A relação acabou há já quatro anos, mas o Bloco de Esquerda continua à procura do ponto-ótimo de convívio com os socialistas. Se por um lado este PS, da maioria de António Costa, é uma carta fora de qualquer equação e até próximo do diabo de outras eras políticas, por outro há que começar a fazer as pazes com o passado semi-feliz da “geringonça” — que teve lá Pedro Nuno Santos, o homem da ala esquerda do PS, que pode vir no futuro e sai incólume do primeiro dia de trabalhos bloquistas. Se esta Convenção fosse um retiro de auto-ajuda, traria entre as suas conclusões o conselho para guardar o melhor, mas sem esquecer o mais doloroso, para não ter de voltar a remoer neste trauma difícil de ultrapassar.

Quando o PS apareceu no palco da Convenção foi quase sempre para ser atacado, um ponto que uniu maioria e críticos, embora — até aí — com perspetivas diferentes: uns atacam sobretudo o PS do presente, os outros o PS do passado, do presente e até do futuro. Uma coisa é certa, o Bloco não quer falar de eventuais acordos com os socialistas. O que há agora é uma maioria absoluta do PS, que diabolizam por todos os lados. Seja pela instabilidade política, seja por ter sido resultado de “uma artimanha” de Costa (que teve o BE como importante vítima eleitoral). Depois, se verá. Mas o passado a dois (na verdade foram quatro) também não foi assim tão mau. A gestão continua difícil de fazer, mas há três passos que o Bloco de Esquerda vai seguindo para tentar ultrapassar a traumática queda eleitoral que aconteceu depois do fim da relação.

Geringonça. Ficar com as boas memórias, mas não muito (sem fechar janelas)

Na despedida da liderança, num discurso logo a abrir a Convenção, Catarina Martins lembrou os tempos das negociações à porta fechada, pela noite dentro, no palacete de São Bento com António Costa. Desse tempo quer sobretudo lembrar-se do que colou as partes: “Ajudámos a salvar o país da direita e não nos submetemos à ideia peregrina de que bastaria um acordo de cavalheiros para um compromisso de medidas.”

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Marisa Matias havia de subir ao mesmo púlpito pouco depois para acrescentar mais qualquer coisa a essa memória, começando mesmo por propor um “descubra as diferenças” entre os tempos da maioria socialista e aqueles em que “a esquerda influenciava a geringonça”. Ainda assim conteve o entusiasmo e doseou-o o mais que conseguiu com o lado lunar: o “país ganhou com a geringonça”, mas “não foram possíveis mudanças estruturais nas leis laborais”, por exemplo.

Mas há uma ferida que permanece aberta nesta Convenção, a hecatombe das últimas legislativas, que cunhou a maior queda eleitoral do BE (passou de 19 deputados para cinco). E os críticos fazem questão de a expor — acusando até a atual direção de falta de reflexão sobre este desaire concreto, sobretudo quando nele está precisamente o resultado da aproximação ao PS. “A geringonça acabou mas perdura na cabeça de alguns e continua a marcar a linha política” do Bloco de Esquerda, disse Pedro Soares no palco da Convenção. Outro crítico, Carlos Matias, acrescentou à Rádio Observador que as derrotas eleitorais não podem ser lidas “unicamente” à luz da “conjuntura” e, logo de seguida, que o “geringoncismo primeiro estranhou-se e depois entranhou-se e começou a marcar permanentemente o posicionamento político do Bloco” — e até em relação a Ucrânia de Volodymyr Zelensky acusam a direção do BE de seguidismo do PS.

Os críticos querem recordar pouco ou nada desse tempo (e muito menos reeditá-lo no futuro) e a maioria quer ficar apenas pelo poucochinho, longe de Costa que, no último debate parlamentar, quando se despediu de Catarina Martins, deixou um desejo: “O tempo encarregar-se-á de nos deixar na memória sobretudo os bons momentos e menos os maus momentos. Mas de qualquer modo foi com muito gosto que partilhei consigo um momento histórico da esquerda portuguesa em que encerramos um muro que nunca, nunca mais será reerguido entre a esquerda portuguesa.” Se bem que, quanto a este último ponto, os apoiantes da Moção A (a de Mariana Mortágua) concordam, ainda que estejam muito longe do momento em que aceitam falar do assunto.

Há uma curiosidade quanto a esse futuro. Ainda que a crise de instabilidade (ver abaixo) seja uma das frentes de ataque do Bloco ao PS nesta fase, o partido não se centra em nenhum elemento do elenco de Costa em concreto. Houve algumas referências a João Galamba, nesta Convenção, mas nem uma ao seu antecessor nas Infraestruturas, que está sem sombra de dúvidas no olho do furacão do Governo, Pedro Nuno Santos. Se essa continuar a ser uma carta em jogo para o futuro do PS — a esta distância e tendo em conta os acontecimentos mais recentes, ninguém o dá por garantido –, sai sem mácula (até aqui) deste encontro bloquista que alinha estratégia para os próximos dois anos.

Ainda esta semana, o fundador Francisco Louçã protegeu Pedro Nuno nos embates com Costa ao dizer que  “havia uma disputa forte entre os dois” e “que, depois da demissão de Pedro Nuno Santos, António Costa aproveitou todas as oportunidades para carregar sobre as responsabilidades do ex-ministro e que, com isso, quer abrir caminho aos seus candidatos ou candidatas putativas para a liderança do PS.” Com Pedro Nuno, o Bloco já saberá com o que conta.

Maioria. Fazer dela o maior inimigo da estabilidade

O tempo é de atacar a maioria absoluta, que afasta o PS de qualquer necessidade de entendimentos com a esquerda à sua esquerda. E aqui não falha o argumento mais usado pela direção que está de saída (e que no essencial vai manter-se): “António Costa recusou qualquer acordo à esquerda em 2019 para dois anos depois provocar uma crise política e ter maioria absoluta.”

Catarina Martins mantém que se tratou de “uma artimanha” de que Costa “saiu vencedor”, mas que de nada valeu: “Agora não sabe o que fazer com a sua vitória e é consumido pela pior de todas as situações: o Governo pouco faz e não tem desculpa nenhuma, pediu todo o poder de uma maioria absoluta e num ano e meio desbaratou a confiança de boa parte dos seus eleitores”. O clima de instabilidade política dos últimos meses dá um impulso a esta linha e foi referido por vários dirigentes do partido neste primeiro dia de Convenção.

Neste ponto concreto, a figura que este domingo assumirá a liderança também entra para mostrar-se surpreendida com o ponto a que chegou “esta maldição que é o poder absoluto”. “Não me interessa comentar os repetidos hara-kiris do Governo. Só digo que este espetáculo horroroso é o desfecho de uma sucessão ininterrupta de irresponsabilidades”, disse Mariana Mortágua na primeira vez que se dirigiu à Convenção.

Maioria ou “governação a solo do PS”, como lhe chamou Marisa Matias, essa é uma fórmula que o Bloco de Esquerda não tem dúvidas de ser um alvo a abater o mais rapidamente possível — aliás, José Manuel Pureza passou pela rádio Observador para dizer que não tem medo da antecipação das eleições, garantindo que resultariam para o Bloco num melhor resultado do que aquele que foi atingido em 2021.

Marisa Matias vê na maioria socialista o fim de um país “sem cedências europeias”, o “travão às conquistas sociais e laborais”, enfim, “maioria não é sinónimo de estabilidade” — até recordou vários momentos do passado, colando Costa a todos: os tempos das “cargas policiais da maioria de Cavaco Silva”, os “escândalos de corrupção da maioria de Sócrates”, a “austeridade e empobrecimento da maioria de Passos Coelho e de Paulo Portas” e, por fim, as “trapalhadas e degradação de serviços públicos e o favorecimento dos grupos económicos em tempos de inflação da maioria de Costa”.

Como disse antes dela Catarina Martins: “A maioria absoluta do PS é tudo o que se podia esperar de uma maioria absoluta”. Está firmado um dos principais argumentos para uma futura campanha eleitoral, venha ela quando vier.

PS e direita. Juntar tudo no mesmo saco

Houve uma frase que deu alento a esta Convenção e foi dita bem longe do Complexo Desportivo do Casal Vistoso, em Lisboa. Na noite anterior, na sede do PS numa iniciativa com jovens, Augusto Santos Silva tinha dito que “a expressão mais forte, mais legítima, mais natural do liberalismo político clássico é a social-democracia, e em Portugal é o PS. Não é a Iniciativa Liberal”. O Bloco já nem quis ouvir a explicação do socialista sobre uma “confusão terrível entre o liberalismo político clássico e o liberalismo económico e, recentemente, o neoliberalismo” e agarrou-se ao resto para afirmar, como fez Joana Mortágua a dada altura, que “as políticas liberais são o bebedouro das bestas”. E nesta frente alinha o PSD e o PS.

Isabel Pires, que vai substituir Catarina Martins na Assembleia da República, já leva esse cartucho alinhado para o combate ao PS e no púlpito a sua intervenção foi a colar as duas partes, ao dizer que PSD e PS não diferem nos benefício aos poderosos e, sobretudo, na senda das privatizações.

Nesta tentativa de dividir entre o “nós” e o “eles”, o Bloco usou mesmo todas as linhas de argumentação para colocar o PS do lado de lá, incluindo a do uso da extrema-direita — alimentando-a — em seu próprio benefício.“A discussão política está tomada pela degradação interna do Governo e por uma estratégia do PS que sabe que tem na polarização com a extrema-direita o seu seguro de vida. E isso deve ser contrariado com uma polarização à esquerda”, contrapôs José Soeiro numa entrevista à rádio Observador durante a Convenção. Moisés Ferreira repetiu,  no palco, que para o PS, “o Chega é o seu seguro de vida para salvar eleições. Não caiamos nesta rasteira da aritmética”, avisou.

Fernando Rosas, outro fundador do partido, foi à Convenção dizer que “são os efeitos da política do PS que alimentam a extrema-direita” e que ao Bloco resta-lhe fazer “oposição frontal” a este PS. Eles, do lado de lá do Bloco.