O ano era 2018. A geringonça tinha nascido há três anos e o Bloco de Esquerda reunia-se para fazer o balanço da experiência. Mais do que isso: mais próximos do que nunca do poder, os dirigentes subiam ao palco da XI convenção, em Lisboa, para mostrar ambição — real ou insuflada — e faziam referências à vontade assumida de fazer parte de um Governo. “Queremos ser Governo? Sim, e estamos preparados”, garantia Mariana Mortágua. Começavam a escrever-se listas de bloquistas ministeriáveis. O Bloco devia ir “até ao infinito e mais além”, sintetizava Francisco Louçã. As listas de críticos, que pediam um partido mais radical e menos ligado ao poder, eram reduzidas.
O ano é, agora, 2021, e o mundo — o mundo lá fora, tal como na bolha política portuguesa — mudou. Desde a última convenção, o Governo recusou entrar numa geringonça 2.0 com o Bloco e o Bloco votou contra um Orçamento do Governo; o mundo mergulhou numa pandemia que trouxe nova crise económica consigo; os críticos internos do partido apresentaram-se numa moção que vai a votos; e a conversa sobre ir para um Governo — que classifica o Bloco como um partido “desertor” — acabou.
O Bloco que se reunirá (parcialmente, por causa da pandemia) este fim de semana em Matosinhos, para a XII convenção, será necessariamente um Bloco diferente. Num conclave que servirá para posicionar o partido neste ciclo político, as cúpulas bloquistas quererão falar da relação com o PS e capitalizar com o voto contra no último Orçamento, mas também acertar a estratégia sobre a ascensão da direita do Chega; analisar as eleições que ficaram para trás — incluindo o desaire presidencial — e os objetivos para as que hão de vir; navegar por entre os casos polémicos que têm embaraçado o partido; e enfrentar uma oposição interna que quer ser ouvida.
Tudo isto enquanto outras sombras pairam sobre o pavilhão de Matosinhos: mesmo que não esteja visivelmente presente nos discursos do fim de semana, a futura sucessão na liderança do PS é um dos assuntos que ocupam a cabeça dos bloquistas.
O fim da geringonça e o “divórcio” do PS
A expressão é de António Costa, que há umas semanas comparava a relação com o Bloco de Esquerda à dos casais que se divorciam, mas que até podem voltar a juntar-se. Nesta convenção, os bloquistas terão, pela primeira vez desde o tal “divórcio”, a oportunidade de se deitarem no divã e analisarem o “relacionamento com o Governo”, que, “nas suas diversas vertentes, será o prato principal da convenção”, afirma um dirigente.
Acontece que para o Bloco o que aconteceu não foi exatamente um divórcio: os bloquistas esperam ter reunido argumentos com o voto contra o último Orçamento para agora surgirem mais fortes na mesa das negociações, onde já confirmaram que se sentarão. Se num primeiro momento admitiam que a decisão de romper com o PS, por acreditarem que as respostas à crise gerada pela pandemia eram insuficientes, representava um risco eleitoral grande, neste momento a direção está confiante em que a escolha foi a mais acertada.
Por um lado, porque nas sondagens o partido vai mantendo percentagens semelhantes às que tinha antes de assumir esse risco; por outro, porque os dirigentes consideram que o tempo foi dando razão às exigências do Bloco. O segredo agora será insistir sem parar nessa “razão”, tentando provar porque é que no dossiê do Novo Banco — que foi uma das linhas vermelhas do BE no OE2021 e que voltou agora a aquecer, com a auditoria do Tribunal de Contas — o Governo estava errado; lembrando que, na questão dos apoios sociais, até Marcelo Rebelo de Sousa ficou do lado da oposição; ou frisando a necessidade de reforçar o SNS em tempos de pandemia.
Com uma “visão crítica da governação do PS, em particular do período pandémico”, e propostas sobre mudanças de fundo — nas carreiras do SNS ou na legislação laboral — os bloquistas querem apresentar-se como o partido que continua a ser a chave para impedir uma maioria absoluta do PS. Por um lado, aproveitando a posição do PCP, que continua a viabilizar Orçamentos, o que pode permitir ao Bloco mostrar-se como a oposição mais dura à esquerda.
Questionados sobre se isto não deixará, pelo contrário, o BE numa posição mais irrelevante e fora de jogo na aprovação dos documentos mais fundamentais para a governação, os bloquistas recusam essa visão: o voto contra trouxe liberdade de movimentos e capacidade para subir a parada e mostrar exigência, garantem. Por outro lado, para isso contam com as mudanças no xadrez político português.
O fator Chega
Ironicamente, a ascensão do Chega em Portugal será também um assunto que o Bloco quererá transformar na sua força, e para ganhar força no eleitorado de esquerda. Em Matosinhos, deverão ser vários os bloquistas que dedicarão as suas intervenções a analisar essa mudança no cenário político, com a convicção de que o “debate mais cultural” que o Chega veio trazer é um dos confrontos perfeitos para o Bloco assumir, colocando-se do lado oposto da barricada — a estratégia tem aliás sido seguida pelo partido, regularmente, no Parlamento e foi adotada também nas presidenciais, quando Marisa Matias tentou surfar a onda do batom vermelho (#Vermelhoembelem) contra André Ventura. Sem sucesso.
Ainda assim, a convicção entre as cúpulas do Bloco é que o “caldo cultural que dá espaço à extrema-direita” tem de ser combatido e que o partido pode ter aqui uma posição chave, falando ao eleitorado que se sente “esquecido” ou abandonado pelos políticos.
E é neste ponto que os bloquistas acreditam que podem fazer a diferença: com o potencial que o Chega representa para uma polarização à esquerda, o Bloco quer apresentar-se como o partido que pode falar ao tal eleitorado esquecido e impor medidas ao Governo do PS. Resta saber se consegue e se a narrativa do Governo sobre um partido que considera um “desertor” em tempos difíceis cola, ou não, melhor do que a do Bloco.
Provar que as presidenciais não mostram um padrão
A convenção acontece escassos meses depois de o partido ter registado um sério rombo eleitoral: Marisa Matias obteve apenas 3,95% dos votos, abaixo de João Ferreira e muito abaixo dos simpáticos 10% que tinha conseguido em 2016. Por isso, será importante para o partido agarrar-se às sondagens e mostrar que as presidenciais foram fruto de circunstâncias específicas, em que Marcelo Rebelo de Sousa até à esquerda roubou votos, e que os estudos de opinião mostram uma tendência diferente quando o assunto são eleições legislativas.
Por isso, nesta análise, Marisa Matias até pode ficar para trás — numa derrota que é assumida pela direção, mas cuja cara principal é a da eurodeputada –, mas o partido quer olhar em frente e desvalorizar o desaire eleitoral. Conta com um fôlego maior do que vários outros partidos: o Bloco tem tão pouca implantação local que as eleições autárquicas deste ano, que servirão de prova de fogo ou de vida para partidos como PSD, CDS e PCP, não são as mais relevantes para o percurso do partido de Catarina Martins.
O que não significa, claro, que não haja objetivos a fixar: é preciso segurar a vereação em Lisboa, mas um novo acordo com o PS na capital fica mais difícil se a hegemonia de Fernando Medina prevista pela primeira sondagem sobre a capital se confirmar; crescer nas grandes áreas metropolitanas; e mostrar que o partido consegue somar a norte do Tejo, idealmente elegendo mais representação.
As polémicas de violência e assédio
O que começou por ganhar força no Twitter acabou por se materializar em algumas denúncias concretas e casos incómodos para o Bloco. Primeiro, foi conhecida a acusação — feita naquela rede social — por violência doméstica lançada por uma ex-namorada e ex-militante ao deputado Luís Monteiro, que devolve a acusação e vai reagir na Justiça, mas já desistiu entretanto da sua candidatura a Gaia e aos órgãos do partido.
Depois, somaram-se mais duas queixas internas no partido, ampliadas nas redes sociais, onde se garantia que havia uma onda de desfiliações no Bloco — que os números fornecidos pela direção do BE desmentem. Ainda assim, a sucessão de problemas relacionados com bandeiras essenciais para o partido colocam em causa a capacidade do Bloco de lidar com estes casos e manter um discurso coerente, equilibrando a credibilização das alegadas vítimas com o princípio da presunção da inocência.
O crescimento dos críticos
As contas são difíceis de fazer, uma vez que a maior corrente crítica da direção, organizada no movimento Convergência, não se apresentou a votos na última convenção, pelo que dizer que “cresceu” é relativo. Ainda assim, para este conclave esses críticos construíram uma moção e conseguiram 18,6% dos votos dos delegados, pelo que agora reclamam mais atenção e representação nos órgãos do partido.
Ao Observador, o ex-deputado Pedro Soares, que assina a moção, coloca “duas questões essenciais” para antecipar a convenção. A primeira é que o Bloco deve afirmar-se “através da radicalidade”, com um “programa próprio” cujas bandeiras — leis laborais, renegociação da dívida, reforço dos serviços públicos, regionalização — chocam de frente com o PS, avisa. Por isso, o ciclo do “geringoncismo” deve ser ultrapassado, para que o Bloco abandone o que classifica como um “discurso ambíguo” que permitiu, por exemplo, que a época da geringonça começasse e terminasse sem mexidas de maior nas leis laborais.
A outra crítica é interna: com a “hegemonia” da atual direção, perdeu-se “pluralidade interna”. Agora, “e logo no primeiro embate”, há uma “erosão” da cúpula, reclama, e por isso os críticos podem passar a ter um “papel fundamental na construção dos órgãos” do partido — “agora, a Comissão Política e a Mesa Nacional são todas da moção A”, da direção, reclama (um reparo que não é literal: os críticos internos estão representados nesses órgãos, sendo que o próprio Pedro Soares faz parte da Mesa Nacional do partido, embora a linha da direção esteja claramente em larga maioria). Os críticos garantem que o objetivo é “contribuir” de forma construtiva, mas avisam: é preciso analisar a “linha política” da atual direção, que terá “dois anos muito difíceis” pela frente. À moção E juntam-se outras três, a C, a N e a Q, que somam muito menos representantes.
Bem vindo, Pedro Nuno?
Não é claro se no palco de Matosinhos poderão ser deixadas pistas sobre este tema, mas é um dos assuntos que ocupam a cabeça dos dirigentes bloquistas. A sucessão no PS não é para já, mas há vários nomes — Pedro Nuno Santos e Fernando Medina surgem recorrentemente, mas Ana Catarina Mendes e Mariana Vieira da Silva também são referidas como hipóteses — que são colocados para o ciclo pós-Costa. E é a esse ciclo que o Bloco está atento.
Nas cúpulas, há quem veja com bons olhos uma sucessão protagonizada por Pedro Nuno Santos, que nos tempos da geringonça negociava com o Bloco de Esquerda no papel de secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares. A vantagem óbvia é que com Pedro Nuno, da ala esquerda do PS, pode ser mais fácil chegar a acordos com o PS; a desvantagem é que, pelo mesmo motivo, o Bloco poderá correr um maior risco de ver o seu eleitorado ‘roubado’ por um PS mais virado para a esquerda.