O telefone tocou insistentemente naquele princípio de tarde. Era domingo e viajara nessa semana até Barcelona. Atendeu-o. Do outro lado a mulher conta-lhe que Marco, o “Orelhas”, por ele treinado, seu amigo de há muito, um e outro do Cerco do Porto, havia agredido um árbitro em Rio Tinto.
Milton é o treinador do Canelas (que este domingo joga contra o Maia). Mas não foi assistir ao jogo naquele dia. E assistir é tudo o que pode fazer hoje. Até dezembro não poderá sentar-se no banco de suplentes. Apenas poderá treinar o Canelas durante a semana e, quando o jogo chegar, entregá-lo ao adjunto para que este o comande. Milton foi castigado por ter incitado à violência (ainda que garanta não o ter feito) num jogo diante do Grijó, em outubro. O árbitro expulsou-o. O castigo de um ano de suspensão veio depois.
– “Quando ela me contou o que o Marco fez, pensei logo em desistir. Até liguei para o meu adjunto e disse-lhe: ‘Acabou! Vamos embora, acabou…’”
O castigo. Agora a agressão de Marco. Antes a recusa dos adversários em defrontar o Canelas. Milton fartara-se. Mas ponderou. Ponderou e resolveu ficar. Não por ele, mas pelos que treina. “Não desisto de nada. Sou do Cerco [do Porto]. Tudo o que tenho na vida foi ganho à minha custa. Se saísse estaria a pensar só em mim e não neles [jogadores]. Era fácil, era tão fácil salvaguarda-me saindo. Mas com isso ia prejudicá-los. Então resolvi ficar”, recorda. Mas esta não foi a primeira vez que pensou em bater com a porta no Canelas.
“Ao contrário do que muita gente diz eu nunca quis deixar o clube quando começaram a dizer que o Canelas era violento. Antes pelo contrário. Só por uma vez pensei em deixar o clube. E foi quando se intrometeram – ou tentaram intrometer — no meu trabalho. Nessa altura tive que encostá-los à parede. A mim ninguém me diz quem é que joga e quem é que não joga. Quando isso acontecer, quando decidirem por mim, vou-me embora”, garante.
Mas o “ciclo” de Milton no Canelas pode estar a chegar ao fim. E explica: “Não sei o que é que vou fazer a seguir. Não sei mesmo. Mas vou-te ser sincero: às vezes penso em não treinar. Pelo menos enquanto cumprir castigo. No Canelas dificilmente vou continuar. Até porque a sete jogos do fim da época ainda não fui contacto para continuar. Os ciclos são algo que termina – e o meu ciclo no Canelas está mesmo a terminar.” Convites para treinar outros clubes garante que não tem. Poucas vezes os teve em doze anos de treinador. Não por não ter qualidade – Milton considera-se até com qualidade “a mais” para a distrital. Nunca os teve porque não se sabe vender.
“Subi de divisão com o Cruz, com o Progresso e com o Gondim. Em quatro anos de treinador nos seniores, subo de divisão em três clubes e desço um — e só desci o Águas Santas porque apanhei o clube com quatro pontos a meio da época. Mas também te digo: por muito bom que tu sejas, se não te souberes vender não chegas a lado nenhum. O que é ‘vender’? Às vezes é saber dar uma palmadinha nas costas de um presidente que quinze minutos antes falava mal de ti a não-sei-quem. Nunca dei – nem vou dar.” E acrescenta, Milton: “Aconteça o que acontecer o que quero é divertir-me no futebol. Mas também seria hipócrita se não te dissesse que sinto que podia perfeitamente pegar numa equipa do Campeonato Nacional de Seniores para o ano. Gostava, claro que gostava. Passei por todas as divisões da Associação de Futebol do Porto. Subi de divisão em três das quatro. Acho que posso dar o salto. Não é ambição desmedida da minha parte; é uma ambição lógica.”
A infância do gordinho que copiava Baía (e até se “safava” na baliza)
Milton César dos Santos Ribeiro. 35 anos. É casado. Pai de uma filha – o rapaz está para chegar. Nascido e criado no Cerco do Porto. Um portista dos sete costados. Cabeleireiro de profissão. Antes foi mecânico. Depois militar. Mas foi o futebol, sempre o futebol, que o cativou. E logo em criança.
“Começou tudo lá no bairro. Lá no Cerco nós tínhamos muitos ‘estádios’ para treinar – em cada rua fazíamos balizas com paralelos e era um ‘estádio’”, graceja. Com apenas dez anos foi treinar ao clube do bairro. “Como era gordinho – e ainda sou – fui para a baliza. É sempre o gordinho que vai à baliza, não é? [Risos] Mas safava-me, não era talentoso mas safava-me. O trabalho está sempre à frente de tudo, até do talento. E como trabalhava muito — e ainda trabalho –, safava-me bem. Muitas vezes até me treinava sozinho para evoluir.”
O ídolo de Milton era Vítor Baía. Sobretudo ele. “Óbvio que era. Sou portista, só podia ser ele. E tentava copiar o Vítor Baía em tudo: nas defesas, no penteado, até nos trejeitos. Mais tarde, o Peter Schmeichel acabou por ser alguém que eu também admirava. E achava que um dia podia ser como eles.” Depois do Cerco passaria ainda pelo Futebol Clube do Porto, Salgueiros e Gondomar. “Quando ainda jogava nos juniores do Gondomar – que na altura estava na II Divisão B – treinava com os seniores e até cheguei a jogar na Taça de Portugal”, lembra.
Mas tudo se alteraria. “Foi preciso começar a trabalhar. O meu pai viu ser-lhe diagnosticado cancro de pele. Vivia só com ele e com uma irmã. Como ele não podia trabalhar, fui eu procurar trabalho: ajudante de mecânico.” Contudo, e mesmo na oficina, Milton ainda ambicionava ter a baliza por profissão. “Tinha 17 anos na altura. Às vezes diziam-me para ir desapertar um parafuso. Não desapertava — se soubesse que podia magoar a mão, não desapertava. Dizia-lhes que precisava das mãos para ser guarda-redes. [Risos] O Gondomar ofereceu-me trinta contos na altura para continuar lá. Era pouco. E, então, foi para um clube da distrital aqui do Porto, o Desportivo de Portugal. O meu primeiro carro foi pago com o pouco dinheiro que ganhei no Desportivo.”
A morte precoce do pai afastou-o de vez dos relvados. Ou talvez não. “Pouco depois da morte dele fui para os fuzileiros, em Vale de Zebro. Como é óbvio o futebol ficou de parte — mas ainda fui campeão na Marinha, nos torneios que havia entre as bases militares. Posição? Sempre a guarda-redes, claro. A inteligência para jogar ‘à frente’ eu até tenho – o problema é que tenho dois ‘pés esquerdos’…”, graceja.
Deixaria a Marinha, voltando ao Cerco Porto para viver. Um regresso ao bairro e ao clube do bairro. Um ano no Cerco primeiro, outro no São Roque a seguir. E depois pendura as luvas. Agora de vez. Tinha 22 anos. “Ainda fui campeão da III Divisão de amadores no São Roque. E é então que o treinador do São Roque me convida para ser o treinador de guarda-redes dele no Cerco. Fui treinar gajos que tinham quase o dobro da minha idade – havia um que era o Avelino que realmente tinha quase o dobro. Mas aceitei. O clube pagou-me o curso de treinador e aceitei”, conta.
Os putos do Cerco e a influência de Zé Tó
Não demoraria até que Milton assumisse um lugar de treinador principal: o dos iniciados do Cerco. O desafio não era somente o de vender; outros desafios havia que eram mais importantes no começo. “Pouca gente sabe disto. O meu objetivo nesse primeiro ano foi o de perceber o que é que eu podia fazer para acabar com um fenómeno dos iniciados do Cerco, que era o das expulsões atrás de expulsões nos jogos. E consegui acabar…” Como? Tentando ser mais do que apenas um treinador.
“O Cerco é um bairro pobre. Com dificuldades. Mais do que um treinador tive que um amigo, um psicólogo, às vezes um pai. Sou aquele tipo de treinador que quando um jogador vai para o hospital eu vou lá ter com ele. Sou aquele tipo de treinador que ouve a mulher reclamar que passei mais tempo com os jogadores do que com a minha filha quando era bebé. Sou aquele tipo de treinador que teve jogadores a dormir em sua casa porque não tinham onde ficar. Sou aquele tipo de treinador que foi lavar louça para casa de um jogador porque o pai tinha morrido e a mãe o tinha deixado. O treinador não pode ser só treinador. É muito mais.”
Milton garante que talento para o futebol é coisa que não falta no Cerco. Alguns chegam longe, outros não. “Olha o caso do Paulo Machado. Sim, esse: o da Seleção. O Paulo sai do Cerco para o Futebol Clube do Porto. E antes de assinar pelo Porto era um puto com ranho a pingar no nariz, vindo de uma das piores famílias que havia no Cerco a nível de confusão, e ele conseguiu ser alguém no futebol. O que faz a diferença é quando eles finalmente percebem que o futebol pode ser um escape à pobreza e aos problemas que têm em casa. O que tentei fazer naquele tempo em que treinei os iniciados do Cerco foi encaminhá-los.”
– “Sabias que eu treinei o Paulo [Machado] quando ele jogava no Olympiacos? Verdade. O treino dele nas férias era correr do Cerco até à Ponte do Freixo e da Ponte do Freixo ao Cerco. Até que me pediu para treinar no Gondim – para ganhar ritmo. Há um treino ele dominou a bola, quis rodar — à profissional — e sair a jogar. Parei o treino, fui para cima dele e disse-lhe: ‘Foda-se, Paulo! Não te disse que a bola tinha que sair rápido para a frente?!’ Mal digo isto, cai-me a ficha. O gajo vai-me mandar para… E ele pediu-me desculpa, vê lá tu.”
Paulo Machado é o maior caso de sucesso de um futebolista vindo do bairro onde Milton cresceu. Mas ao treinador não lhe importava que todos viessem a ser como Paulo. “Isso é o que menos importa, a sério que é. Cheguei a ter miúdos que antes do treino ainda não tinham comido nada o dia todo. Às vezes ao fim-de-semana, antes de o jogo começar, nem tinham tomado o pequeno-almoço. A primeira refeição era no clube. Às vezes tinham más notas. Conversava com eles e dizia-lhes: ‘Ou melhoras ou acabou-se o futebol…’ Não é um ‘chicote’; é dar a mão. A formação deles é muito mais importante do que o resultado. Mas isso não quero dizer que não tenham que se aplicar no futebol também. O futebol é como a vida: no futuro, eles vão ter que disputar um lugar no trabalho, vão ter que disputar uma namorada [Risos], vão ter que disputar uma casa…. O que não podem é acomodar-se nunca. Nem desistir ao primeiro obstáculo.”
O carácter que tem como treinador, Milton deve-a muito a Zé Tó. “Infelizmente o Zé Tó faleceu. Conheci-o nos juniores do Gondomar. Foi meu treinador lá. E é a minha maior referência. Não é o Mourinho, não é ninguém: é o Zé Tó.” E porquê? Milton recua, curiosamente, a um momento menos feliz. “O Gondomar vencia há não-sei-quantos jogos. E não sofria golos. Até que fomos jogar com o Freamunde. Havia um livre indireto a meio-campo e um jogador deles, pummm, mandou um ‘bilhete’ à baliza. Eu só tinha que deixar a bola entrar — o livre era indireto e não contava –, mas armei-me em guarda-redes, atirei-me, toco na bola e ela entra na baliza. Foi validado. Quando vou para o balneário ouço o Zé Tó a discutir com o adjunto. ‘É ele que vai continuar a jogar, ponto final!’, disse ele. No final vou ter com o Zé Tó e peço-lhe desculpa. Sabes o que é que ele me disse? Deu-me uma palmadinha no cachaço e disse-me: ‘Vá, andor daqui! Andor! Estás fodido, Milton: vais ter que jogar e mostrar a toda a gente que eu fiz bem em confiar em ti…’ Aquilo marcou-me muito. E essa também é o meu modo de estar no futebol: não deixarei nenhum jogador meu cair. Nunca.”
Amigos, amigos… futebol à parte (e o aguerrido Canelas “à Simeone” de Milton)
– “Vou-te contar uma história: quando cheguei ao Leça do Balio, o Leça ficava sempre nos últimos lugares. Cheguei aos juniores e escrevi no quadro: CAMPEÕES. E perguntei: ‘Qual de vocês é que acha que isto é possível?’ Ninguém me respondeu. E depois perguntei-lhes: ‘Quantos de vocês não gostam de mim?’ Eles tinham sido meus adversários. E houve um que disse: ‘Oh mister, efetivamente…’ Pedi-lhes duas semanas para mudar a opinião dele. E mudei. E conseguimos ser campeões.”
Milton socorre-se de uma célebre tirada de José Maria Pedroto para explicar que não é no relvado o que é fora dele. “Uma coisa é o Milton como adversário e outra é quando o têm como treinador. Não tem nada a ver. É que não tem nada a ver. Mas também te digo: não me incomoda nada que os adversários não gostem de mim. O Pedroto é que dizia: ‘Se formos bons rapazes todos nos vão ao…’”
Mas às vezes não só são os adversários no relvado que o veem como “mau rapaz”. “Estou agora a tirar o nível II do curso de treinadores. Entro pela primeira vez no curso e estão lá treinadores do Paços de Ferreira, do Espinho, do Maia. Quando me viram a passar, começaram a olhar uns para os outros e a tirar-me a ‘pinta’. Uma semana depois há um que me diz: “Quando te vimos a entrar pensámos ‘Foda-se, o treinador do Canelas aqui, este bronco aqui?! Vou ter que estar a levar com ele?! Mas afinal és um gajo porreiro!’ Claro que se pegares numa frase inflamada minha após o jogo vais dizer que eu sou um gajo maluco dos cornos. Mas depois do jogo não sou nada daquilo que tu vês.”
O porte é imponente. De braços largos, fortes, mais de cem quilos de peso, rosto cerrado no banco, efusivo no trato enquanto lá se senta, grita, quase fica rouco, esbraceja, corre, o vernáculo sai-lhe como a uma vírgula. Violento? Nunca. Mas acabaria castigado por ter, alegadamente, apelado à violência. Milton nega que o tenha feito. “Outro treinador na mesma situação não seria castigado como eu fui. Nem expulso teria sido.” Mas o que é que aconteceu afinal? “Nem palavrões disse. O Marco sofreu uma falta que o árbitro deixou passar. Quando ele [Marco] voltou a receber a bola eu gritei-lhe: ‘Marco, dá-lhe!’ O gajo ouve-me, remata e faz um chapéu ao guarda-redes. Esta merda está filmada! Começa toda a gente a festejar, o árbitro corre até mim e diz-me que estou expulso. Expulso?! Apanhei um ano de suspensão porque o árbitro escreveu no relatório que eu disse ‘Dá-lhe! Fode-lhe [ao adversário que havia disputado a bola com o jogador do Canelas pouco antes] uma perna, Marco!’ Nunca disse tal coisa. Se tivesse dito, admitia-o.”
A duração do castigo, garante Milton, está na “má-fama” que o Canelas tem. Mas há razão para o clube ser mal-afamado? O treinador não se revê na violência que muitos lhe atribuem. E toma como exemplo o “aguerrido” Atlético de Madrid de Simeone: “Olha o Atlético: é violento? Não é. É aguerrido. O Simeone é que diz: ‘Não ganha quem é melhor, ganha quem trabalha mais.’ Nas distritais, às vezes a falta de talento é compensada com o esforço. Claro que se não consegues parar o gajo, dás-lhe uma ‘trancada’. É falta. Mas isso não é ser violento. Sabes qual é a primeira coisa que tu ouves dita por um central – em qualquer lado! – quando a equipa dele perde a bola e é apanhada em contra-ataque? Ele diz ‘mata’. Achas que está a apelar à violência ou está somente a dizer para se fazer uma falta a meio-campo e matar a jogada? Por outro lado, tenha o adversário mais condições ou menos condições – e nesta altura há clubes a jogar com o Canelas que têm um orçamento e estruturas muito superiores –, ‘nunca vi um saco com dinheiro a ganhar jogos’. A frase não é minha, é do Cruijff, mas aplica-se. No final o que conta, aquilo de que toda a gente de lembra, são as vitórias.”
– “Na altura da fuga do Pedro Dias eu dizia que o melhor sítio para ele se esconder era no balneários do Canelas. Como toda a gente tinha medo de vir cá…”
Para Milton, os adversários recusavam-se (ao todo, doze clubes fizeram-no ao longo da época) a defrontar o Canelas porque nele havia elementos dos Super Dragões. Mas garante que estes são uma minoria. “Atenção: o facto de pertencerem à claque do Futebol Clube do Porto não faz deles uns hooligans. Com a saída do Marco [Gonçalves] o Canelas só tem três jogadores — ouviste: três! — que são dos Super Dragões. No Canelas temos sportinguistas, há um benfiquista. Ser-se do Porto não é um critério de seleção para jogar comigo. Há professores, cabeleireiros como eu, estudantes — alguns até estão a tirar o mestrado –, temos quarentões e miúdos de vinte e poucos anos. Há de tudo no Canelas. O que têm em comum é o amor ao futebol. Achas que é pelo quê? Pelo dinheiro? Às vezes o prémio de jogo é vinte euros e nem dá para o gasóleo. Outras vezes é um pequeno-almoço na confeitaria Mimos, em Canidelo — e é sempre a mesma coisa: bolacha com marmelada”, lembra.
Aos jogadores que treina no Canelas, Milton vê-os como exemplos de dedicação ao desporto. Isto quando os treina a todos ao mesmo tempo. O que é coisa rara. “Pouca gente sabe, mas o Canelas treina à terça, quarta e quinta-feira. Às vezes ao sábado também. Aqui trabalha-se muito. Muitíssimo. Às vezes chega a hora do treino e só tenho dez gajos para treinar. Porquê? Porque os outros ficaram a trabalhar até mais tarde, ou porque têm o filho doente. É difícil ser treinador no futebol amador. Ser treinador do Futebol Clube do Porto é fácil; difícil é aqui. Tenho um central, um miúdo, o Oliveira, que entra às oito da manhã no trabalho, sai às oito da noite, treina e vai trabalhar outra vez. Ele é serralheiro mecânico – é um trabalho lixado, cansativo. Como é que eu posso exigir mais dele? Não posso. E o caso dele não é o único”, garante.
Mas nem só de dedicação (e má-fama) se faz o balneário do Canelas. Também é preciso “o gajo que organiza a francesinha”. Como assim? “Num plantel tu precisas de ter os craques, os carregadores-de-piano, os batalhadores, os malucos… e o gajo que organiza a francesinha. Nós temos um gajo dentro do balneário que é o que organiza a francesinha – se é para organizar jantares é com ele. Não joga é um caralho. O gajo é uma merda, não tem pés nem tem nada, mas é necessário: sem esse tipo de jogadores, que são o ‘palhaço’ do grupo, também não se ganha”, explica, gracejando.
“Posso crescer mais como cabeleireiro do que como treinador. Mas a minha paixão ainda é o futebol”
Milton concilia o relvado com os salões: é cabeleireiro. Sempre conseguiu separá-las, às profissões. Mas é cada vez mais difícil fazê-lo. “Começam agora a ver-me nas notícias e sabem que sou o treinador do Canelas. Antes não sabiam. A minha sorte é que as pessoas que me conheciam como cabeleireiro antes de eu aparecer nas notícias sabem que é impossível eu ser como me pintam. ‘Ele não pode ser este arruaceiro…’, dizem elas.” Mas, afinal, onde é que Milton melhor se sente?
“Não sei. Mas se tivesse que escolher hoje entre a profissão de treinador e a de cabeleireiro, escolheria a de cabeleireiro. Sinto que é onde posso crescer mais pelo meu trabalho. Claro que ainda tenho uma paixão enorme pelo futebol, mas é hoje muito menor do que era há uns anos. Porquê? Porque não te dão valor quando fazes alguma coisa bem, porque não faltam dedos a apontar para ti quando fazes alguma mal, mas quando tens capacidade para trabalhar e talento não te reconhecem isso. Chegas a um ponto em que pensas em desistir”, desabafa.
Milton lembra que treinar Canelas, mais do que em qualquer outro clube onde treinou antes, é “um desgaste enorme”. E o pouco que recebe não chega nem para o que no futebol investe. “Deviam era ter vergonha e não me pagar nada, foda-se! [Risos] O futebol dá-nos muito menos do que o que nós lhe damos. Não vi muito do que a minha filha fez nos primeiros anos de vida porque passava muito tempo fora de casa – e mesmo quando estás em casa, às vezes não estás lá.”
Apesar de tudo, da ausência em casa, do cansaço, da má-fama do Canelas, apesar de tudo Milton “diverte-se” a treinar. Só não lhe digam é que não ele quem treina o clube. Isso não. “Às vezes ganho e dizem-me: ‘Ganhaste porque tens lá o Macaco!’ Passo-me. Se o Macaco manda alguma coisa? Ele bem tenta, ele bem tenta. [Risos] E grita, mal vê a bola grita logo: ‘Mete aqui na frente! Mete aqui na frente!’ E tenho eu que gritar mais alto do que ele: ‘Não o ouçam, caralho! Não o ouçam… Joguem à bola!’ Medo do Macaco? As pessoas têm medo dele, claro que têm. Mas falo pior com ele do que com os outros. Ele aguenta bem”, explica.
Este domingo há jogo contra o Maia. Mas haverá árbitro para o apitar? “Acho que vai haver jogo domingo – e que vai ser um jogo perfeitamente normal. O que aconteceu com o Marco é uma situação que não pode acontecer mas que aconteceu. Mas isso não pode ter uma repercussão no resto da equipa. Foi algo mau, impensado e irrefletido. Mas que acontece.” A Milton, esse, vamos vê-lo na bancada. A treinar. “Estou castigado, é verdade, mas isso só me impede de ir para o banco. É claro que é muito mais difícil treinar a partir da bancada. Tu no banco consegues chamar um jogador e da bancada às vezes não por causa do barulho. Na bancada pareço um maluquinho aos gritos. Se os jogadores me ouvem? A mim ouvem, a mim sim. Ai não que não ouvem. O gajo tem que olhar para mim! Chamo-o uma, duas, três, dez vezes se for preciso.”