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Afinal, o que ele queria ser “desde menino”, o que ele sabia já que era, era escritor. Poderia ser assaltado por dúvidas sobre tudo, menos acerca da sua “vocação literária” (aqui fotografado em 1995, durante a rodagem de "A Flor do Meu Segredo")

Sygma via Getty Images

Afinal, o que ele queria ser “desde menino”, o que ele sabia já que era, era escritor. Poderia ser assaltado por dúvidas sobre tudo, menos acerca da sua “vocação literária” (aqui fotografado em 1995, durante a rodagem de "A Flor do Meu Segredo")

Sygma via Getty Images

Tudo o que aprendemos com Pedro Almodóvar, o escritor que em tempos se encantou pelo cinema

Não é um livro de histórias e não é um diário. É o mais próximo da autobiografia que tantas vezes foi desafiado a escrever. “O Último Sonho” fala da escrita, dos filmes, da vida dele e da nossa.

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É ele próprio que avisa cedo para as contradições: nunca escreveu um diário, mas há umas páginas que o são; não gosta de escrever sobre ele mesmo, mas adora obras em que os autores falam deles; todos os seus filmes são autobiográficos, mas nada aconteceu exatamente assim. Desses aparentes paradoxos, destila a honestidade com que se nos apresenta neste livro. Hermeneuta dele mesmo, não vale a pena pormo-nos a tentar descobrir ligações entre histórias e filmes, pormenores da vida do realizador e a obra; ele mesmo as assume a todas logo nas curtas páginas da introdução: este livro “demonstra a relação estreita entre o que escrevo, o que filmo e o que vivo”.

Façamos como os espanhóis aos presuntos: de Vilar Formoso para lá, são espanhóis; para cá, são ibéricos. Assim: Pedro Almodóvar é o cineasta ibérico mais bem-sucedido da história, ou, o que é quase o mesmo, um romancista falhado. Como tantos de nós: cronistas, realizadores, corretores de seguros, pivôs de Telejornal, assistentes de call center, gurus da auto-ajuda. Esta é a primeira coisa que aprendemos com O Último Sonho, coleção de 12 histórias escritas ao longo de mais de 50 anos, entre o final dos anos 60 e o ano passado, já com os sons da guerra da Ucrânia na televisão, a sobreporem-se aos tambores das procissões da Semana Santa, entrando pela janela de um apartamento em Madrid.

A capa de "O Último Sonho", de Pedro Almodóvar, publicado pela Alfaguara (tradução de Helena Pitta)

Que é como quem diz: desde que Almodóvar ainda não era Almodóvar, ainda não começara a filmar, ainda não sabia que seria realizador, ainda não se tinha tornado a estrela da movida madrilena dos anos 70 com as suas curtas-metragens delirantes em Super 8 e, depois internacional, graças a preciosidades como Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, Tudo Sobre a Minha Mãe, Fala com Ela, tanta coisa. Estavam na gaveta. Umas deram filmes, outras talvez ainda venham a dar. Releu-as agora, entre a pré e a pós-produção de Estranha Forma de Vida e reconciliou-se com elas. Manteve-as exatamernte como eram, garante, exceto a incrível Vida e Morte de Miguel, a que deu uns retoques, uma espécie de Caso Curioso de Benjamin Button que Almodóvar escreveu quando não conhecia o conto de F. Scott Fitzgerald e melhor e mais consistente do que o conto de F. Scott Fitzgerald.

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O que aprendemos sobre os filmes

Afinal, o que ele queria ser “desde menino”, o que ele sabia já que era, era escritor. Poderia ser assaltado por dúvidas sobre tudo, menos acerca da sua “vocação literária”. Escreveu, como tantos outros aspirantes a escritores, às escondidas do patrão, depois de despachado o serviço, no escritório da Telefónica, corriam os primeiros anos da década de 70. E continuou, mesmo quando já era uma estrela do cinema. Precisou de muitos anos e muitos filmes, diz, com todas as letras, para perceber que nunca conseguiria escrever um grande romance. Porque escrever um romance e escrever um guião não tem nada a ver uma coisa com a outra – aliás, nada tem menos a ver. Mas já lá vamos à escrita. Para já, os filmes.

Escreve Almodóvar: “Agora, posso dizer que esses foram os três lugares onde me formei: os pátios manchegos onde as mulheres faziam renda de bilros, cantavam e criticavam toda a vida, a explosiva e libérrima noite madrilena de 1977 a 1990, e a tenebrosa educação religiosa que recebi dos salesianos no início dos anos 60”.

O que aprendemos mais? Aprendemos que Cassavetes foi o cineasta americano independente que mais o influenciou. Que Andy Warhol não o marcou nada, que Chavela Vargas o marcou como ninguém, talvez, exceto a mãe. Que muitas das ideias para os guiões lhe apareceram em viagens de avião, “rodeado de desconhecidos a dormir”. Que o desejo que dá nome à célebre El Deseo, a produtora que tem com o irmão Agustin, vem d’ Um Elétrico Chamado Desejo, de Tennessee Williams, e, em particular, da personagem de Blanche Dubois. Não toca nos nomes de Vivien Leigh, nem de Elia Kazan, nem sequer de Brando, pelo que supomos que o impacto venha todo da peça original para teatro. O mesmo desejo de A Lei do Desejo, o mesmo que aqui palpita na segunda história, Demasiadas Mudanças de Género, por sua vez, aparentado com Tudo Sobre a Minha Mãe, Dor e Glória, e outros ecos.

Mas há mais obsessões – e muito mais sérias do que talvez alguma vez tenhamos notado. A Myrtle de Gena Rowlands na Noite de Estreia, de Cassavetes, mas também Uma Mulher sob Influência, Rostos e Sombras. Ou a A Voz Humana, de Jean Cocteau, no livro explicitamente tratada também em Demasiadas Mudanças de Género, e que já aparecia n’A Lei do Desejo, estava por trás de Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos e voltava em Abraços Desfeitos, antes de, finalmente, passar de referência a sujeito na média-metragem homónima, aos ombros da genial Tilda Swinton.

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Almodóvar fotografado em 1985, um ano antes da estreia de "Matador"; e em 1999, na passadeira vermelha de Cannes, o ano de "Tudo Sobre a Minha Mãe"

Getty Images

É rara a história em O Último Sonho que não passe por, pelo menos, um filme, um realizador, uma “diva”: Marlene Dietrich em The Devil is a Woman, L’amore, de Rosselini, A Pantera, de Jacques Tourneur, Anjelica Huston em Gente de Dublin, Bette Midler, Carol Burnett, Cary Grant, Jack Lemmon. Porque o amor ao cinema, em Almodóvar, vem muito lá de trás, quando era “apenas” um espectador. “Apropriei-me de tudo o que me caiu nas mãos”, diz, “criando uma amálgama própria”. Almodóvar é um homem de relações longas com os seus fantasmas e fétiches, que nasceu como cineasta na altura certa para ele: “em plena explosão do pós-modernismo e as ideias surgem de qualquer lugar”. E sim, “queria conquistar o mundo”.

Mas esta é a parte em que a arte influencia a arte. A grande influência, a maior de todas, é a vida. Sempre.

O que aprendemos sobre a vida (dele)

“Agora, posso dizer que esses foram os três lugares onde me formei: os pátios manchegos onde as mulheres faziam renda de bilros, cantavam e criticavam toda a vida, a explosiva e libérrima noite madrilena de 1977 a 1990, e a tenebrosa educação religiosa que recebi dos salesianos no início dos anos 60”.

Os traumas do colégio dos Salesianos marcam tudo o que escreveu nos anos 70, de A Visita, a história que abre o livro, a A Má Educação, filme feito muitos anos mais tarde a partir da mesma matéria-prima assombrada. A mudança “radical” vem em 1979 com a invenção de Patty Diphusa, estrela porno de Confissões de uma Sex Symbol, que nos guiará pelo festival de vulnerabilidades e desejos da grande cidade. A última encarnação surge depois da viragem do século. Alguém mais sombrio, austero, melancólico, inseguro.

A pressão de escrever “um grande romance”, de concretizar, enfim, o sonho de criança, abateu-se sobre Almodóvar ao longo de décadas de sucessos que perfaziam um só estrondoso, paradoxal, fracasso. Tinha já desistido, quando a leitura do romance de Enrique Vila-Matas, "Mac e o seu Contratempo", em que o protagonista decide reescrever uma obra que já existe, lhe acendeu a chama de uma nova esperança.

A nova personagem de Almodóvar é, nem mais, nem menos, do que ele próprio: “o oposto de Patty, embora formemos a mesma pessoa”. Temo-lo visto no cinema, nos “almodóvares” mais recentes. Vemo-lo aqui, transparente, em quatro histórias que o próprio descreve como “instantâneos da vida” dele, mais do que “histórias”: Adeus, Vulcão, escrito depois da morte de Chavela; O Último Sonho, que dá título ao volume, escrito no primeiro dia de sol depois da morte da mãe e cujas “três páginas estão entre o que de melhor escrevi até agora”; e as brilhantes Memória de um Dia Vazio e Um Romance Mau, que encerram o livro, escritas em tempos recentíssimos.

A criação tornou-se mais difícil porque a vida se tornou mais vazia. Não são só os familiares e amigos que partiram; é mais o isolamento que a idade traz, porque vamos envelhecendo e já nem tudo nos apetece, “nem tudo nos serve”. Hoje, Almodóvar confessa-se um solitário “especialista” que, mesmo assim, precisa de estar sempre a trabalhar para não sentir o vazio. “Isto é muito negativo, especialmente para alguém como eu, que se alimentou muito do que o rodeava para escrever os guiões: da mãe, da infância, dos anos de colégio com os padres, da juventude madrilena, das dezenas de amigos que frequentava na época da movida, das conversas ouvidas, da extravagância de algumas amizades, também da dor, provocada pelas relações pessoais mais íntimas. Se de alguma coisa tinha a certeza, era que nunca me aborreceria. Agora aborreço-me. E isso é uma espécie de derrota.”

O que aprendemos sobre a escrita

Almodóvar é um escritor de imagens. Isso é óbvio desde o primeiro momento, mesmo que ele próprio tenha demorado tanto tempo a descobri-lo. A Pietá com que termina A Visita, o vampiro chupando o sangue da imagem de Cristo n’ A Cerimónia do Espelho; Joana, a Louca, reinando ao lado de um Filipe morto a cuja passividade se habituou; Cristo e Barrabás fugindo juntos no final dessa outra inesperada fantasia histórica de A Redenção.

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Pedro Almodóvar não é hoje "o mais popular dos realizadores espanhóis", é um dos nomes fundamentais da história do cinema

Jerod Harris

O problema, para quem ainda não tenha percebido, é que “não há nada mais oposto a um romancista do que um realizador/guionista.” Um trabalha a palavra, o outro a imagem; um deve desenvolver, investigar, aprofundar, demorar, detalhar; o outro tem de ser implacável: encurtar e cortar a direito texto, cenas, eventualmente, personagens inteiras.

Nas páginas finais, entramos quase num pequeno manual de conselhos ao jovem guionista:

Bons guiões literários há os de Rohmer e Bergman, não muitos mais. Notem como é raro um bom romance dar um bom filme. Gente de Dublin de James Joyce/John Huston, ou O Leopardo, de Lampedusa/Visconti, são exceções que confirmam a regra. “Nem sequer o grande Kubrick conseguiu com Lolita, de Nabokov”.

Guiões romanceados, como o que Tarantino fez de Once upon a Time in Hollywood, em princípio, são apenas aproveitamentos comerciais.
Evitem “apaixonar-se pela própria obra”.

A homenagem é “a desculpa de todos os plagiadores e imitadores”.

Não escrevam com offs e flashbacks, “a não ser que se chamem Martin Scorsese”.

A capacidade de autocrítica ensina-os o valor incalculável de saber esperar.

Citando Leila Slimani, em O Perfume das Flores à Noite: “Para escrever, é preciso dizer não aos outros, recusar a nossa presença, a nossa ternura, desiludir os nossos filhos e amigos”. Por mais sofrimento próprio que isso implique.

Não se escreve feliz nem sobre pessoas felizes: “A tensão e os conflitos são como os beats na música, necessários para contar não interessa que história, fazendo com que esta tenha uma espécie de esqueleto, estrutura e ritmo”.

E esta lição fundamental, aprendida com a mãe, quando acrescentava pormenores maravilhosos às cartas que fazia o favor de ler às vizinhas analfabetas, nos tempos de La Mancha: “A realidade precisa da ficção para ser mais completa”.

E finalmente, o que aprendemos sobre a vida (a nossa)

Sobrando vaga para um décimo mandamento, podemos destilá-lo do título da história que encerra o livro: Um romance mau.

A pressão de escrever “um grande romance”, de concretizar, enfim, o sonho de criança, abateu-se sobre Almodóvar ao longo de décadas de sucessos que perfaziam um só estrondoso, paradoxal, fracasso. Tinha já desistido, quando a leitura do romance de Enrique Vila-Matas, Mac e o seu Contratempo, em que o protagonista decide reescrever uma obra que já existe, lhe acendeu a chama de uma nova esperança: sendo verdade que se sente incapaz de escrever um grande romance, “um romance mau já está ao meu alcance. Seria um romance adulto e honesto, onde o autor sabe o que está a fazer e ultrapassou as veleidades juvenis da transcendência. E até podia ser divertido, não seria o primeiro.”

Mais do que respostas, o que podemos aprender com esta incursão de Almodóvar, enfim, pelos livros, é a aceitar. Aceitar que se pode viver toda a vida entre a frustração e a dúvida e, ainda assim, ser grande. Que nem um Óscar (o Óscar qualquer da nossa área) nos resolve as angústias ou vai consolar na velhice.

Levemos o exemplo, então, para a vida: escrevam um romance mau. Que é como quem diz: o que quer que sonhem fazer desde miúdos, aquela parte de vós que ficou paralisada debaixo da pressão do fracasso, sobretudo perante nós próprios e a nossa expectativa, façam-no em mau. Livrem-se da pressão. Um mau poema, um mau bolo, mau surf, mau tango, uma má canção, um mau jardim. Serão flores, doces, ondas, dança, arte ainda assim. Com todo o prazer implicado. E sabe-se lá o que poderão desbloquear.

Se, mesmo assim, não conseguirmos, paciência. Mais do que respostas, o que podemos aprender com esta incursão de Almodóvar, enfim, pelos livros, é a aceitar. Aceitar que se pode viver toda a vida entre a frustração e a dúvida e, ainda assim, ser grande. Que nem um Óscar (o Óscar qualquer da nossa área) nos resolve as angústias ou vai consolar na velhice.

No fim de contas, todos procuramos meia dúzia de coisas simples, elementares, que talvez nunca venham. A aprovação por parte de quem nos pôs no mundo daquilo que aqui andámos a fazer, por exemplo. “Nunca tive a certeza de que os meus filmes lhe agradassem”, escreve Almodóvar, que ainda teve a sorte de lhe conseguir dedicar, em vida, Tudo Sobre a Minha Mãe. Foi dela o “último sonho” do título, o da última noite, que não chegou a ter tempo de contar. Porque, por mais que tentemos, a vida não é um filme. É vivê-la da forma mais honesta connosco mesmos e com os outros que conseguirmos, miúdos. Antes que rolem os créditos.

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