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Tony Soprano não é um gajo porreiro

O que é ser uma “boa pessoa”? A forma como são vistas, por público e crítica, as personagens principais de séries como "Breaking Bad" ou "The Sopranos" faz crer que os padrões éticos andam baralhados.

Walter White, a personagem principal de Breaking Bad (cuja 5.ª e derradeira temporada está a passar na SIC Radical), representa, supostamente, um homem bom que foi empurrado, pelas circunstâncias da vida, para situações em que é forçado a tomar decisões eticamente duvidosas ou até reprováveis, o que o coloca num “limbo moral”.

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Walter White (Bryan Cranston)

É a opinião generalizada dos espectadores e é também assim que costuma ser descrito pela crítica, sendo frequente que se faça um paralelismo de Walter White com protagonistas de outras séries de TV de sucesso, como Tony Soprano (The Sopranos) ou Don Draper (Mad Men) – todos eles são personagens multifacetadas e com zonas de sombra, das quais seria impossível ajuizar se são “boas pessoas” ou “más pessoas”. Mas quando se analisam estas personagens à distância, removendo a teia de encantamento em que a série prende o espectador, é bem diversa a imagem que emerge.

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Tony Soprano (o falecido James Gandolfini)

Tomemos o capo mafioso Tony Soprano: mata ou manda matar várias pessoas, algumas delas muito próximas dele por vínculos familiares e de amizade e por quem deu, por várias vezes, em público e privado, provas de carinho e apreço, e espanca brutalmente outras, deixando-as desfiguradas ou permanentemente incapacitadas. A motivação principal para os homicídios e agressões que comete ou manda cometer nada tem de nobre ou idealista que possa invocar-se como atenuante: visa manter em funcionamento, com o máximo de lucro, a máquina criminosa que dirige. Em última análise, mata por dinheiro, para manter o seu sumptuoso trem de vida (a mansão pirosa, o iate, o seu vício no jogo) ainda que, hipocritamente, se veja como um chefe de família providenciando para as necessidades do lar.

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A mansão dos Sopranos

Mas os seus acessos de violência não são meramente ditados pela lógica da máquina criminosa, nascem também da fúria irracional: por ter percebido um gesto ou uma frase como um desafio à sua autoridade de macho-alfa, por desconfianças paranoicas, por embirração, por necessidade de afirmação, por ciúmes (fundados ou imaginários). E, não sendo muito esperto ou subtil, os pretextos que invoca para algumas destas arremetidas são tão inverosímeis que até os seus obtusos capangas manifestam desconcerto (com prudente discrição, claro).

[Tony espanca o seu guarda-costas por um pretexto ínfimo e ridículo. A verdadeira motivação é mostrar aos seus “capitães” que ainda é ele quem manda]

Apesar de ser um quarentão, Tony não passa, emocional e intelectualmente, de um bully adolescente, de um rufia nas ruas de bairro pobre que se guindou ao topo da cadeia alimentar. A sua sede de poder e afirmação não é informada pelas subtis lições de Macchiavelli mas pela mais primária afirmação de força perante os pares. A única vez em que é derrotado num confronto físico, por Bobby Bacala, desdobra-se em justificações – escorregou no tapete, foi atacado à má-fé, ainda não recuperou de um ferimento grave; de outro modo, teria certamente levado a melhor.

[Carmela (Edie Falco) fala de assuntos de família, mas Tony não a ouve: rumina obsessivamente sobre a luta que perdeu com Bobby]

Por uma razão ou por outra – mas sempre com uma justificação que, na sua mente, é da ordem da inevitabilidade – Tony vai eliminando ou alienando boa parte dos que lhe são próximos, e vai ficando cada vez mais solitário.

É verdade que Tony também tem um lado vulnerável, que desperta alguma simpatia ao espectador: está sujeito a ataques de pânico, vive assombrado pela figura repressiva da mãe (mesmo depois da morte desta) e tem dificuldade em gerir os membros das suas famílias (a do sangue e a do crime). A sobrecarga de preocupações revela-se tão insuportável que se vê compelido a iniciar sessões com uma terapeuta, a Dr.ª Melfi, mas fá-lo em segredo pois a necessidade de aconselhamento ou tratamento psicológico é vista na comunidade mafiosa, regida por machismo, bravata e auto-suficiência, como profundamente desprestigiante e um sinal de fraqueza.

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Uma sessão de psicanálise com a Dr.ª Melfi (Lorraine Bracco)

Por vezes, Tony até se arrepende sinceramente do sofrimento que infligiu durante os seus acessos de fúria, mas a sua tacanhez e a sua incapacidade para empatia levam-no a tentar remediar estes erros com um maço de notas. É revelador um episódio em que, por espírito vingativo e mesquinhez, mexe os cordelinhos para fazer despedir um polícia que lhe aplicou uma multa de trânsito e que se comportou dignamente, não cedendo às suas tentativas de suborno e intimidação.

Quando volta a encontrar o ex-polícia, agora como modesto empregado comercial, o arrependimento por ter destruído uma carreira por algo tão fútil e mesquinho acaba por insinuar-se e leva Tony a tentar convencer o homem a aceitar uma gorjeta desproporcionadamente vultosa. Quando este a recusa, Tony olha-o com ar de incompreensão: na sua mundivisão cínica e estritamente materialista, o dinheiro pode resolver tudo. Tony, que é hipersensível quanto à sua própria dignidade e respeitabilidade, não tem a mais ínfima consideração pela dignidade e respeitabilidade dos outros.

[Tony vai às compras e encontra o polícia que fez despedir e nega que tenha tido alguma coisa a ver com isso]

Também a sua relação com as mulheres reflete esse monstruoso egocentrismo: não se limita a ser um womanizer, trata as amantes (aquelas com quem desenvolve uma relação prolongada, já que da miríade de mulheres com quem tem relações sexuais pontuais nem vale a pena falar) como descartáveis e se, num breve momento de lucidez, percebe que as magoou, tenta reparar o agravo com um presente dispendioso. Não é por acaso que uma das amantes (Gloria Trillo) se suicida e outra (Irina) o tenta.

[Tony acusa a sua terapeuta, a Dr.ª Melfi (Lorraine Bracco) de não ter sido capaz de impedir o suicídio de Gloria Trillo; depois assume (ou finge assumir) que a culpa foi sobretudo sua, prevendo, acertadamente, que Melfi o irá contradizer e libertá-lo do fardo da culpa]

Vale a pena considerar a questão do “ganha-pão” de Tony e dos restantes mafiosos: David Chase, o criador da série, não deixa que as vítimas das atividades criminosas sejam meras abstrações, como é frequente nos filmes e séries sobre criminosos. Em várias ocasiões, a série dá a ver quem são as vítimas dos esquemas de extorsão e corrupção que sustentam a família Soprano: cidadãos decentes, vulgares, que tentam sobreviver com trabalho honesto e são forçadas a ceder uma quota do dinheiro arduamente ganho. A vida de luxo de Tony e seu gang é paga com o sofrimento, a miséria e, se necessário, a morte do cidadão comum.

NEW YORK - MARCH 27:  (L-R) Actor James Gandolfini, creator and executive producer David Chase and actress Edie Falco attend the HBO premiere after party for "The Sopranos" at Rockefeller Center March 27, 2007 in New York City.  (Photo by Evan Agostini/Getty Images)

David Chase, ao centro, entre James Gandolfini e Edie Falco, numa foto de 2007 (Evan Agostini/Getty Images)

Em contrapartida, os mafiosos são retratados numa vida de ócio: são emblemáticas as cenas, recorrentes, no estaleiro de construção, onde os falsos trabalhadores impostos ao sindicato ou ao empreiteiro pela Mafia preguiçam todo o dia num círculo de cadeiras, bebendo e trocando piadas soezes, enquanto os verdadeiros trabalhadores se afadigam em fundo. De resto, Tony e o seu círculo passam o tempo a jogar às cartas e ao bilhar, a comer, a beber e a olhar gulosamente (ou a fornicar) as strippers do Bada Bing, o clube gerido por Tony. As atividades “intelectuais” de Tony circunscrevem-se a folhear, enfadado, revistas de pornografia, pesca ou barcos de recreio.

Chase tem também o cuidado de mostrar quão perigoso é olhar a representação ficcional do crime e da violência, quando isolada de um referencial ético: Tony e os seus capangas passam boa parte do seu ócio a ver velhos filmes de gangsters e percebe-se que muitas das suas atitudes e mundivisão são informadas pelos códigos de conduta criminosa dos mafiosos e gangsters do cinema e que na violência ficcional eles apenas vêm o lado cool.

David Chase, o autor da série, tem o cuidado de mostrar quão perigoso é olhar a representação ficcional do crime e da violência, quando isolada de um referencial ético.

Apesar de se apregoar católico e defensor dos valores cristãos, os únicos valores que Tony efetivamente reconhece são os do clã criminoso, com os seus códigos de honra brutais e arcaicos – e mesmo esses podem ser dobrados de acordo com os seus caprichos e propósitos vingativos.

Mas se Tony fosse só esta besta maligna, inculta, racista, misógina e homofóbica, o retrato seria maniqueísta e a personagem seria unidimensional. Tony preocupa-se (intermitentemente) com os filhos, fica sinceramente arrependido (por umas horas) por trair sistematicamente a mulher, Carmela, uma vez por outra é capaz de um ato de generosidade desinteressada, fica genuinamente feliz quando a família está reunida em ambiente festivo, gosta de contar anedotas (embora o seu humor seja quase sempre boçal, viva da humilhação alheia e esteja perto do sarcasmo).

Mas o seu amor pela família é menor do que ele gosta de pensar: na verdade, despreza o filho, AJ (Anthony Jr.), por este ser um banana, e o suposto amor pela mulher é constantemente desmentido pela sucessão de amantes e prostitutas com que vai para a cama. De qualquer modo, o apreço pelos familiares mais chegados não bastaria para contrabalançar os aspetos negativos e fazer dele um “bom homem”, revela apenas que é um ser humano. Afinal de contas, Hitler tinha genuíno afeto pelos seus cães (sobretudo por Blondi) e era encantador com as crianças.

Claro que há personagens cuja maldade é menos “ambígua” do que a de Tony. Tome-se, por exemplo, Paulie Gualtieri, um dos seus capitães:

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Paulie “Walnuts” Gualtieri (Tony Sirico)

É um psicopata colérico e impiedoso, de grande coragem em confrontos físicos, mas com um pavor paranoico de doenças. É um burgesso (o seu “sistema de crenças” é uma caldeirada de crendice popular e programas de TV mal digeridos), insuportavelmente tagarela e de uma cupidez, sovinice e mesquinhez inexcedíveis. É gabarola, hipócrita e um completo sabujo perante Tony. Nas raras vezes em que aparenta demonstrar humanidade ou empatia, descobrimos afinal que o seu gesto é interesseiro (visando, por exemplo, a extorsão da pessoa que aparentava ir proteger ou auxiliar). Todavia, o facto de Paulie ser um crápula sem remissão está longe de bastar para que o espetador veja em Tony uma “boa pessoa”.

E como se vê Tony a si mesmo? No seu egocentrismo exacerbado, não duvida de que é uma “boa pessoa”, portanto até se sente injustiçado com o destino quando os “negócios” e a vida familiar ou amorosa não lhe correm de feição. Numa ocasião, lamenta-se dos seus infortúnios à Dr.ª Melfi: acha que a vida o trata mal, quando “I’m a good guy, basically”; logo a seguir, acrescenta “I love my family”, como se gostar da família o ilibasse de todo e qualquer ato reprovável.

Estando a sociedade moderna rigidamente organizada e codificada e sendo a maioria dos cidadãos incapaz de violência, é natural que projectem em personagens como Tony as suas fantasias de vingança.

Mesmo que nem todos os espectadores considerem Tony “a good guy, basically”, poderão encontrar nele um aspeto sedutor. Todos nós sofremos, no quotidiano, pequenas afrontas aos nossos egos: ou é um colega que faz uma observação sarcástica, um chefe que toma uma decisão injusta, um representante da autoridade que nos trata com arrogância, um fulano que se mete à frente na fila do trânsito ou do hipermercado; por vezes são agravos menos triviais, decorrentes de um sistema de justiça ineficaz e permeável a pressões e corrupções.

Estando a sociedade moderna rigidamente organizada e codificada e sendo a maioria dos cidadãos – pelo menos os que levam vidas que lhes permitem acompanhar The Sopranos – incapaz de violência (muitos nem terão coragem para matar um coelho com as suas mãos), é natural que projetem em personagens como Tony as suas fantasias de vingança. Tony é o homem livre, pré-civilização, não sujeito ao estorvo dos códigos de conduta em sociedade, que não tolera afrontas e se ressarce de forma expedita e implacável de qualquer agravo. David Chase, que não dá ponto sem nó, está consciente desta projeção e é por essa razão que nos mostra a Dr.ª Melfi a ser violada e a ver o seu violador (que foi identificado e capturado pela polícia) partir em paz devido a um absurdo erro judicial.

Naturalmente, isto leva Melfi a alimentar fantasias de vingança contra o violador e Chase mostra quão impotentes são os flácidos cidadãos comuns (ela, o ex-marido, o filho) para dar vazão a esse sentimento de profunda injustiça. Falta-lhes tudo: a determinação, o sangue-frio, a técnica, a ausência de escrúpulos. Mas Chase vai mais longe: mostra como Melfi, que tem uma relação de desprezo/fascínio por Tony (que por sua vez sente por ela uma forte atração, da qual Melfi está consciente), considera, durante algum tempo, a ideia de contar-lhe o que se passou, sabendo que Tony logo arranjaria forma de infligir ao violador a dolorosa e exemplar punição que, quer as autoridades, quer ela, quer os homens da sua família, são incapazes de providenciar.

[A maltratada Dr.ª Melfi trava uma luta interior sobre se deve pedir a Tony Soprano que puna o seu violador]

Até as atenuantes sociológicas que poderiam ser invocadas para desculpabilizar o comportamento maligno de Tony são ridicularizadas por David Chase: Meadow, a filha de Tony, que o sabe criminoso mas tem sido resguardada da torpeza e crueza da vida oculta do pai (ou prefere ignorá-la), surge a defender o comportamento do pai e seus capangas perante o namorado “liberal”, Finn, que ficara horrorizado ao ser confrontado com uma pequena amostra da violência e vileza reinantes no círculo de Tony.

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Tony numa conversa de família, com AJ (Robert Iler) e Meadow (Jamie-Lynn Sigler)

Explica Meadow, em tom professoral e pedante, que aqueles homens se limitam a reproduzir padrões de resolução de conflitos importados da pobre e corrupta sociedade rural do Mezzogiorno e que a sua associação criminosa é apenas uma reação à discriminação de que os pobres emigrantes italianos foram alvo quando tentaram integrar-se na sociedade americana – o seu pai e os outros mafiosos não são culpados dos seus atos, são vítimas das circunstâncias.

[Meadow explica ao namorado que os mafiosos não têm culpa de ser como são]

Mas o cerne da série e os momentos mais reveladores da natureza de Tony Soprano estão na relação que estabelece com a Dr.ª Melfi. Ele aceita o que parece ser a provação de desvelar o seu íntimo e examinar os seus atos no consultório de uma terapeuta, mas o que na verdade pretende é reencenar as suas malfeitorias perante um “juiz” com aura de rigor e isenção e assim emergir, branqueado, como uma “boa pessoa”.

The Sopranos tiram a sua força e originalidade da tensão que se gera entre os factos a que assistimos e o exercício periódico da sua reescrita levada a cabo por Tony no consultório. Tony não frequenta a Dr.ª Melfi para ser curado dos seus ataques de pânico – ele é astuto e percebe rapidamente que ela não tem poder para isso e é também uma alma desamparada. Fá-lo para poder viver tranquilamente com a sua consciência. Ao enganar a Dr.ª Melfi, é também a si mesmo que engana, as mentiras e distorções e reinterpretações que lhe “vende” acabam por convencê-lo a ele de que agiu bem, que não tinha alternativa, que era a coisa certa a fazer.

Dando-se David Chase a todo este trabalho para deixar claro que Tony Soprano não é uma “boa pessoa” e que as suas ações não são justificáveis, seja qual for o ângulo por onde se olhe, é desconcertante que tanta gente, muita dela lúcida e bem informada, o coloque num “limbo” moral.

Walter White também não é um gajo porreiro

Terá Walter White melhores argumentos para ser colocado nesse limbo? Afinal de contas, no início da série Walter é um pai de família carinhoso e cumpridor da lei; em tempos fora um cientista brilhante e ganhava a vida como professor de Química numa escola secundária.

https://www.youtube.com/watch?v=-d23GS56HjQ

[Walter White tenta, ingloriamente, motivar os seus apáticos alunos para as maravilhas da Química]

Só circunstâncias extraordinariamente adversas – a descoberta de que tinha um cancro fatal – e a necessidade premente de assegurar a subsistência da família após a sua (previsível) morte (um motivo altruísta, portanto) leva-o a usar os superiores conhecimentos de química para produzir a metanfetamina mais pura no mercado. E uma vez na senda do crime, são as circunstâncias e a mecânica própria dos meios criminosos que ditam que Walter se vá tornando cada vez mais malévolo e implacável.

Digamos que esta é a leitura mais superficial e generosa. Porém, nada indica que Walter tenha sequer sido uma “boa pessoa” antes de se converter em Heisenberg, o fabricante de metanfetamina – é uma “bondade” by default, não resultante de uma escolha deliberada. Afinal, a sociedade moderna está organizada de forma que raramente somos confrontados com grandes dilemas morais, com escolhas do tipo “ou eu ou ele”, de maneira que a nossa verdadeira natureza poucas vezes é posta à prova. Não fosse o cancro, Walter poderia ter mantido a sua fachada de bom cidadão e bom pai de família, quando estas “qualidades” decorriam, afinal, da inércia, da falta de imaginação e da acomodação às convenções.

À medida que a série progride, a verdadeira natureza de Walter emerge. A princípio, a falta de prática torna-lhe difícil tirar uma vida humana, mas acaba por superar esse obstáculo e lá para o fim da série já mata com desenvoltura, por mero impulso (veja-se a forma como liquida o ex-sócio Mike). De resto, revela-se ganancioso, arrogante, rancoroso, hipócrita, vaidoso, frívolo, hiper-susceptível, egocêntrico, irascível, caprichoso, cínico, calculista, manipulador, destituído de escrúpulos – em resumo, um sociopata.

[Logo no início da série, Walter e o seu sócio, Jesse Pinkman, passaram por um longo e agoniante processo para decidir a quem caberia matar Krazy 8, uma testemunha incómoda. Uma moeda atirada ao ar confia a funesta missão a Walter, que a adia até ao último momento.]

Tudo isto estava latente nele e bastou sair dos carris da vida regrada e aborrecida para se revelar. Walter gosta genuinamente da mulher, Skyler, e do filho, Walter Jr., mas é um amor possessivo e manipulador e, nunca é de mais insistir, o amor pela família próxima não basta para definir a bondade das pessoas, até porque decorre, em parte, de um instinto biológico básico – também os escorpiões zelam pelo bem-estar da sua prole.

Quanto ao argumento, que Walter repetidamente apresenta a si mesmo e aos outros, de que tudo o que fez, fez pela família, é sumamente hipócrita. Basta ver que ele começa por fixar mentalmente uma quantia que bastaria para assegurar uma vida minimamente confortável à mulher e ao filho, mas logo se embriaga com os fabulosos lucros da venda da metanfetamina e entra numa espiral de ganância.

Walter tem de si mesmo (como Tony) a imagem de “provider”, o chefe de família que zela por que no lar haja sempre comida na mesa – é uma visão arcaica e sexista, que tem implícita a subalternidade e dependência da mulher e nada tem a ver com a realidade das sociedades ocidentais de hoje, em que cada vez mais mulheres fazem vida independente e assumem, muitas vezes com pouca ou nenhuma ajuda, a tarefa de criar os filhos. Porque se assume, então, que uma mulher inteligente e organizada como Skyler não seria capaz de dar rumo à sua vida na ausência de Walter?

[As decisões que se fazem pelo bem-estar material da família nunca são más decisões? Walter parece albergar um remorso residual, mas o seu sócio, Gus Fring (Giancarlo Esposito), tranquiliza-o]

Mas outro fator contribui para que a desculpa de assegurar a subsistência da família soe a falso: afinal de contas, os White vivem numa enorme casa com piscina, Skyler não trabalha, possuem dois carros, e em momento algum – mesmo depois de Walter receber a fatídica notícia do médico – dão sinais de passar por privações ou de terem adotado um estilo de vida mais modesto.

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A casa da família White

Ao longo da série, à medida que se envolve em negócios cada vez mais perigosos, Walter revelar-se-á um verdadeiro génio, determinado, meticuloso, muito inteligente e com uma panóplia de recursos e uma capacidade de improvisação e desenrascanço de fazer inveja a MacGyver, o que levanta questões no que respeita à coerência e credibilidade do argumento.

Como pôde alguém que esteve a alguns passos de ganhar Prémio Nobel da Química ter escolhido uma obscura carreira a dar aulas a adolescentes obtusos e apáticos numa escola secundária do Novo México? E porquê descer mais uns degraus no apagamento e humilhação ao aceitar um emprego em part time como humilde funcionário de uma estação de lavagem de automóveis? Porque emerge o Walter criminoso como alguém tão revoltado e tão sequioso de afirmação? Afinal de contas, a vida baça do “velho” Walter não foi uma opção dele? A profunda frustração e a consciência aguda da disparidade entre os seus imensos talentos e o seu ínfimo estatuto, que são o que alimenta a sua fúria contra o mundo, não resultaram das escolhas que fez? E será o fabrico de metanfetamina a única forma de dar colorido e viço à vida? Não haverá formas mais criativas e socialmente menos obnóxias de superar uma crise de meia-idade?

Se a justificação sociológica esgrimida por Meadow para justificar o comportamento criminoso de Tony Soprano – reprodução de padrões de comportamento da sociedade rural do Mezzogiorno e reação à discriminação contra imigrantes italianos – é esfarrapada, ainda lhe resta um fundo de verdade. Mas Walter não tem atenuantes de ordem sociológica: tornou-se criminoso por opção consciente.

No final, no último encontro com Skyler, Walter acabará por admitir que não enveredou pela vida de crime pelo bem da família – fê-lo por si mesmo, fê-lo “porque gostava e era bom nisso e porque o fazia sentir vivo”, porque o thrill daquela vida estava nos antípodas do torpor e banalidade da vida pré-metanfetaminas.

[Walter confessa à mulher, Skyler (Anna Gunn), a sua verdadeira motivação]

Chegados aqui, há que reconhecer que Vince Gilligan, o criador de Breaking Bad, não só está longe de possuir o talento de argumentista de David Chase, o criador de The Sopranos, como não possui a sua visão moral: enquanto Chase arquiteta uma complexa reflexão em torno de Tony Soprano, explicitando, através de múltiplas pistas, o que pensa da personagem, Gilligan está sobretudo interessado em construir uma sucessão de episódios excitantes (e fá-lo com competência) e trata de forma leviana o plano ético.

É significativo que, em toda a série, se omita a faceta odiosa do fabrico de metanfetamina, ou seja, os muitos milhares de vidas destruídas pelas toneladas de droga cozinhadas pelo master chef Walter. O fabrico de metanfetamina é representado como atividade perigosa e ilegal, mas sem ónus moral – trata-se de um mero desafio à inteligência e implacabilidade dos jogadores. O espectador poderá ficar suspenso pela angústia de saber “será desta que ele é apanhado?”, mas nunca é confrontado com a monstruosidade moral de fazer uma fortuna fabulosa à custa da destruição de milhares de vidas.

Breaking Bad partilha com Weeds a premissa de um chefe de família que, face a uma disrupção na sua pacata vida, escolhe a produção e tráfico de droga como forma de prover ao bem-estar familiar, mas é inquietante que Gilligan trate a metanfetamina de Breaking Bad com ligeireza comparável à da erva que está no centro de Weeds.

Outra frente em que Gilligan fracassa por comparação com Chase é na construção de personagens: Breaking Bad é habitada por marionetas ao serviço de uma narrativa que se quer surpreendente e trepidante e quase não têm existência fora do plot principal (um caso exemplar é Walter Jr., a exceção parcial é Skyler). Mesmo Walter White é esboçado de forma esquemática, estando muito longe da riqueza e espessura de Tony Soprano.

Walter é, no entanto, uma das personagens favoritas dos espectadores de TV e para tal contribui o fator acima invocado para explicar parte do poder “sedutor” de Tony Soprano: Walter, na sua caminhada entre Mr. White, ovino professor de Química, e Heisenberg, o lupino barão da droga, dá corpo ao sonho do cidadão anónimo de deixar de ser apagado e submisso, forçado a engolir todos os desaforos, e passar a ser respeitado e (melhor ainda) temido.

Não é por acaso que uma das frases que os fãs da série adotaram como emblemática é “Say my name”, a ordem/desafio que Walter/Heisenberg lança a um poderoso barão da droga, e não é por acaso que os fãs identificam a essência da personalidade de Walter com os momentos em que este dá largas ao seu ego tenebroso e caprichoso e ergue o “dedo do meio” contra o mundo. Walter encarna uma rebeldia adolescente, inconsequente e sem alvo, uma necessidade premente de afirmação pessoal que, ironicamente, pouco tem no seu cerne, pois Gilligan e a sua equipa de argumentistas esqueceram-se de o preencher.

Walter é um egomaníaco com um vazio no centro do ego. Convivemos com Walter durante 62 episódios e não descobrimos nele sinais de vida interior, interesses intelectuais ou hobbies. Não é de admirar que quando o dinheiro da droga começa a jorrar abundantemente, Walter não saiba o que fazer dele: limita-se a acumulá-lo e a comprar (e destruir) carros potentes e vistosos (em oposição ao discreto e desajeitado Pontiac  Aztec do tempo em que era apenas um professor de Química) e comporta-se como se fosse um adolescente desmiolado.

[Walter ia devolver o carro do filho ao vendedor, mas mudou de ideias]

Debilidades de construção de personagens à parte, não restam dúvidas de que Walter White é uma criatura tão censurável do ponto de vista ético como Tony Soprano. De onde vem então esta tendência generalizada para apresentar ambos como personagens moralmente “ambíguas”?

Nasce de uma confusão entre realidade e ficção e entre complexidade e ambiguidade. Tony Soprano é uma personagem complexa mas não ambígua do ponto de vista moral. Como espectadores de The Sopranos, queremos seguir a sua trajetória ao longo de 86 episódios, mas se Tony Soprano fosse real, desejaríamos que ele fosse preso no primeiro minuto do primeiro (e, logo, último) episódio – e desejá-lo-íamos com redobrada convicção se fossemos habitantes de New Jersey e desejá-lo-íamos ainda mais ardentemente se fossemos seus vizinhos.

Quando se fala de ficção é comum enfatizar a importância da identificação do leitor/espectador com a personagem, o que é um equívoco potencialmente perigoso. O espectador não tem de identificar-se com Tony Soprano, tem apenas de o achar suficientemente interessante para querer saber o que lhe vai acontecer ou querer descobrir mais sobre a sua natureza. As personagens têm de ser suficientemente ricas, complexas, intrigantes e estar envolvidas em eventos imprevisíveis e variados, de forma a suscitar interesse – não necessariamente identificação.

O interesse que a personagem nos suscita nada tem a ver com a justeza moral das suas ações. Pelo contrário, é frequente que os velhacos deem personagens bem mais interessantes do que as pessoas banais ou que os beneméritos.

Uma biografia de Hitler é, à partida, muito mais cativante do que uma biografia de Jorge Sampaio, mas ninguém (civilizado) hesitaria, se lhe fosse dado escolher, qual dos dois preferiria ter como governante, patrão ou vizinho.

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