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A primeira prova de que eu e Marie Kondo não fomos feitas uma para a outra está no meu atraso atroz na entrega deste texto ao meu editor, largas semanas depois da mensagem a dizer “aquela guru das arrumações japonesa vai ter uma série na Netflix, queres fazer a review?”. Reconheço as qualidades da catarse de uma vida bem organizada, invejo-as até, mas acabo sempre por me refugiar no confortável bordão de que “a malta com empregos criativos precisa é do caos, pá”. Por isso, navego com algum custo nisto da vida adulta e tarefeira.
Perante a missão da escrita deste artigo, estava à espera que Marie Kondo me salvasse. Spoiler: não salvou. Mas é injusto colocar tal tarefa hercúlea nas mãos de uma pequena japonesa que faz vídeos a ensinar pessoas a ordenarem a casa, quando a minha apetência para a tralha e para a desorganização é tão vertiginosa. Ainda por cima filha de uma mãe que, vinda de um ambiente rural de algumas dificuldades económicas, me incutiu que tudo pode dar jeito e que nunca nada se deita para o lixo. Alguém precisa de um boné da Expo 92 de Sevilha, com o Curro? Eu tenho.
Marie Kondo tem uma daquelas profissões que só são possíveis em sociedades capitalistas de pleno século XXI: é especialista em organização pessoal. É autora do best seller mundial The Life-Changing Magic Of Tidying Up: The Japanese Art of Decluttering and Organizing, publicado em 2014 em mais de 41 países, com mais de cinco milhões de exemplares vendidos (número que deverá escalar com a estreia do documentário no Netflix). Os seus vídeos no youtube são um sucesso também considerável – o vídeo que exemplifica o método desenvolvido por si para dobrar eficazmente roupa, facilmente reconhecível a olho nu por quem anda pelo instagram, vai quase nas sete milhões de visualizações.
[método para dobrar roupa de Marie Kondo:]
E sim, isto de dobrar roupa é mesmo uma parte essencial da seita organizativa que se reúne em torno de Kondo. Inúmeras pessoas dizem ter visto a luz depois de aprenderem a dobrar a roupa em três, numa forma retangular mas roliça, e a colocá-la de pé dentro da gaveta, para ser imediatamente visível. É como se reconhece um devoto desta japonesa: abrindo a gaveta das cuecas e constatando que as consegue ver a todas, como se observasse a lombada de uma série de livros arrumados numa estante.
A arrumação deixa-te feliz ou não?
O método patenteado da autora (que se mudou este ano com a família para Los Angeles, como uma verdadeira estrela) dá pelo nome de KonMari e tem alguns pontos chave. O primeiro, que até já entrou para o mundo das frases da cultura pop contemporânea (leia-se: é citado em memes e sketches humorísticos) é “does it spark joy?” (isso desperta-te felicidade?). No primeiro episódio da série da Netflix, Kondo explica que é um raciocínio que se treina: deve-se pegar em TUDO o que temos em casa, segurar os objetos um a um e ficar só com o que “faz as células elevarem-se”, por ser uma sensação semelhante a “ter um cãozinho ao colo”. Sim, também é válido para alicates e calças de pijama.
Ora é logo aqui que o método KonMari e o método Susana Rita divergem. Eu sofro daquilo que batizei como o “síndrome Toy Story”: eu afeiçoo-me a objetos, como se eles ganhassem vida quando eu viro as costas e congeminassem sobre mim, qual Buzz Lightyear. Eu tenho genuína dificuldade em não ter sentimento nenhum perante as minhas coisas, sejam elas uma t-shirt carcomida, um martelo ou um pacote de especiarias de uma viagem que fiz em 2011. Se me “sparkam joy”? Sim, até um certo ponto. Não são cãezinhos ao colo, mas eu até sou mais pessoa de gatos.
Estes são os dois grandes pilares da escola de pensamento e de arrumação de Marie Kondo: aprende a arrumar as coisas de modo a que sejam rapidamente visíveis e vê-te livre do que não te faz feliz. E, na verdade, é só isto. Rendeu vários livros e oito episódios de reality television em que se ajudam pessoas que nem sabem meter um prato na máquina de lavar, mas a verdade é que é mesmo só isto. O charme da simplicidade, suponho.
Conheço muita gente mudada e emocionada por tudo isto, fazendo um pontilhado de instastories a dobrar roupa – mas a verdade é que eu tenho cinismo que dava para encher um camião cisterna e talvez precise de mais candura para este processo. E antes que perguntem: sim, ainda esvaziei uma gaveta para me meter a dobrar tudo direitinho, mas ao fim da quarta peça tive de ir fazer sopa para o miúdo e depois separá-lo da porrada com um tacho que foi buscar ao armário e depois acabar um guião e depois ir preparar faturas para o contabilista e depois… O resto acabou à balda. É que iniciar a revolução Kondo até pode ser possível, mas o grande desafio é mantê-la e acomodá-la à vidinha tal como ela é.
Roupa, livros, papelada, komono e o resto
Mas vamos ao visionamento propriamente dito do primeiro episódio de “Tidying Up With Marie Kondo”, a aposta netflixiana. Os primeiros “pacientes” escolhidos têm tudo para serem relacionáveis comigo: são Rachel e Kevin Friend, um casal com dois filhos pequenos. E, coitados, queixam-se do caos e da desarrumação. Percebo-os bem, eu tenho saudades da minha sala de estar estilosa entretanto feita refém de peças de lego e bolachas Maria mastigadas. Mas há logo ali algo que me faz estancar a empatia: eles queixam-se de falta de espaço para arrumação, mas moram numa vivenda enorme. O meu T2 de 57 metros quadrados encarecido drasticamente pelos preços praticados em Lisboa (e que tem de albergar dois adultos que trabalham a partir de casa, uma criança com um ano e meio e dois gatos obesos) cabia todo dentro da garagem dos Friend. Não consigo evitar que me saia um “ó, filhinhos, vocês sabem lá o que é sofrer”.
[o trailer da série da Netflix:]
A casa desarrumada está a causar frustrações e consequentes tensões no seio daquela família (conheço a sensação). Entra Marie Kondo, com o seu ar muito kawaii de personagem de desenhos animados, seguida da sua tradutora. Olha para tudo com um sorriso simpático, supostamente sem sombra de julgamento. Tem um genuíno fascínio pelo american way of life, tão antagónico ao japonês (“as cozinhas americanas são tão grandes!”). E arregaça as mangas para mudar a vida daquela família, uma caixa com pilhas usadas e canetas sem tampa de cada vez.
Kondo categoriza os nossos pertences domésticos em cinco categorias: roupa (que deve ser toda retirada dos armários e colocada num único monte, para se proceder ao teste da fagulha de alegria), livros (uma review que li na Amazon ao best seller de Marie dizia que a autora sugere vermo-nos livres dos nossos calhamaços, o que só me parece medieval), papelada (olá, faturas da PT, que já nem sequer existe), komono (palavra japonesa para aquilo que podemos generalizar como tralha) e itens sentimentais (recordações de viagens ou álbuns de fotografias, por exemplo).
Deve ser feito um plano de ataque não só a cada divisão da casa, mas também a cada categoria de pertences. No fundo, é preciso organização para se tornar organizado, passo o pleonasmo. E aqui está uma realidade importante que os episódios pseudo documentais escamoteiam: todo este processo de terraplanar a nossa casa tal como ela é, de retirar tudo e rearrumar tudo demora muito tempo. Um episódio de 40 minutos faz parecer que estamos a falar de 48 horas, à la “Querido, Mudei A Casa” – mas um visionamento algo fugaz do segundo episódio revelou-me, num depoimento sem grande destaque, que os ajudados por Kondo ficam cerca de seis semanas apenas de roda da arrumação da casa. Se não tiver planos para as férias de 2019 nem para as de 2020, já sabe.
Sempre apelando às emoções mais lindinhas que um coração humano tem capacidade de sentir, Marie pede ao casal do primeiro episódio que comunique à sua casa o quão grato está pela sua proteção. Juntam-se todos num círculo e fazem uma espécie de reza, com os olhos fechados e os joelhos no chão. Sinto uma vergonha alheia tão ácida que quase me faz aftas.
De seguida, tiram toda a roupa dos armários, para a poderem selecionar com calma e devoção. Claro que a mulher do casal tem a mesma reação que eu teria se fosse forçada ao mesmo processo: tenho uma quantidade tão absurda de roupa que devia ser acionista da Zara. No embalo, a guru ensina a tal técnica milionária para dobrar roupa, mas em modo life coach: há que acariciar a roupa e aprender a adorar dobrar roupa. Pronto, já fui. Marie garante que, todas as noites, as filhas dobram roupa com ela antes de irem dormir. “É como ler-lhes um livro”, garante. Claro. E o Plano Nacional de Leitura devia debruçar-se mais sobre as instruções de uso do Skip.
O primeiro dia daquele casal acaba em grande: com uma discussão sobre se 200 cabides que sobram trazem ou não felicidade. A minha mãe rifava-me se eu deitasse fora 200 cabides em perfeito estado, só vos digo.
Sentir o espírito da casa
Marie revela depois aos Friend outro truque inovador para a etapa do komono: caixas. Eu sei, respirem fundo, isto é tecnologia de ponta que não está ao nível de qualquer capacidade cognitiva. Parece que é mais fácil estruturar os nossos pequenos pertences se existirem caixas temáticas. É esse o truque encontrado para ajudar a arrumar a garagem, o que proporciona um dos momentos mais emocionantes do episódio: quando o marido, Kevin, descobre o DVD do casamento. Kondo apercebe-se, nesse exato segundo, que é o seu aniversário de matrimónio e que está longe de casa, a ajudar desconhecidos a irmanarem os seus tupperwares com as respetivas tampas. Tudo isto é afeto, minha gente.
[como arrumar brinquedos, segundo Marie Kondo:]
(e por falar de tupperwares, o meu maior pesadelo logístico: o conselho da autora é colocá-los sempre com tampa e dentro de uma gaveta, arrumados lado a lado. Giro. Já vos falei da minha cozinha minúscula e do preço do metro quadrado em Lisboa?)
Daí para a frente, vemos uma nova família: o casal acha arrumar super sexy e está por tudo e por nada a ficar arrepiado de emoção. Marie Kondo dá-lhes a bênção: “Sinto o espírito da casa”. São felizes novamente. Porque sabem dobrar camisolas de fato de treino e resolveram finalmente imprimir fotografias do casório para colocar nas paredes da sala. Fim.
As ideias centrais de Marie Kondo são senso comum, mas bem articuladas e até pragmáticas: temos todo tralha a mais que devíamos descartar, devemos aprender a apreciar o que temos, todas as nossas coisas devem estar visíveis e com uma lógica. Se isto é assim tão revolucionário? Nem por isso. Eu ia com genuína vontade de aprender a navegar mais eficazmente numa casa na qual um pequeno humano mexe em rigorosamente tudo, mas saí com pouco que possa aplicar rapidamente e que seja algo completamente inaudito. Se calhar o problema sou mesmo eu, Marie. But you just didn’t spark joy.