Passados 21 anos desde o início da jornada de The Legendary Tigerman, as grandes linhas definidoras do projeto artístico de Paulo Furtado ainda poderão estar lá, mas o espetro alargou-se e aconteceu uma espécie de metamorfose. O principal reflexo disso é o disco editado em setembro, Zeitgeist. O álbum foi sobretudo construído com sintetizadores modulares, relegando as guitarras para segundo plano. A chama rock’n’roll mantém-se mas aparece atualizada, embrenhando-se em novas frequências e sons. É o disco em que o alter-ego e o seu criador mais se aproximam, em que The Legendary Tigerman mais se cruza com o Paulo Furtado autor de bandas sonoras (ele que também compôs a trilha sonora de O Encantador de Ricos, o mais recente capítulo da série Podcast+ do Observador).
Quando o visitamos na sua casa em Lisboa e somos encaminhados para uma sala-estúdio ao fundo do corredor, somos confrontados com essa imagem clara. Entre a parafernália de equipamentos — num dia em que o estúdio se encontra “desorganizado”, por estar em “reestruturação” — saltam mais à vista os sintetizadores do que as guitarras, ainda que coabitem o mesmo espaço, sob a luz da cidade que espreita pelas janelas amplas.
Embora Paulo Furtado não se recorde de qual era o grupo que tocava, houve um concerto no Lux Frágil que foi fulcral para esta mudança de paradigma. “É quando estás sem expetativas, de repente vais para um sítio e tens uma experiência que tem a ver com o que está a acontecer no palco, mas também tem a ver com as frequências que estás a sentir. E o que me fez pensar nesta coisa de que o rock’n’roll tem que ter subgraves, foi estar lá e ter uma experiência física sonora”, explica ao Observador.
[ouça na íntegra o álbum “Zeitgeist”, através do Spotify:]
“O sub é das coisas mais físicas que sentes. E de repente tive aquela epifania: porque é que quase ninguém do rock usa isto? Parece que estas frequências não existem, isto é muito estúpido. Então houve este exercício de começar mais por aí e a maior parte das músicas do disco começaram pelo baixo, pelo beat e depois eventualmente chegaram as guitarras e melodias.”
Um artista mais dado à experimentação do que aos cânones
Nascido em Moçambique em 1970, e criado na Coimbra do pós-revolução, Paulo Furtado começou por aparecer nos Tédio Boys, hoje uma banda mítica do rock português, que imprimia uma energia punk no universo rockabilly. As suas tours pela América tornaram-se lendárias, em busca dos mitos e ícones que serviam de referência. Mas o interesse pela experimentação e pela busca de novas sonoridades sempre existiu. Afinal, a quebra das regras e a irreverência estão no cerne do rock’n’roll.
Quando fundou, em 2000, os Wraygunn — que cruzavam o rock com a soul ou o gospel —, Paulo Furtado já se agarrara aos sintetizadores e rompia com os padrões do seu universo. “Quando os Wraygunn aparecem em Coimbra… Eu era um traidor à causa do rock, aquilo era uma coisa horrível. Uma coisa que não fazia sentido nenhum na comunidade rock conimbricense, e em muitas outras.”
Hoje, com 53 anos, o músico admite que os cânones do rock sempre o “irritaram muitíssimo”. “Sempre me desagradaram, mesmo no início. No [primeiro álbum de The Legendary Tigerman] Naked Blues tens, na capa, o clichê da mulher nua, mas também um homem vestido de mulher. Depois tens a capa do Femina, que é meio dúbia. Portanto, houve sempre uma brincadeira com esses cânones a todos os níveis. Mesmo aquela coisa de que o rock tem que ter guitarras… No fundo, são coisas que não têm nada a ver com a arte nem com a música, são ideias na cabeça das pessoas.”
À medida que dava início ao projeto de The Legendary Tigerman, enquanto one man band, ia-se estabelecendo, em paralelo, aos poucos, como autor de bandas sonoras — sobretudo para cinema, uma das suas outras grandes paixões, mas não só. Assinou trilhas para teatro e para séries de televisão ao longo dos anos. Em 2018, estreou o filme Hálito Azul, de Rodrigo Areias, cuja banda sonora foi composta num estúdio à beira-mar no sul de França. Foi lá que Paulo Furtado foi apresentado aos sintetizadores modulares e começou a explorar aquela linguagem musical que lhe era desconhecida. Esta faceta criativa foi sobressaindo, ganhou peso e importância na sua vida artística. Ao ponto de se fundir, no presente, com o universo rock, blues e punk de Tigerman.
“Quando as pessoas ouvem bandas sonoras, não identificam nem imediatamente nem posteriormente que fui eu a fazer e sempre houve — se calhar nos últimos 10 anos — uma evolução que acabou por não ser muito clara no contexto de Tigerman. Apesar de tudo, o Tigerman continua a ser a ponta do icebergue e a parte mais visível do meu trabalho. Acho que teve muito a ver com isso. Queria que esta parte, que estava mais escondida e menos clara para as pessoas, entrasse no universo Tigerman.”
A conceção de Zeitgeist, um disco esculpido
Depois de ter a “epifania” no Lux Frágil e de querer aproximar o seu lado de compositor de bandas sonoras ao mundo de The Legendary Tigerman, reformulando-o, estavam as sementes plantadas para chegarmos a Zeitgeist. E uma temporada em Paris faria o resto, na reta final de 2019.
“Estava muito dentro da minha cabeça, estava num sítio só meu, estive vários meses sozinho e passava muitas horas no estúdio. E depois ia saindo, experimentando a cidade, quotidianamente. Sempre com aquela ideia de todos os dias trabalhar e acrescentar qualquer coisa. Mas houve uma altura em que começaram a sair muitos textos e muitas letras, que tiveram a ver, por um lado, com aquela Paris que eu estava ali a viver, e por outro, eram coisas íntimas e pessoais por que estava a passar na altura.”
Todas as canções foram escritas nesta “cápsula temporal” em Paris. Mais tarde, já em Lisboa, Paulo Furtado ainda tentou escrever outros temas, mas já não se encaixavam na narrativa que havia criado. “Parece que houve ali uma transformação — e de facto ela depois tornou-se real.” Por um lado, havia o carácter universal de letras que refletiam sobre a desilusão com a sociedade moderna capitalista. Por outro, a morte dos pais também alimentou o impulso criativo, num disco que ficou algo envolto em sombras, numa escuridão difusa que tanto encontrava de forma concreta nas ruas obscuras de Paris como na névoa mental em torno daqueles tempos.
Regressou a Portugal no final de 2019, e rapidamente se dedicou a outro trabalho. Estava envolvido numa peça de teatro que ia estrear em março de 2020 mas que, por causa da pandemia, não chegou a apresentar-se. Durante estes meses, Paulo Furtado não tinha mexido nas letras. Existia um distanciamento que havia sido útil.
“E havia uma data de coisas que me pareciam pessoais e que depois, à luz de tudo o que estava a acontecer, parecia que tinham uma universalidade. Comecei a olhar para as letras e para o disco dessa maneira. Ou seja, houve um momento em que eu estava de facto a escrever sobre mim e sobre a minha experiência, e depois houve um outro à posteriori em que estava a olhar para aquilo que tinha escrito e a achar: ‘Isto é muito mais universal do que aquilo que eu achava’. E foi um bocadinho esse processo que aconteceu em relação ao conteúdo do disco.”
[o vídeo do single “Losers”:]
A construção sonora do álbum desenrolou-se depois, com a colaboração do produtor francês Anthony Belguise. Foi um processo perfecionista, de ínfimos detalhes. “Acho que é o disco mais arranjado. Há músicas que parecem simples e que têm 300 pistas, o que é uma loucura. Houve esse requinte, é um disco que é quase esculpido. É um vício que se apanha com os sintetizadores modulares, aquela coisa de procurar um som perfeito para aquele momento.”
O álbum levou três anos a ficar completo, com alguns intervalos pelo meio para trabalhar noutros projetos, o que levou a que amadurecesse enquanto repousava. Depois, as canções foram “pedindo” convidados, sobretudo no feminino. Asia Argento, Jehnny Beth, Anna Prior, Delila Paz, Sarah Rebecca, Calcutá, Best Youth, Ray e Sean Riley foram os convocados de Paulo Furtado para Zeitgeist.
“Não foi uma coisa pré-definida. As canções iam-me pedindo pessoas e quase todas elas estavam à distância de um SMS ou de um telefonema. Basicamente foi isso. Nem houve muito aquela coisa de ir procurar uma colaboração para ver o que é que acontecia.”
O tema com Jehnny Beth, Everyone, teve direito a um filme em Super8, realizado por si, que foi primeiramente apresentado em Paris e depois, recentemente, no Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT), em Lisboa. “Essa colaboração começou numa performance e num filme, mais tarde é que se transformou numa canção. E o contexto em que deve ser apresentado é mais de arte e de museu do que propriamente um contexto de videoclip ou de YouTube, pelo menos numa primeira fase.”
Já Losers, um dos singles do álbum e aquele com uma mensagem mais apocalíptica sobre a sociedade contemporânea, resultou num teledisco dirigido pelo cineasta Edgar Pêra. Para construir o filme, foram usadas ferramentas de inteligência artificial, um tema sobre o qual Paulo Furtado admite ter “muitas reservas”, por ser uma “questão delicada”. “A chave disto — e obviamente as fronteiras não são fáceis nem claras — é ser uma ferramenta e não um autor ou um criador ou um artista. Essa é a grande fronteira, pelo menos na música. Se é uma ferramenta que vai estar ao serviço da arte ou se vai ser uma espécie de mímica da arte.”
[o vídeo de “New Love”:]
E é quando perguntamos ao autor de Zeitgeist se este não será o álbum que melhor reflete o seu trabalho musical como um conjunto, se não será o disco mais Paulo Furtado de todos. “É capaz, acho que sim. Estava a pensar na pergunta e a questionar-me se este não seria, em vez disso, o disco menos Tigerman. Mas este disco também não é menos Tigerman. Porque todos os pressupostos que estão mais ou menos intrínsecos — aquela ideia de rock, blues, punk, minimal — continuam bastante presentes. Se calhar até mais neste disco do que no Misfit [o anterior, editado em 2017]. O Misfit se calhar é que é o menos Tigerman. Mas sim, neste álbum há muito do Paulo Furtado que não está presente em Tigerman. Provavelmente é o disco que melhor me espelha.”
A transformação nos palcos (e o dragão reencontrado)
Enquanto se dava esta metamorfose de The Legendary Tigerman em estúdio, nos palcos Paulo Furtado sentia a chama cada vez mais apagada. “Andava meio desiludido com os concertos, achava que não estava a conseguir criar os ambientes certos, que as coisas não aconteciam da maneira certa, depois achava que era o público que não está para aí… Mas se há alguém que não tem culpa é o público.”
À medida que as novas canções iam surgindo, o artista ainda não sabia exatamente como as transpor para o palco. “Será que isto resultava ao vivo, será que poderia funcionar? Havia uma série de perguntas para as quais eu não tinha resposta. Mas tinha muita vontade de experimentar e explorar esse caminho.”
Foi precisamente Zeitgeist e a adaptação a uma nova estrutura ao vivo que permitiu a Paulo Furtado sentir-se novamente realizado em palco. “Estes últimos três ou quatro concertos que dei, já com set novo e as músicas antigas reformuladas, com mais synths e outro tipo de ambientes, foram dos concertos mais mágicos que dei nos últimos anos. E isso deixou-me realmente a pensar que o que estava mal era o modo como eu estava a fazer os concertos. Este caminho que foi descoberto com o disco e com esta experimentação agora transforma-se na experimentação do que é a atuação ao vivo, do que pode ser, de como pode funcionar e do que se pode fazer, que é outra coisa completamente diferente e que não tive em conta quando estava a gravar. Portanto, estou nessa fase e está a ser muito fixe, porque dá para perceber que há um espaço enorme para as canções crescerem.”
Para Paulo Furtado, os concertos têm de ser sobre proporcionar uma “experiência celebratória coletiva”. “Tem de ser uma coisa intensa. Sou de uma altura em que ir a um concerto, quando eu era puto com 16 ou 17 anos, era uma coisa enorme. Ver um concerto de uma banda de que eu gostasse era uma coisa de vida ou de morte, quase. Isso perdeu-se um bocado, e ainda bem, por um lado, mas acho que essa experiência celebratória era aquele dragão de que andava à procura já há alguns anos. Sentia que isso estava um pouco a fugir-me entre as mãos, depois achava que poderia ser dos sítios onde estava a tocar, que às vezes não são os mais indicados, mas de facto havia uma outra coisa. Não sou religioso, mas acho que quando as pessoas vão à igreja não vão só à espera das palavras do padre. Vão à espera de uma experiência, quase de um conforto, e de pertencerem a uma comunidade. Os concertos têm de ter muito esse lado quase místico, sobrenatural. Sentia que o estava a perder e agora estamos a conseguir reencontrá-lo.”
O podcast “O Encantador de Ricos” e o futuro
O mais recente capítulo da série Podcast+ do Observador, O Encantador de Ricos, conta com banda sonora assinada por Paulo Furtado. O processo começou com “muita investigação”. O compositor tinha uma “memória difusa” do caso de Pedro Caldeira e foi ler bastante, para absorver aquele universo e desenvolver uma ideia sonora para o podcast.
“Tentei encontrar uma sonoridade que tivesse qualquer coisa a ver com os anos 80 mas que também fosse contemporânea, que tivesse qualquer coisa a ver com Portugal mas também com os Estados Unidos, e que te levasse para aquela ideia de finança. Com um certo requinte. Havia coisas que eu queria que te remetessem para um salão luxuoso, um conhaque… Uma sonoridade meio requintada, mas ao mesmo tempo com um lado negro e de suspense muito grande, que aos poucos te vai dizendo que algo de errado se vai passar”, sintetiza.
Foi como orquestrar a banda sonora de uma série televisiva, pois há um “tema principal, uma espécie de genérico”, que “pode e deve ser desmontado e desconstruído em outros ambientes e sonoridades”. “Quando vês uma série como Mad Men ou Twin Peaks, sabes que há uma sonoridade que está associada por vezes a personagens, noutros casos à própria série. É uma coisa que te situa dentro do universo dessa série. Acho que, no podcast, isso ainda ganha uma importância maior, porque não tens imagens. Esse encaminhar das pessoas para um determinado sítio é todo feito do ponto de vista sonoro, há essa responsabilidade acrescida.”
Paulo Furtado revela ainda que está a começar a trabalhar na banda sonora de um videojogo, um projeto que o está a entusiasmar bastante tendo em conta a especificidade do desafio. “Existe toda uma interatividade entre o que estás a viver no jogo e a música, que é muito mais passível de ser construída.” De resto, tem nos planos a produção de alguns discos para outros artistas e mais bandas sonoras que se encontram a caminho.
Quanto a The Legendary Tigerman, neste momento o foco reside nos concertos. Esta re-definição do seu universo significa que a viagem parte rumo ao incógnito. Acima de tudo, Furtado deseja manter “a chama viva”, o “respeito mudo pelo alter-ego” e antevê que o próximo disco provavelmente será uma reação a este, tal como Zeitgeist foi a Misfit. “Depois deste, o meu próximo álbum pode ser uma coisa minimal com quatro pistas super rough. Os discos dialogam muito uns com os outros. Este foi um regresso àquela coisa de one man band, mas com uma ideia do século XXI.”