Ainda o sol não se tinha posto e nas ruas da baixa do Porto circulavam apenas carros da polícia, nas varandas viam-se bandeiras de Portugal estendidas e as esplanadas estavam lotadas, com gente sentada e de pé, atentas à segunda e derradeira parte do jogo da seleção contra a França. Desatentos ao jogo e mais focados no convívio estavam cerca de 30 simpatizantes e membros da Iniciativa Liberal, numa iniciativa polémica. Distribuídos por três mesas numa esplanada de um restaurante na Cordoaria, quase que passavam despercebidos não fosse o pólo azul vestido por alguns, entre eles Pedro Schuller, coordenador da IL no Porto.
“A perceção que pode ter passado é que seria algo muito maior do que aquilo que tínhamos desde sempre planeado: um jantar convívio entre membros. Não é um evento político, estamos a cumprir as regras que são impostas à restauração e aos seus clientes”, começa por dizer ao Observador, rejeitando ter havido “qualquer retrocesso na mensagem” transmitida nas redes sociais. “Tivemos apenas de ter alguma contenção porque a ideia que estava a passar é que estaríamos a organizar um arraial para centenas de pessoas e não era de todo isso que queríamos fazer.”
Sobre o arraial realizado pelo partido na noite de Santo António, em Lisboa, o coordenador da IL no Porto diz não “existir comparação” com a sardinhada organizada “com moderação” no Porto. “Houve uma gestão mais lúcida e racional por parte da câmara municipal do Porto nas liberdades cedidas aos cidadãos, a situação pandémica é diferente, portanto, não há qualquer tipo de relação entre o que aconteceu em Lisboa e o que acontece agora aqui. Este não é um evento de cariz político, não vamos fazer comício, apenas celebramos o regresso à normalidade e queremos fazer parte dela.”
Bem mais atento ao que se passa em Budapeste através da televisão está Hélder Mendes, sentando com a família na mesa ao lado. “A seleção está a ajudar à festa, é melhor se estivéssemos a ganhar, mas assim já está bom”, diz, enquanto arruma os talheres no prato onde comeu “o mais tradicional”: sardinhas, batatas cozidas e broa. Cliente fiel deste restaurante nas noites de S. João, o portuense não se vai alongar na rua. “Vou pedir um café e vamos embora para casa. Numa noite normal, iria para a festa na zona ribeirinha, mas a situação está complicada e não vou arriscar. Em Lisboa está feio, espero que o Porto se mantenha assim. Sinceramente estava à espera de mais gente.”
Sentada ao seu lado, Liliana Gonçalves abana a cabeça e garante não concordar com o marido. “Acho que os números vão disparar, a faixa etária que vemos aqui, entre os 20 e os 30 anos, não tem o mesmo respeito por aquilo que se está passar, nem tão pouco está vacinada. Ainda há pouco me levantei para ir ver a repetição de um penálti junto à televisão e era a única de máscara”, assegura. No fim do jogo e do jantar, o casal irá para casa com pena, porque hoje até S. Pedro parece ter dado tréguas. “É uma pena, está uma noite ótima e sem aquela orvalhada típica de S. João. Ainda assim, já é um cheirinho de festa.”
Bem mais divertida, de copo com cerveja na mão e a tirar selfies sorridentes com as amigas está Jade Olim. Natural de Paris, a jovem de 19 anos está no Porto a fazer Erasmus e é a primeira vez que celebra o S. João na cidade. “Estou a adorar, o ambiente é ótimo. Já tenho um bar favorito, por isso, não tenho planos para voltar para casa.”
Ouve-se o apito final do jogo e imediatamente soam petardos, brindes e aplausos. No meio da confusão já instalada está Ana Ferreira, de máscara no rosto e encostada a um cartaz de publicidade. “Jantei no McDonald’s, vim aqui de passagem e já vou embora. Está imensa gente, não me sinto segura”, desabafa, acrescentando que o caminho de regresso a casa ainda é longo, uma vez que vive em Santa Maria da Feira.
Negacionistas com direito a música ao vivo e uma Ribeira onde se passeiam cães e bebés
Os pratos e os talheres eram gradualmente substituídos por rodadas de copos de cerveja nas mesas das esplanadas, contavam-se pelos dedos os balões de papel no céu e a tranquilidade reinava na Avenida dos Aliados, mas a poucos metros dali o ambiente era bem diferente. Na Praça D. João I tocava-se música ao vivo numa tenda improvisada, com direito a luzes de várias cores, colunas potentes e uma pista de dança quase deserta. Os cerca de 10 bailarinos, todos sem máscara, tinham em comum t-shirts brancas vestidas onde se podia ler: “Unidos pela liberdade e verdade”.
“Estamos aqui a manifestar-nos contra a falta de consentimento informado sobre a inoculação experimental, mas principalmente porque hoje é um dia de festa popular, em que normalmente toda a gente sai e não queremos que isso se perca. Até à meia noite estaremos em manifestação”, explica ao Observador Vítor Pinto, responsável pela plataforma “Verdade Inconveniente”, justificando a existência de música ao vivo, uma das coisas proibidas este ano. “A música é permitida porque estamos em manifestação, a lei dá-nos esse direito.”
A dança também chegou às escadaria do bairro dos Guindais, bastante concorridas em noites como esta. Desta vez havia espaço para sentar, conversar e encontrar amigos sem qualquer dificuldade. Entre alguns martelos tímidos, uma coluna de som pousada na janela de uma casa alegrava dezenas de pessoas que não arredavam pé dali.
“Este é um São João diferente, mas felizmente com a mesma essência. Por aqui percebemos que os portuenses continuam com o mesmo espírito e com a mesma vontade de fazer uma festa bonita, dentro dos limites que nos são impostos”, partilha Ricardo Norton, de cachecol da seleção ao pescoço e com um prato de plástico na mão, à espera de uma tira de entrecosto. Decidiu jantar depois do jogo e só vai abandonar os Guindais “quando tudo fechar”. “Para já, sinto-me seguro. Em condições normais, esta zona estava completamente a abarrotar, não dava para me mexer, assim até está agradável. É um são João mais espaçoso.”
Numa outra escadaria histórica da cidade, na Vitória, ouve-se “O corpo é que paga”. O tema famoso de António Variações faz dançar um grupo de dez amigos de copo na mão, enquanto são observados à distância por uma mesa de moradores mais velhos, sorridentes. “Estávamos no miradouro da Vitória, mas aquilo fechou e viemos para a rua com as nossas coisas. Os moradores locais viram-nos e, como ainda tinham o braseiro aceso, ofereceram-nos umas sardinhas. A maioria do grupo até é vegetariano e trouxe espetadas com vegetais para jantar, mas eu, que nem aprecio muito sardinhas, comi com eles e soube-me pela vida”, consta ao Observador Vítor Oliveira, um dos elementos do grupo.
Bem acolhido por quem conhece aquela zona de cor e salteado, o jovem sublinha que costuma encontrar-se regularmente com aqueles amigos e garante que ficará na rua, se o deixarem, até de manhã. Habituado a festejar noutras zonas da cidade “mais povoadas”, Vítor é otimista relativamente ao próximo ano. “Espero já passar o ano novo nos Aliados com música, fogo de artificio e tudo a que temos direito.”
A noite está quente e é de lua cheia, a zona da Ribeira está concorrida, ainda que longe da enchente habitual. A 30 minutos da meia noite, considerado todos os anos o momento alto da festa, com o tradicional fogo de artifício nas duas margens do Douro, o ambiente é calmo e até descontraído. “Não te esqueças que amanhã é feriado”, ouve-se junto à ponte Luís I, normalmente interdita. Se uns acabam de jantar nas esplanadas, que já não aceitam mais fregueses, outros passeiam o cão e carrinhos de bebé, programas praticamente impossíveis numa típica noite de S. João.
Cordoaria: a zona mais problemática para a PSP, onde não se fala só português
Ao longo da noite, a zona mais movimentado na cidade era mesmo a Cordoaria, local onde o Subcomissário da PSP do Porto, Eduardo Alexandre, fez um ponto de situação ao Observador. “Até ao momento, está tudo relativamente tranquilo ao nível da ordem pública, relativamente às medidas Covid conseguimos até agora elaborar quatro autos de contraordenação por consumo de bebidas alcoólicas na via pública, durante a tarde na Ribeira, e três por falta do uso de máscara, na Praça D. João I.”
À meia noite em ponto, vários elementos da polícia municipal abordaram os proprietários de estabelecimentos daquela área para encerrarem as esplanadas, dando ordem para servir apenas no interior. “As pessoas que se encontram na zona exterior passam a estar em incumprimento”, explica o Subcomissário, enquanto dá indicação que se liguem as sirenes das carrinhas de intervenção, que começam a andar em marcha lenta pelo jardim.
Em 10 minutos, as esplanadas são recolhidas e os clientes dispersos. “Diria que 60% serão portugueses e os restantes estrangeiros, dos quais uma parte significativa são estudantes de Erasmus”. O responsável pela PSP adianta que nas próximas horas “muito provavelmente vai haver uma espécie de jogo do gato e do rato, com as pessoas a rumarem ao Passeio das Virtudes e depois à zona da Ribeira”, sendo que a estratégia passa por “saturar o policiamento nessas zonas”. “Esperamos que por volta das 2h da manhã as pessoas já tenham tido a noção de que encontrarão a polícia para os sítios onde fugirem e se ausentem voluntariamente.”
Ouvem-se foguetes e algumas queixas em voz alta. “Ao menos põe a máscara”, diz um polícia a um rapaz que acaba de cair no jardim, visivelmente embriagado. Não se magoou, por isso, levanta-se e desafia o agente para tirar uma fotografia. “Não sou o Marcelo. Vá, vamos embora”, responde.