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O ataque de 7 de outubro tinha começado há poucas horas quando o primeiro-ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros do Qatar, Mohammed Rahman al-Thani, se fechou com uma equipa especializada numa sala em Doha. As identidades dos que o acompanhavam não são conhecidas, (com exceção da de Mohammed al-Khulaifi, jurista recentemente promovido a vice-ministro dos Negócios Estrangeiros), mas sabe-se que são qataris com experiência prévia em mediação de outros conflitos mundiais, segundo relata a agência Bloomberg. De imediato, começaram os telefonemas, com uma linha permanente para Telavive e outra para a liderança política do Hamas, que vive ali na capital do Qatar. Pelo meio, as conversas com Washington foram sendo recorrentes.
Nas primeiras horas da crise, o Qatar assumia-se logo como um potencial intermediário. “Ao início as negociações foram muito difíceis, quase impossíveis, tal era o nível de raiva”, resumiu um dos qataris ao Le Monde. Arrastaram-se durante quase dois meses. “A cada passo parece que estamos a arrancar um dente”, recordou outro membro da equipa à CNN.
Até que, a 21 de outubro, surgiu a primeira luz ao fundo do túnel, quando o Hamas aceitou libertar duas reféns com nacionalidade norte-americana. “Demorámos sete horas a conseguir retirá-las”, contou o responsável qatari que falou com o jornal francês. “Tínhamos uma pessoa ao telefone com os israelitas, outra com o Hamas e uma terceira com o Comité Internacional da Cruz Vermelha.”
Segundo os responsáveis do pequeno emirado do Golfo Pérsico, as negociações colapsaram à altura devido ao facto de o Hamas dizer que não conseguia garantir a libertação de reféns específicos, alegando não saber a localização de todos. Na sequência desse ano, Israel avançou para a invasão terrestre à Faixa de Gaza. E, na altura, parecia que a perspetiva de um acordo mediado pelo Qatar tinha caído totalmente por terra.
Mas não. Na última semana, não só foi conseguido um acordo, como este foi respeitado integralmente: o Hamas libertou reféns israelitas específicos (com ênfase em crianças e idosas) e Israel libertou prisioneiros palestinianos (mulheres e menores de idade). E as tréguas militares também aguentaram. Foi “um sucesso diplomático”, graças ao Qatar. É pelo menos essa a opinião unânime de vários especialistas na política do país do Golfo, ouvidos pelo Observador. “Foi um sucesso não só por se ter conseguido alargar o prazo, mas porque o acordo aguentou e ambos os lados respeitaram os compromissos assinados”, resume Cinzia Bianco, analista do Conselho Europeu para as Relações Externas na área da península arábica.
Um sucesso que está a ter, de imediato, reflexos na perceção mundial do Qatar, como notou ao Haaretz um embaixador europeu que não se quis identificar: “Durante a primeira semana da guerra, o Qatar sofreu um duro golpe. Eram eles quem tinha dado dinheiro ao Hamas ao longo de todos estes anos”, disse. “Hoje em dia, a situação é totalmente diferente. Estão associados ao cessar-fogo, à entrada de camiões de ajuda humanitária e à libertação de crianças israelitas do cativeiro.”
Mas como é que um país tão pequeno (com uma área equivalente a cerca de um terço da Bélgica) e vizinhos tão poderosos (como a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos) consegue emergir nesta crise como o mediador bem-sucedido que alcança o que mais ninguém consegue? E que consequências pode ter esta posicionamento do país liderado pelo xeque Tamim bin Hamad al-Thani para a região?
Soft power e milhões, os trunfos na manga do Qatar
A vontade de mediar conflitos não é nova para o Qatar, como alerta Kristian Coates Ulrichsen, analista do Médio Oriente no Baker Institute e autor de The Gulf States in International Political Economy (sem edição em português), entre outras obras sobre o Golfo Pérsico: “A resolução de disputas internacionais está consagrada na Constituição de 2003 do Qatar e é algo que o país tem tentado fazer já há mais de 15 anos, com diferentes graus de sucesso”, diz ao Observador, notando Artigo 7.º que “encoraja a resolução pacífica de disputas internacionais”. “Para um pequeno país como o Qatar, rodeado de vizinhos muitos maiores e mais poderosos, esta é uma forma pragmática de se envolver em assuntos regionais e estancar pontos de tensão que possam escalar para ameaças à sua estabilidade e segurança.”
É um “princípio orientador da política externa do país”, garante o investigador local da Universidade do Qatar, Mahjoob Zweiri. “Mas é claro que é também uma ferramenta de soft power. O Qatar é agora conhecido como a morada principal para aqueles que querem resolver problemas globais.”
O soft power é uma das estratégias que o Qatar mais tem usado internacionalmente para promover o seu país e os esforços como mediador de conflitos são apenas uma faceta dessa campanha. Por um lado, o país tem recebido grandes competições desportivas como os Jogos Asiáticos em 2006 e, mais recentemente, o Campeonato Mundial de Futebol. Por outro, mantém um dos canais de televisão mais influentes do mundo, a Al-Jazeera. Formas de “cultivar uma imagem de ator moderno, audaz e dinâmico — uma imagem que tenta transportar para a arena da política externa”, resumia já em 2016 Sultan Barakat, do think tank Brookings.
O professor Francis Gause, que dedicou grande parte da sua vida a estudar o país, concorda em absoluto: “São tudo esforços para destacar o perfil do Qatar e fazer dele um ator no palco mundial”. Mas o professor da Universidade Texas A&M nota que este esforço de soft power vem acompanhado de um trunfo importante que tem assegurado grande parte desse sucesso: o dinheiro.
Exportador de petróleo e gás, o país está no top dez de nações mais ricas do mundo e não tem tido pudor em colocar essa riqueza ao serviço dos seus esforços de mediação. “No passado, os qataris estiveram disponíveis para financiar acordos que foram alcançados através da sua mediação”, nota Gause. “A própria capacidade que têm de negociar agora com o Hamas vem do facto de que têm fornecido ao Hamas centenas de milhões de dólares ao longo dos anos. Isto não é só soft power.”
Ligações a islamistas tornam Qatar mais eficaz do que a Suíça
Tudo começou na década de 1990 e se estendeu ao longo dos anos 2000. O Qatar mediou vários conflitos internacionais: fez a ponte entre o Líbano e o Hezbollah, envolveu-se com governo sudanês e os separatistas, tentou mediar o diferendo entre o governo do Iémen e os Houthis e até ganhou experiência na Palestina, ao tentar remediar as relações entre o Hamas e a Fatah.
Ganhou, por isso, “experiência significativa”, nota Kristian Ulrichsen. “Isso é evidente na criação de posições especiais de enviados a determinados zonas e equipas dentro do Ministério dos Negócios Estrangeiros que são especializadas em mediação, negociação e resolução de conflitos”, afirma.
Até que, em 2011, a Primavera Árabe rebentou. Com ligações próximas a grupos como a Irmandade Muçulmana (que chegou ao poder no Egipto, na altura), o Qatar aproximou-se de uma tendência islamista. Nos dez anos seguintes, nota Cinzia Bianco, “perdeu a capacidade de ser mediador”, por ser visto como um ator alinhado e não independente. Para remediar as relações com os países vizinhos — que lhe moveram um bloqueio económico em 2017 —, o Qatar afastou-se de vários grupos islamistas e reconquistou alguma aura de ator independente na região.
“Até que, em 2021, aconteceu a retirada americana do Afeganistão”. Sendo um dos poucos países que mantinha boas relações com os Estados Unidos e com os talibã, o Qatar voltou a ser estrela num processo de mediação e conseguiu assegurar a retirada de vários cidadãos norte-americanos do país.
Foi precisamente essa posição de manter boas relações com dois atores aparentemente antagónicos que permitiu ao Qatar replicar agora esse sucesso com o acordo entre Israel e o Hamas. É isso, mais do que qualquer experiência, que lhe dá estas vitórias diplomáticas, assegura ao Observador David Roberts, investigador da King’s College que chegou a dar aulas na Qatar Defence Academy: “O Qatar colocou-se numa posição que lhe permite jogar com estas relações. Trabalha com o Hamas de um lado e com os EUA do outro há pelo menos uma década. É uma posição única e é isso que lhe permite ter agora este papel”, diz.
O mesmo reforça Cinzia Bianco, que defende que um país totalmente neutral não conseguiria mediar este conflito: “A Suíça não poderia ser mediadora num processo com o Hamas, porque não tem qualquer influência sobre o grupo. Para ter um influência, é preciso manter relações com esse ator. Essa é a linha ténue entre ser neutral e ter influência.”
Uma ligação que, do ponto de vista local, não é problemática. “O Qatar tem a porta aberta para todos os atores: lida com israelitas, americanos, iranianos e o Hamas”, resume Mahjoob Zweiri a partir de Doha. “Toda a gente sabe isto, não é algo que o Qatar esteja a esconder”, diz, destacando que não seria possível ao país ter mediado este acordo se não houvesse confiança por parte de Israel na sua neutralidade.
Washington quer que Doha repense as ligações ao Hamas. Mas e depois?
Os laços do Qatar ao Hamas são antigos e reforçaram-se em 2012 quando a liderança do grupo abandonou a Síria, na sequência do desacordo com o regime de Ashar al-Bassad relativamente à Primavera Árabe, e se estabeleceu em Doha. Desde então, o país tem financiado Gaza com milhões de dólares, justificando o envio desse dinheiro com a necessidade de reconstruir a região e pagar salários a funcionários públicos.
São estas ligações, porém, que têm levantado críticas nos Estados Unidos e em Israel. Em Washington, vários congressistas têm apelado à administração Biden que se afaste do Qatar por este motivo; em Telavive, vozes mais radicais como o antigo primeiro-ministro Naftali Bennett dizem que “o Qatar não é um parceiro, é um inimigo”.
Os especialistas ouvidos pelo Observador, contudo, notam que esta postura do Qatar mereceu sempre, até agora, o beneplácito dos governos norte-americanos. “A administração Obama foi a favor da recolocação do Hamas da Síria para o Qatar, precisamente porque assim eles se mantinham contactáveis, se fosse necessário, através de um intermediário que era também um país parceiro”, nota Ulrichsen.
“Sucessivos governos israelitas também trabalharam de perto com o Qatar para fornecer ajuda humanitária e apoio financeiro à população de Gaza desde 2018, com responsáveis políticos e dos serviços secretos israelitas a pedir ao Qatar que continuasse essa assistência em vários momentos até ao dia 7 de outubro”, acrescenta. E David Roberts nota que “de um ponto de vista prático”, se não houvesse este entendimento tácito, “o Qatar não teria conseguido continuar a fazer isto durante dez anos”. “As coisas são como são”, afirma.
Isso nunca parece ter assustado Washington, que vê no Qatar um parceiro precioso na região — a começar pelo facto de ter no seu território a base militar de Al-Udeid, com jurisdição extraterritorial. E que sempre recorreu ao Qatar para comunicar com grupos terroristas, com quem formalmente não mantém relações, como os talibã ou, agora, o Hamas. “É soft power em esteróides, mobilizado para os interesses americanos”, resumiu recentemente à Associated Press Patrick Theros, antigo embaixador norte-americano em Doha.
Isso não significa, contudo, que Washington esteja disposto a continuar tudo como até aqui. Na sua visita ao Qatar em outubro, o secretário de Estado Antony Blinken afirmou que “não pode ficar tudo na mesma com o Hamas”, sinalizando uma mudança de posição. Nos dias seguintes, o Washington Post publicou um artigo, com base nas informações de quatro diplomatas, a dar conta de que o emirado estava disponível para rever as suas ligações ao Hamas no futuro, por pressão dos EUA.
Os especialistas divergem quanto à capacidade e vontade de o Qatar rever essa ligação. “O país já o fez no passado. Antes tinha muito mais relações com grupos islamistas e acabou por ser forçado a abandoná-las”, nota David Roberts. Já Francis Gause diz que tal cenário seria “um golpe duro” para a estratégia que o país tem mantido até aqui. Ambos concordam, contudo, que tal não deverá acontecer para já, enquanto for útil aos Estados Unidos manterem algum ponto de contacto para negociar com o Hamas durante esta crise.
Certo é que, desde os ataques de 7 de outubro, nada ficará igual na região, nota Cinzia Bianco. A especialista prevê que Washington vai continuar a tentar usar o Qatar para conseguir concessões do Hamas relativamente aos reféns, mas que, a certa altura, isso irá esgotar-se. “Nesse momento, a pressão para que o Qatar expulse o Hamas vai ser muito, muito alta”, prevê. E as consequências disso são quase imprevisíveis. “Podem ir para o Irão, por exemplo, e aí abre-se um novo capítulo desta História. Não nos podemos esquecer que os líderes israelitas têm pedido à Mossad para procurar os operativos do Hamas por todo o mundo.”