Na primeira temporada de “The Bear” tudo respirava Chicago. A história de um restaurante de sanduíches cruzava-se com a vida da cidade, tudo funcionava como uma mesa onde se misturavam classes, ambientes, o velho e o novo, o fine dining com um pedaço de carne entre duas fatias de pão. Para lá das portas do restaurante traficava-se droga; nos bastidores da história da família Berzatto, um tio emprestava dinheiro com origens suspeitas. A história sentia-se real. Não no sentido documental — que se lixe isso, isto é ficção —, real como luta individual, o esforço de cada personagem para pertencer a um grupo e fazê-lo funcionar chegava ao lado de cá com força humana.
Foi essa uma das grandes belezas da primeira temporada da série, a forma como partiu de um cenário coletivo, um restaurante de sanduíches que precisava de reabilitação — física, moral e criativa — para depois lançar olhares particulares sobre as histórias de cada uma das personagens, cada trabalhador ou casa Berzatto. Muitas vezes com a música como um dos elementos de Chicago a atuar como personagem. Na banda-sonora ouviam-se canções vindas de diferentes cantos da cidade, que inundavam a história na melhor das formas, criando a ilusão de “The Bear” ser também a narrativa de uma cidade, um pouco à imagem daquilo que “The Wire” fez com Baltimore.
[o trailer da segunda temporada de “The Bear”:]
Tudo isto fez com que, sem grande aviso e pouco marketing agressivo, se transformasse no fenómeno que poucos souberam prever. A segunda temporada, que se estreia esta quarta-feira, dia 2 de agosto, no Disney+, reconhece que há um mundo para lá de Chicago. Acontece de forma óbvia no quarto episódio, “Honeydew”, realizado por Ramy Youssef (o criador e protagonista da brilhante “Ramy” é o primeiro e único realizador convidado de “The Bear), quando a narrativa vai até Copenhaga para acompanhar a jornada de aprendizagem de Marcus (Lionel Boyce). Contudo, essa saída da cidade para o mundo afirma-se em todos os episódios com música que ultrapassa as fronteiras de Chicago. Poderia ser um detalhe irrelevante, mas a supervisão musical é perfeita como tradução do clima desta temporada: saímos da linha de montagem do restaurante para testemunharmos a linha de montagem das personagens. As figuras que fizeram da primeira temporada de “The Bear” um dos melhores acontecimentos televisivos do ano passado crescem, transformam-se e aprendem.
Uma dessas canções é “Love Story”, de Taylor Swift. Agiganta o sétimo episódio, “Forks”, e está lá por um motivo: Richie (Ebon Moss-Bachrach) passa parte da temporada a arranjar bilhetes para um concerto de Taylor (algo com que alguns nos podemos relacionar), num gesto de reaproximação com a filha. “Forks”, contudo, é todo um movimento de reconciliação: do espectador com Richie, de Richie com ele mesmo e de Richie com Taylor Swift. Muitas vezes é difícil simpatizar com Richie. Ebon Moss-Bachrach é admirável na hora de criar personagens low-life insuportáveis (talvez a mais famosa, antes de aqui chegarmos, tenha sido Desi, em “Girls”).
Richie é a definição de um falhado, mente à ex-mulher e à filha para esconder os fracassos, grita para mascarar a inabilidade para fazer o que quer que seja, tenta anular a presença dos outros para fazer sentir a sua. No fundo, tem medo de ser inútil. No início da segunda temporada, encontramo-lo com receio da abertura do novo restaurante — vai deixar de ser o Beef para passar a ser o The Bear —, assustado que está que o novo o torne obsoleto. Durante parte deste segundo tomo, o que vemos é uma versão exagerada do Richie da temporada de estreia: grita mais alto, age com irracionalidade e quer fazer ainda mais do que aquilo a que está habilitado.
Nesse sétimo episódio, o primo Carmy (Jeremy Allen White, o protagonista, podemos dizê-lo), manda-o uma semana para fora. Parece um castigo, mas será um momento em que Richie irá aprender o seu lugar. A personagem transforma-se de um modo credível, se o espectador achava Richie insuportável, vai adorá-lo, vai ficar encantado com a história e transformação. Se isso não for suficiente, é capaz de ficar tocado quando o ouvir numa explosão de alegria a cantar os versos de Taylor Swift. Se mesmo assim não for suficiente, como bom português, vai gostar de saber que um dos restaurantes favoritos de Ebon Moss-Bachrach é a Cervejaria Ramiro, em Lisboa.
A revelação surge numa curta conversa realizada em junho, quando lhe perguntámos se prefere uma sanduíche de carne ou uma mesa de fine dining: “Não gosto muito de fine dining, sou um tipo muito casual, não gosto da formalidade. Gosto de sanduíches. Sabes, um dos meus restaurantes favoritos é o Ramiro. Gosto de comida boa servida de forma casual, com cerveja mesmo gelada. E é de loucos pensar que, depois de comer sapateira, camarão, ameijoas, um prego pode saber tão bem. Mas converti-me a essa ideia.”
Também falámos sobre a série, e Ebon coloca esta segunda temporada da seguinte forma: “Não são episódios sobre fazer comida, não é um guia para sobreviver no dia-a-dia. Antes, é sobre mudança, é uma história de construção de algo novo, destruindo o velho. Nem se vê o restaurante aberto. É sobre construir”. Continua e descreve assim a mudança de Richie: “Como ator, prefiro as cenas no restaurante, com toda a gente junta. É mais divertido, prefiro passar um dia com eles, do que passar um dia noutro sítio em Chicago. Mas foi uma necessidade da história. Se fossem apenas mais 8 ou 10 episódios de pessoas a gritarem uns com os outros, não estaríamos a fazer bem o nosso trabalho. Era preciso algo mais”.
Essa é a explosão na segunda temporada, esta sensação de movimento. O criador, Christopher Storer, e o seu braço direito, Joanna Calo — que além de produtora, realiza parte da série a meias com Storer — tiveram a coragem de tirar “The Bear” do seu meio e transformá-la em algo mais. Ao fazê-lo, a série deixou de ser sobre pessoas enfiadas numa cozinha, mas sobre pessoas. Quase todas as personagens crescem — mesmo as que não esperamos ver nesse processo. Em algumas, a evolução é notória através da atenção que lhes é dada, como são os casos já mencionados de Richie e de Marcus. Este último vai a Copenhaga num momento crucial da temporada, passar por um processo semelhante ao que Carmy passou no passado. É um rito de passagem, mas também uma forma de vermos Marcus fora da zona de conforto e perceber como ele é melhor do que a ideia que tem sobre si próprio. Nesse episódio, no quarto, surge o primeiro de muitos atores convidados desta segunda temporada: Will Poulter. Nesta nova época, desfilam também Jamie Lee Curtis, Bob Odenkirk, Sarah Paulson, John Mulaney, Olivia Colman ou Adam Shapiro.
Muitos deles são personagens num episódio muito especial, o sexto. Na entrevista — num momento em que esse episódio ainda não tinha sido disponibilizado à imprensa —, Ebon refere-o quando se pergunta sobre como foi filmar “Review” (um dos melhores episódios da TV de 2023), o acontecimento num único take que nos faz cair o queixo quase no final da primeira temporada. Ebon descreve “Fishes” como algo “fora de série, é algo que poderia mesmo existir fora da série, é um acontecimento à parte”. E é.
A série faz um flashback — mais à frente haveremos de saber mais sobre como tudo isto aconteceu — para um jantar de Natal de há cinco anos. Absoluto caos, aos berros, a duzentos à hora em direção a um muro. A sensação de que vai acabar mal é tangível desde o início, segue-se uma hora — sim, é como se fosse um minifilme — de descontrolo, onde o passado constrói o presente das personagens (e, quem sabe, o futuro).
O episódio é admirável, parece um remake de um filme de John Cassavetes, com Jamie Lee Curtis no papel de Gena Rowlands, e tem vários efeitos. Para lá da funcionalidade da história, prova de um modo bem vivo de que aquelas personagens respiram além da existência no restaurante, impondo-se como a prova irrefutável de que o caminho da segunda temporada funciona. Também reforça o que já se referiu aqui, que “The Bear” se eleva quando se concentra nas personagens, quando convence o espectador de que a atenção não está na ação, mas no processo, na jornada que cada um percorre.
Apesar da mudança de rumo nesta segunda temporada, o caos continua a fazer parte, é central: “Filmar o caos assim exige uma cabeça limpa, planeamento, comunicação, sobriedade, para fazer aquelas coisas parecerem tão doidas”, esclarece Ebon. Os tempos são outros, já não se pode fazer um “Apocalypse Now”, o caos filmado é uma coisa arrumada e pensada. Um artifício que funciona muito bem, porque é quando “The Bear” está fora de controlo que parece estar a controlar mais a situação. Seja em “Fishes”, em “Review” ou no último episódio desta temporada, “The Bear”. Porque manipula o espectador para o levar a conhecer aquele caos. Nesses momentos é como se quebrasse a quarta parede e nos convidasse a participar. E digamos que funciona: sentimo-nos presentes, mesmo que muito inúteis.
Na primeira temporada, fomos atirados para aquele cenário sem qualquer preparação, por isso é que os episódios iniciais parecem fazer todos parte de uma série diferente, como se estivesse sempre a recomeçar, a encontrar o seu estilo (mas não está, era só manipulação pelo caos). Nesta segunda, “The Bear” arranca com a atitude de quem não tem que provar o que quer que seja. Faz o seu caminho sem a obrigação de corresponder a expectativas. Sai do estigma de “série sobre restauração” para ser uma série tão humana como “The Sopranos”, “Mad Men”, “Breaking Bad”, “Better Call Saul”, no formato reduzido de 30 minutos (embora alguns episódios destas séries sejam bem maiores).
Série do momento? Deveria ser. Vá pela comida, fique pelas personagens. Ebon, ator com mais de duas décadas de carreira, diz que este é o momento mais importante do percurso que fez até aqui: “Senti uma mudança com ‘The Bear’. Significa muito para mim, talvez por ser algo em que estou envolvido desde o início, importa para mim tanto a nível pessoal como profissional. E tenho uma ótima personagem. As pessoas agora abordam-me na rua”.
“The Bear” é daquelas coisas que acontecem muito de vez em quando, alguém parece ter dado carta branca aos criadores para fazer o que quiserem. Assim acontece uma série que, antes de ser um sucesso, já arriscava na forma e em tirar o tapete ao espectador — outra vez o episódio “Review”. Reforçar essas intenções na segunda temporada é coisa de loucos, mas de bons loucos. Só uma saudável megalomania criativa conseguiria dar uma volta à personagem de Ebon Moss-Bachrach em trinta minutos desta forma. Quem não ficar rendido a este novo Richie tem, obrigatoriamente, de abdicar da sua humanidade.