O som da aparafusadora faz-se ouvir a espaços. Há caixas empilhadas, cabos a serpentear o chão de linóleo preto. As cadeiras vibrantes vermelhas resistem mais umas horas, antes de serem, por fim, arrancadas da plateia. Não é a primeira vez que os Artistas Unidos, a companhia de teatro fundada por Jorge Silva Melo, esvaziam um teatro. Esta terça-feira, saíram do Teatro da Politécnica, em Lisboa, onde estavam há 13 anos. De malas às costas, os Artistas Unidos não têm para onde ir e lamentam a falta de resposta da Câmara Municipal de Lisboa (CML).
Foi em março de 2022, cinco dias antes da morte do diretor e fundador dos Artistas Unidos, Jorge Silva Melo, que a companhia foi informada pelo reitor da Universidade de Lisboa, Luís Ferreira, de que esta não tinha a pretensão de renovar o atual contrato de arrendamento do edifício à entrada do Jardim Botânico de Lisboa, onde os Artistas Unidos estavam instalados desde 2011. A situação “aflitiva” de poderem ficar sem espaço levou a que a companhia acudisse à CML que conseguiu junto da Universidade de Lisboa assegurar, pelo menos, mais dois anos de contrato para a companhia.
Termina a 31 de julho a adenda ao contrato celebrado entre os Artistas Unidos e a reitoria da Universidade de Lisboa, proprietária do espaço na Politécnica. O balão de oxigénio que permitiu à companhia manter-se no espaço termina agora, sem casa à vista para os Artistas Unidos, que disseram um último adeus à Politécnica convidando o público a ajudar a desmontar o teatro onde mostraram mais de 130 espetáculos, entre produções próprias, co-produções e acolhimentos.
“Vai acontecer o que acontece muitas vezes. Querem o espaço, não deixam as pessoas continuar, e não se faz nada. É o mais triste”, diz Isaura Santos, 70 anos, lisboeta e espectadora frequente. “Não estou a ver o que vão fazer de tão grandioso aqui com tanto espaço abandonado que não funciona e que podiam reaproveitar.”
Mais de uma centena de pessoas vai ajudando a acartar caixas, cenários e outros pertences. Entre sorrisos, há quem não contenha as lágrimas. Um abraço apertado solta-se com um: “Olha lá, o que é preciso carregar?”. Na zona da bilheteira, um grupo de adolescentes retira cartazes de espetáculos que, nas últimas décadas, foram forrando as paredes. São estudantes de teatro e vieram “ajudar”. Uns mostram desalento com “o estado da Cultura em Portugal”, outros estão surpreendidos com a gente que por ali vai passando, de vizinhos a figuras políticas, do Bloco de Esquerda, Livre e Partido Comunista Português. Mas são sobretudo artistas a força de trabalho que, durante várias horas, enche carrinhas de mudanças.
“Fazem jus ao nome Artistas Unidos. É disso que se trata, de um número de pessoas que vão trabalhando e passando por aqui. Mostra que isto é no fundo a casa de toda a gente”, diz Pedro Caeiro, ator. “É bom estarem aqui tantas pessoas. Mostra que querem mostrar ao mundo que é preciso encontrar uma solução”.
Para a atriz Maria Jorge, “é muito triste ver a história a repetir-se”, mas, “ao mesmo tempo, também é inspirador ver tanta gente mobilizada”. Ela que passou por aquele espaço em peças dos Artistas Unidos ou dos Possessos, coletivo que foi sendo acolhido não raras vezes naquele espaço. “Os Artistas Unidos sempre foram uma companhia que além de produzir muito também acolheu muita gente. Muitas gerações passaram por aqui. É triste pensar que há mais um teatro na cidade que está a fechar”, lamenta, sublinhando: “É só um sintoma da cidade a expulsar quem é da cidade e isso é muito triste.”
A julgar pelos que vão chegando, é visível o impacto da companhia numa nova geração de atores. Rita Rocha Silva, jovem atriz que entra na próxima peça dos Artistas Unidos, Búfalos, confirma: “Uma das coisa que o Jorge Silva Melo fez foi apostar em jovens atores, e o Pedro Carraca também o faz. Perder este espaço é também perder a possibilidade de isso continuar a acontecer. De jovens atores de novas gerações poderem voltar a contactar com companhias com mais anos de experiência”, diz. “São anos e anos de história neste espaço. Já fomos tão felizes aqui, já aprendemos tanto também. É um dia triste, melancólico, mas ao mesmo tempo quero acreditar que há esperança. Quero acreditar que vamos ter uma casa em breve.”
Na televisão, a história repete-se literalmente. No ecrã da que está ligada no hall da Politécnica, exibe-se A Capital (2003), documentário de Rui Ascensão realizado durante os últimos ensaios precisamente antes de a companhia ser despejada pela primeira vez, há duas décadas. “É inacreditável como é que uma companhia com um trabalho incrível é despejada por duas vezes. É uma tristeza ver uma vez mais os Artistas Unidos a ser despejados, sem casa, sem ter para onde ir”, critica a diretora de casting Patrícia Vasconcelos, também entre tarefas.
Francisco Frazão, diretor do TBA — Teatro do Bairro Alto, a poucos metros dali, também quis “manifestar solidariedade com esta companhia tão importante para a cidade”, com quem começou a trabalhar no início da carreira. “Espero que não seja um desfecho, que as conversas e negociações [com a CML] continuem. Sei que a dívida da cidade de Lisboa para com os Artistas Unidos começa muito antes… Estava a ver imagens d’A Capital. Começa nessa altura. Espero que se encontre uma solução provisória e a definitiva que esta companhia merece.”
Têm sido anos de instabilidade e turbulência para a companhia formada a partir do grupo que estreou, a 18 de setembro de 1995, nos Encontros Acarte, António, um Rapaz de Lisboa, de Jorge Silva Melo, peça histórica para o teatro português e que marcou o nascimento dos Artistas Unidos. Nesse mesmo ano, instalaram-se no edifício que havia sido do jornal A Capital, no Bairro Alto, em Lisboa, de onde foram obrigados a sair em 2002 por decisão da autarquia, então presidida por Santana Lopes (PSD), por alegada falta de segurança. Acabariam por se fixar no Teatro Taborda, na Encosta do Castelo, que abandonariam em 2005 em rutura com a Câmara de Lisboa. Em 2006 a companhia ainda esteve uma temporada no antigo Convento das Mónicas, antes de rumar ao Teatro da Politécnica, onde esteve até a Universidade de Lisboa, proprietária do espaço, decidir cessar o contrato.
Em dezembro, uma luz pareceu iluminar o futuro dos Artistas Unidos. A autarquia, já presidida pelo social-democrata Carlos Moedas – que recentemente assumiu também a pasta da Cultura, na sequência da demissão do vereador Diogo Moura (CDS-PP) –, assinou o compromisso de avançar com a requalificação do edifício d’A Capital, no Bairro Alto, onde os Artistas Unidos iriam ganhar a sua nova casa, no segundo semestre do corrente ano, anunciava-se. O edifício, pertencente à Câmara Municipal de Lisboa, está afeto a um projeto de renda acessível, mas existiria uma área no rés-do-chão e na cave que poderia ser destinada a um espaço multiusos.
No entanto, a posição não é pacífica, como se verificou nesta mesma terça-feira na reunião da Assembleia Municipal de Lisboa, em que a presidente da Junta de Freguesia da Misericórdia, Carla Madeira (PS), expressou preocupação com a execução do projeto no espaço onde estão previstos 45 fogos de renda acessível, defendendo que a oferta de habitação é “uma necessidade urgente no centro histórico”, reporta a agência Lusa. “Estamos a falar de uma obra que vai demorar muitos, muitos anos, portanto, nessa altura, se não for encontrado um local alternativo para os Artistas Unidos, eu lamento informar, mas eles vão desaparecer, porque aquele edifício pode ser uma solução daqui a uma década, mas não é uma solução neste momento”, alertou a socialista.
Em resposta, a vereadora das Obras Municipais, Filipa Roseta (PSD) recusou a ideia de ser necessário uma década, referindo que são “dois anos de projeto, dois anos de obra”. “Estamos a três anos da obra [concluída], se não houver nenhum problema”, apontou, frisando que “é uma obra prioritária” e considerando que os Artistas Unidos “estão satisfeitos” com este espaço no antigo edifício de A Capital.
Certo é que as obras ainda não começaram. “Passados estes dois anos, as obras ainda nem começaram e continuamos a não saber o que é que vai acontecer”, constata Pedro Carraca, co-diretor dos Artistas Unidos (função que divide com João Meireles e António Simão). “Esse projeto não cabimenta um teatro pequeno, não tem pé direito suficiente. Foi uma ideia, mas que na prática não é possível”, diz António Simão. “Estamos há um ano e meio a tentar renegociar o projeto de arquitetura sem resposta da Câmara”, critica.
“Ofereceram-nos A Capital, não A Capital que conhecíamos, que eram três prédios com cinco andares. Ofereceram-nos o resto de um rés-do-chão e a cave de um dos prédios. Mesmo assim poderia ter área suficiente, é um espaço que pedimos durante anos. Fomos ver o espaço, falámos com os arquitetos. Levantaram-se bastantes dúvidas e pedimos planos arquitetónicos para esclarecer essas duvidas. Esses planos pedidos há dois anos e dois meses chegaram a semana passada”, afirma Pedro Carraca. “Não olhámos para eles agora porque não conseguimos, mas há dúvidas prementes”, aponta, nomeadamente no que diz respeito ao pé direito e às colunas nas bancadas. “Enquanto essas dúvidas não estiverem respondidas esse não pode ser o nosso espaço”, reitera.
Ao Observador, o departamento de comunicação da Câmara de Lisboa confirmou em junho que “mantém o edifício A Capital como uma possibilidade para acolher os Artistas Unidos, mas, encontrando-se o projeto para este imóvel ainda em execução, tem procurado soluções, ainda que temporárias, para acolhimento da companhia”, não esclarecendo o que motivou o atraso na execução da obra e recusando dar detalhes sobre o projeto. Na última sexta-feira, o presidente da Câmara de Lisboa reiterou o “esforço” do município em encontrar uma solução para a companhia. “É que não se encontra um sítio que tenha aquelas características, mas continuamos a mover mundos e fundos para ter uma solução para os Artistas Unidos”, disse Carlos Moedas, num encontro com jornalistas.
Para João Meireles, dos Artistas Unidos, “a Câmara acordou demasiado tarde para este assunto”, lamentando a inércia da autarquia de Carlos Moedas perante um problema que já era anunciado. “A nossa aflição com esta situação não começou há um mês. Da Câmara sim, há um mês a Câmara começou-se a preocupar. Todo o empenho declarado, quer pelo vereador Diogo Moura quer pelo presidente Carlos Moedas, só há cerca de um mês é que começou a ter alguma expressão prática”. Os espaços que visitaram revelaram-se inviáveis, quer “pela dimensão” quer pelo “cariz social que não é compatível com uma missão de uma companhia como esta”. Segundo o responsável, é necessário um espaço com, pelo menos, 300 a 400 metros quadrados, seis metros de pé direito e nove metros de largura, além de um espaço de armazém.
A cenografia, figurinos e adereços acumulados ao longo dos anos não cabem no “pequeno armazém partilhado” em Marvila que lhes foi proposto pela autarquia na última sexta-feira. “Ontem ainda pensámos se não íamos correr a vergonha de carregar os camiões, dar a volta e estacioná-los ali à espera de um sítio”, diz João Meireles. “A grande preocupação é essa. Vamos daqui a 15 dias entregar as chaves e ainda não sabemos exatamente onde é que vamos pôr todas as coisas que tirar daqui”, refere. “As coisas estão a acontecer hora a hora”, relata, explicando que só nas últimas horas é que descobriu que o armazém disponibilizado pela autarquia “não tem, afinal, os 80 metros quadrados que sexta-feira pareciam ser possíveis, mas só 30 metros quadrados”, diz. Precisavam de 300, nota, e reforça: “Temos de entregar a chave daqui a 15 dias”.
Ainda não é o fim, mas “está a pôr em risco a continuidade da companhia”
Não ter casa não implica parar, pelo menos para já. Depois de Girafas e Leões, a terceira e última parte da trilogia do dramaturgo Pau Miró, Búfalos, estreia-se a 25 de julho no Citemor, festival em Montemor-o-Velho que acontece de 19 de julho a 10 de agosto. A companhia esperava abrir a rentrée teatral, em setembro, com o espetáculo do autor catalão, em Lisboa, como habitualmente, mas ainda não há previsão de que espaço vai receber as apresentações. Em causa está também a reposição das duas anteriores peças de Pau Miró, que estava prevista para acontecer em simultâneo com Búfalos.
Garantido está o palco para a produção seguinte, Vento Forte, do norueguês Jon Fosse, Nobel da Literatura deste ano. Vai mostrar-se em novembro no renovado Teatro Variedades, no Parque Mayer, em Lisboa. Mas, como sublinhou o presidente da Câmara de Lisboa, a passagem dos Artistas Unidos pelo Variedades é “temporária”, já que este teatro funcionará apenas como acolhimento. Está também prevista um espetáculo intitulado 1984, que se mostrará em Aveiro e no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, no início de 2025.
São soluções provisórias para manter a atividade, ainda que com um inevitável decréscimo no número de récitas, e que não evitam o possível fim da companhia. “Está a pôr em risco a continuidade da companhia”, diz, sem dúvidas, Pedro Carraca. Uma das principais preocupações no imediato prende-se com os trabalhadores: os Artistas Unidos têm uma equipa fixa de 12 pessoas. “Não sabemos onde é que vamos pôr as pessoas a trabalhar”, alertam.
“Temos um acordo com a Direção-Geral das Artes (DGArtes) que implica termos um espaço fixo. A curto prazo, a quatro meses, dependendo da boa-vontade da DGArtes, esse acordo será quebrado. Se não tivermos um espaço é sinal que não somos elegíveis”, diz. O apoio, que representa 40% do orçamento da companhia e que vigora até ao fim de 2026 implica a existência de um espaço.
A longo prazo, a companhia acredita que não ter um teatro onde criar, ensaiar e apresentar espetáculos “condenará a sua ação e intervenção, mais uma vez, a uma situação de itinerância e precariedade insustentáveis às características da sua atividade, impossibilitando tanto a permanência da equipa contratada, como a continuidade da sua ação cultural e artística”.
Segundo a direção dos Artistas Unidos, tanto a DGArtes como o Ministério da Cultura estão a par da situação e que a direção já foi mesmo contactada pelo gabinete da ministra Dalila Rodrigues, com quem ainda não reuniu. O Observador contactou o gabinete de imprensa da ministra da Cultura, mas não obteve resposta.
Em 2024, a taxa de ocupação dos espetáculos dos Artistas Unidos esteve “perto de 70%”, revela Pedro Carraca. “São números bastante simpáticos” e “sinal de que o trabalho é importante para as pessoas e para a cidade”. Não apaga o amargo de boca com o desfecho. “Estar a desaparecer neste momento, não quer dizer que seja definitivo, mas é muito triste,” assume António Simão. “A cidade não pode ser só negócio, turismo, cafés, hotéis e restaurantes. A vida das pessoas na cidade deveria ter muita importância. Os teatros, os cinemas, as bibliotecas, os museus, as galerias, são coisas que deviam existir, deviam ser valorizadas e cuidadas. Sentir que isso não está a acontecer e ver isso nas outra pessoas é muito triste.”