergunto isso um bocadinho a mim mesmo… Acho que aqui é tentar fazer uma boa gestão, especialmente uma muito boa gestão do tempo. Tirei a minha licenciatura, fiz todo o meu percurso académico, também tenho aqui alguma sorte por conseguir no trabalho ter alguma margem de horários na marcação de consultas e cirurgias que me permitem jogar ao mais alto nível. Mas a verdade é que nos últimos quatro meses estivemos 100% focados no râguebi, na preparação deste Mundial. Foi uma coisa que se foi fazendo ao longo dos anos, não caiu tudo de uma vez na minha vida. Jogo râguebi desde os seis anos, estou há 14 anos na alta competição, portanto fui fazendo o meu percurso sempre muito certinho. Foi uma coisa que foi crescendo, crescendo, crescendo e acho que o resultado no fim do dia é positivo.
O Tomás já disse em entrevistas que gostaria de ir até ao Mundial de 2027 na Austrália, que gostaria de ser centenário a nível de internacionalizações que também é algo emblemático e que nessa altura gostava de parar dois ou três anos para compensar a família pelo tempo que agora não consegue dar como gostaria. Olhando para essa prova, o que seria um bom resultado para Portugal?
Essa é uma pergunta que não é fácil, mas acho que Portugal tem que aprender a ser ambicioso, tem de aprender a querer mais e obviamente que saímos super orgulhosos desta prestação mas a pensar já em 2027. O que podemos querer a partir daqui é fazer mais e fazer mais, com um resultado tão bom neste Mundial, passar aos quartos seria uma ambição ideal para 2027…