Tudo isto bate certo. O álbum Recomeçar, editado em 2017, foi um dos melhores e mais verdadeiros conjuntos de canções do ano passado sobre a desgraça que pode ser o amor. Mas o mesmo primeiro disco a solo de Tim Bernardes continua na liderança desse campeonato em 2018. É um álbum construído aos pedaços sobre gente despedaçada, mas é um disco que faz sentido ser escutado do princípio ao fim como coisa inteira, sem pausas. E Tim Bernardes está esta semana em Portugal para uma série de concertos que apresentam estas canções (em Lisboa, na ZDB, esta quinta e no domingo, tudo esgotado; sexta em Setúbal, na Casa da Cultura, sábado no auditório de Espinho). Foi por isso que falámos com ele.
O músico brasileiro fez este disco porque tinha mesmo de o fazer. Não havia nada de errado com a banda dele, continua a não haver. E a banda é O Terno, trio maravilha de pop-rock-cool-samba-no-pé que editou o último disco em 2016, com o título Melhor do que Parece. Um álbum que, como os anteriores, é um mimo. No total, 12 canções sobre um mundo luminoso, uma banda sonora possível para todas as manhãs, porque todas são bonitas e todas são hipóteses para fazer novo e fazer melhor. Sucesso no Brasil, uns quantos amigos e curiosos noutros países — Portugal incluído — e tudo a correr bem. Mas este senhor Bernardes tinha umas quantas coisas a dizer sozinho, umas contas a ajustar, justiça da ordem do coração que não podia partilhar com ninguém. E foi daí que nasceu Recomeçar.
Tim Bernardes tem um jeito bonito de dizer que procurou o amor, que o encontrou e que, por alguma razão — ou por várias razões — ele se foi. Perdeu-o, deixou-o fugir, foi largado, acabou como ele não queria. Foi apanhado desprevenido e estas canções explicam como viveu tudo isso. Esse passo a passo para chegar outra vez a um lugar seguro (ou para conquistar essa ilusão) deu-lhe inspiração para fazer canções. Como se estivesse a escrever a pauta para um recomeço quase impossível. Daí o nome do disco, mesmo que aqui a palavra “recomeçar” possa ter significados diferentes.
Que ninguém procure por comparações e referências, isso seria uma falta de respeito e Tim Bernardes não merece que o disco que fez seja reduzido a tal análise. Podem sair coisas fáceis, como “isto é o cruzamento possível entre o apaixonado pelos Beatles que passou demasiadas horas a ouvir discos de Caetano e dos Fleet Foxes, tudo ao mesmo tempo”. Isto não está errado, mas vai ser sempre demasiado redutor.
Neste nosso bate-boca, o princípio fez-se pela pergunta mais óbvia. Um pedido de desculpas antecipado pelo cliché, mas tinha de ser:
Por que razão decidiu fazer um disco a solo?
Desde o início do Terno, lá para 2010, quando comecei a compor canções, de vez em quando fazia alguma música que sentia que não fazia sentido na banda, ou por ser mais íntima, ou por pedir algum arranjo mais minimalista, ou por falar de emoções que embora eu pudesse compor eu ainda não me sentia à vontade para expor. Essas canções eu fui guardando, para em algum outro momento eu elaborar qual seria o espaço legal para elas. O Terno seguiu como o foco principal da minha carreira nesses anos todos, mas de uns três anos para cá esse conjunto de canções que fui guardando foram tomando a forma desse disco solo e, após Melhor do Que Parece, eu me vi num momento com vontade, confiança e tempo para concretizar o disco.
Mas ao ouvir o disco é fácil ficar com a sensação de que estas canções aconteceram porque também aconteceu algo na sua vida que motivou uma mudança. Foi assim? Teve mesmo que recomeçar, teve que mudar de vida?
Essas canções têm uma característica: não terem sido compostas pensando em serem lançadas, muitas eu compus para mim e estava contente em lançar apenas as outras que eu escolhi para O Terno. Sinto que elas falam muito de um lugar de estar sozinho. Sobre sentimentos, pensamentos, buscas e desilusões que me vinham em fases de solidão após o fim de alguma estrutura anterior, seja um namoro, uma fase de vida, um modo de pensar. São realmente reflexos de coisas que eu passei e de fases onde algo acabou, o próximo ainda não começou e você se vê nesse “entre” e pensando em que caminho construir para si.
[“Recomeçar”]
Como é que consegue escrever todas estas coisas, cantar tudo isto que escreve? Isto é tudo pessoal, não é? Não sente que pode estar a revelar coisas a mais sobre a sua vida? Não é difícil cantar isto tudo ao vivo?
As músicas são realmente muito pessoais. Não à toa eu demorei para gravar esse repertório… Eu gostava muito das músicas e por isso tinha vontade de as mostrar, mas ao mesmo tempo era apegado a elas e tinha ainda algum receio da exposição dessa intimidade. Mas sinto que na trajetória com O Terno e especialmente com o último disco eu fui aos poucos ganhando confiança e vendo essa exposição de um jeito bonito. Melhor Do Que Parece tem muitas músicas dessas “íntimas” e o público cresceu muito nos últimos anos e mostrou uma identificação e resposta muito carinhosa com essas canções. Tem muita exposição de temas pessoais no Melhor do Que Parece e essa resposta no fim me deixou especialmente contente em me expor no Recomeçar. Quanto ao show ao vivo, eu gosto que as canções ficam ainda mais densas, cruas e expostas, mas isso pode se misturar com climas leves nas conversas com o público e na condução do show.
Ao mesmo tempo, canta emoções que são de todos, qualquer pessoa se identifica com tudo isto, uns mais que outros. Tinha noção disso, certo? E já alguém lhe disse isto, alguém ouviu as suas canções e lhe disse “era mesmo isto, é isto que estou a sentir”, ou algo parecido?
Eu imaginava que por falar de coisas muito próprias minhas poderia estar tocando em coisas próprias de quem estaria ouvindo o disco, mas a resposta do álbum tem mostrado isso para lá do que eu imaginava. Gosto muito de me identificar com uma música de alguém, me sentir confortado ou menos sozinho quando ouço alguma canção do Neil Young ou do Caetano Veloso ou de tantos outros, por exemplo. E é muito maluco ouvir uma pessoa contando que sentiu que “eu escrevi essa música para ela” ou que eu traduzi algo que a pessoa podia estar passando. Eu fico muito feliz, é isso que eu digo que me deixa tranquilo em relação a me expor, essa resposta é recompensadora para alguém que compõe canções.
A pessoa, ou as pessoas, de quem fala neste disco, ouviram as canções? Tem ideia?
Como falei, muitas das canções são antigas e muitas falam de coisas de fases que já passaram. Nem todas as músicas são de uma mesma experiência, embora simbolicamente elas tenham essa unidade e eu tenha buscado que o disco fosse como um filme, ou uma canção de 40 minutos toda sobre momentos de uma experiência. Mas me passou pela cabeça sim, se aquelas pessoas teriam ouvido as músicas que inspiraram. Uma das pessoas, com quem eu não tinha contacto há muitos anos, me escreveu contando que se identificou… é bem maluco isso. Há experiências que inspiraram muitas das músicas, mas quando elas vão para o mundo elas viram uma outra coisa e outras pessoas podem encaixá-las também na própria vida. Tem vezes que mesmo para mim o sentido da música vai se resignificando.
[“Tanto Faz”]
Escrever canções de amor, como estas são, sem parecer repetitivo ou sem fugir a lugares comuns, não é difícil? Deitou muita coisa fora? Ficou muita coisa por gravar?
Acho que essa era uma das questões que me passavam pela cabeça quando fiz muitas dessas músicas: se aquelas canções falando sobre sentimentos que já foram muito cantados seriam relevantes ou se poderiam soar de alguma forma banais. Guardá-las foi algo interessante para essa minha reflexão. Porque ao longo dos anos eu voltava a elas e via quais ainda me tocavam, com que fases eu mesmo podia me identificar, com que sentimentos.
Eu sou bastante auto-crítico quando escrevo, muitas vezes eu descartei canções antes de as completar. As que eu conclui, e que estão no disco, era porque me tocavam de verdade e eu achava realmente sinceras e relevantes para mim. Acho que no fim foi essa sinceridade, foi o poder me debruçar com capricho musicalmente ao fazer o disco nos seus mínimos detalhes que fez a diferença. A sinceridade, fugir do lugar comum, ainda que sem a pretensão de falar algo que nunca foi dito. É falar sobre amor mas de alguma forma sincera, bonita ou verdadeira para mim. É só isso.
Recomeçar tem canções escritas em tempos diferentes, umas mais antigas que outras, mas de alguma maneira parece que é um disco com o carimbo de 2017, parece que está ligado a esse ano. Um ano de mudanças, recomeços ou finais, de coisas tristes e de alguma esperança?
Completamente. Essas canções conspiraram e só foram sair para o mundo em 2017. Porque nesse ano realmente muitas coisas se encerraram, fases se concluíram e em muitos sentidos me senti numa posição na minha vida muito parecida com a que me levou a compor tantas das músicas. E acho que no Brasil e no mundo teve também um certo lance de assumir certas derrotas, entender desilusões, de fim de certos sonhos e ainda antes do início de novos que podem vir. É aquele vácuo que eu estava falando. Para mim pegou em muitos sentidos, foi curioso. De uma nova fase pós-adolescente por vir, o primeiro disco sem os meus amigos da banda, novamente um momento de introspectividade pessoal para me entender e pensar nos próximos caminhos. Acho que o arco que eu quis pensar na ordem das canções e no desenrolar do disco também faz sentido em terminar com Recomeçar que é a mais esperançosa do disco, talvez… nomear ele assim também traz isso de ser um disco de ruína mas que quer olhar para o que vai vir.
[“Não”]
Mas há muita melancolia aqui. Como é que pode haver esperança no meio disso?
É um disco que afunda numa tristeza para poder de alguma forma lavar a alma e aos poucos ir aceitando a ideia de fim e de recomeço. E acho que embora seja um disco com algumas canções que são tristes, mais que isso eu acho que a ideia era fazer um disco bonito. Mais do que triste. Das melodias bonitas, de tentar sublimar algumas tristezas de algum jeito belo.
Haverá mais discos a solo? Depois de um disco como este, como é que se faz outro? Já pensou nisso?
Eu tenho vontade de fazer mais discos a solo, sim. Gosto muito do ambiente do estúdio e de estar sozinho pensando no meu ritmo, os arranjos, takes, timbres, microfonações, mixagens e etc. Foi uma experiência que eu gostei muito e certamente vou repetir. Por enquanto estou animado também com o que a alternância entre disco a solo e disco com O Terno pode me dar. Poder dar um próximo passo numa proposta diferente da anterior me refresca a mente para quando chegar a hora de um próximo disco a solo. Eu já compus as músicas todas para um novo disco do Terno e estamos começando a trabalhar nelas. Estou empolgado com o repertório.
Quanto à pressão que pode haver sobre um próximo disco a solo, acho que não é algo que tem que me preocupar muito porque eu gosto muito de falar do que estou sentindo, explorar sons e canções que falem sobre o meu momento, experimentar. Provavelmente fico mais interessado em explorar além do que fiz do que tentar repetir algo que possa ter funcionado.
Que diferença faz andar em digressão sem O Terno? E dar concertos sem a banda? Não é difícil?
Tem suas diferenças e desafios, com certeza. Mas acho que o facto de ser algo que eu tenho muita vontade e prazer em fazer acaba sendo maior. No fim, o show é tanto diferente do Terno como é também diferente do álbum Recomeçar. Assim como eu sonhava em algum momento fazer um disco sozinho, com as orquestrações, canções e sons que eu imaginei tanto tempo, também tinha muita vontade de fazer um show completamente sozinho onde o foco eram as canções do jeito que elas surgiram lá no meu quarto, sabe?
Então o show é ainda outra experiência que eu estou curtindo bastante. Tem diferenças doidas, viajar com O Terno é especialmente legal porque são meus melhores amigos, é muito bom estar com eles, os shows energéticos, tudo. Viajar sozinho é legal para pensar nas coisas, explorar essa sonoridade solo. É bom poder me alternar entre esses formatos.
[“Quis Mudar”]
Como fica O Terno no meio de tudo isto?
Construímos muita coisa com o Terno até aqui, especialmente no Brasil no sentido de falar para um público e uma geração que se identifica com a gente e nós com ela. Sinto que ainda tem mais coisas para seguir construindo, coisas que a gente ainda quer explorar. A profissão de músico independente hoje, ainda mais num país ainda subdesenvolvido, é muito árdua e de uma construção tijolo por tijolo.
Gosto da ideia de poder alternar, mas ter um foco principal de cada vez. Nesses últimos tempos estou principalmente trabalhando o Recomeçar, ainda que com algumas datas de shows do Terno junto, e muito feliz com os rumos que isso tem tomado. Simultaneamente, estamos preparando essas canções para O Terno e que vão ser mais meu foco a partir de seu lançamento.