Discurso de Jerónimo de Sousa

na última intervenção como secretário-geral do PCP

Para trás ficou um intenso trabalho preparatório, envolvendo milhares de militantes e praticamente todos os organismos do partido, em centenas de reuniões, eletivas e de debate realizadas por todo o país. Um alargado processo de discussão coletiva, onde uma vez mais está patente o funcionamento democrático do nosso partido.

Primeiro recado: numa semana em que o PCP foi muito criticado pelo processo de escolha do novo líder, que acontece num circuito muito fechado — os órgãos mais restritos do partido propuseram o nome de Paulo Raimundo há uma semana aos membros do Comité Central, os únicos com direito a voto nesta matéria; não há lugar para candidaturas alternativas — Jerónimo de Sousa faz questão de elogiar o “funcionamento democrático do partido”. Para isso agarra-se aos meses que os militantes passaram em reuniões de trabalho para preparar a conferência nacional — como dizia o dirigente João Frazão ao Observador, em entrevista nesta sexta-feira, o ponto mais importante para o PCP é que a discussão dos conteúdos, e não dos protagonistas, seja participada e aberta a todos.

Esta estratégia do imperialismo – em que se insere a guerra na Ucrânia e o seu prolongamento e a crescente tensão e provocação contra a China – transporta consigo o perigo de uma confrontação global com graves consequências para a humanidade.

É a primeira de várias referências à guerra na Ucrânia, embora para o PCP esta seja apenas um “prolongamento” do conflito que se arrasta no Donbass desde 2014. A posição do partido não muda um milímetro: neste discurso, não só o líder cessante culpa o “imperialismo” dos Estados Unidos e da NATO — e não da Rússia — pela continuação da guerra como junta a este fator críticas sobre o que diz ser uma “tensão e provocação contra a China”. Assim, o “imperialismo” norte-americano e europeu a que até Portugal, acredita o PCP, se vergou será o culpado por uma “confrontação global com graves consequências para a humanidade”. Jerónimo só refere uma vez diretamente a Federação Russa, para dizer que se deve negociar a paz com Moscovo.

Outro traço cada vez mais claro e preocupante desta evolução e desta estratégia do imperialismo é a intensificação da manipulação, da mentira e a censura da informação, visando impor um pensamento único e vulgarizar concepções reaccionárias e fascizantes para, promovendo o anticomunismo, atacar a democracia e fazer regredir a consciência dos povos sobre os seus legítimos direitos e aspirações.

Consequência dessas ações do “imperialismo”, prossegue Jerónimo, são uma intensificação do que acredita serem formas de mentira, manipulação e até censura. Aqui, não fala só da guerra: o mesmo raciocínio — há uma tentativa de impor um “pensamento único” ao qual só o PCP foge — se aplicaria, aos olhos do PCP, às suas posições sobre a pandemia. Um caso e outro são, de resto, usados pelo partido para garantir que está a sofrer uma “brutal ofensiva” ou, como já tem referido, uma “operação global” para enfraquecer o comunismo e até atacar a democracia. No fundo, o PCP continua a sua linha narrativa, que alimenta particularmente desde a polémica Festa do Avante! realizada em tempos de pandemia e que serve para fazer uma espécie de cerrar de fileiras, na esperança de mobilizar os militantes para a causa tendo por motivação a luta contra um (no caso, vários) inimigos comuns.

Desde logo, a alteração da correlação de forças no plano político e institucional com a obtenção de uma maioria absoluta pelo PS – acompanhada da redução da expressão parlamentar do PCP, alcançada na base de uma operação de chantagem e mistificação.Se alguém tinha dúvidas dos verdadeiros objectivos dessa operação, que tinha muito de maquiavélica pelo cálculo e o sofisma que transportava, a realidade está a comprová-lo.

Neste ponto, Jerónimo de Sousa continua o esforço que tanto PS como PCP tentam fazer para controlar a narrativa sobre o fim da geringonça, ou, de acordo com o léxico comunista, a “nova fase da vida política nacional”. Se a curto prazo quem conseguiu tomar o controlo foi o PS, ou não tivesse atingido a desejada maioria absoluta, o PCP espera que na maratona de um ciclo político e económico difícil, com a inflação à mistura e um risco de recessão que continua a agitar, o tempo venha a dar-lhe razão (e a devolver-lhe algum do eleitorado perdido). Por agora, não só fala num processo de chantagem, referindo-se à queda do Governo e às eleições antecipadas — processo pelo qual costuma culpar também, além de António Costa, Marcelo Rebelo de Sousa — como vai mais longe e chega a falar numa operação “maquiavélica” e calculista, cozinhada entre Belém e São Bento.

Comprova-o o fazer costas com costas do PS com o PSD, o CDS, a IL e o Chega no que era decisivo para garantir os interesses do grande capital, fosse para inviabilizar as propostas do PCP de reposição na plenitude, como era justo dos direitos laborais e sociais extorquidos aos trabalhadores, de aumento dos salários, da exigência do controlo dos preços e da taxação de lucros extraordinários da especulação.

O PCP já vem há muito subindo o tom dos ataques contra o PS, mas aqui atira-se ao antigo parceiro sem quaisquer pruridos e já coloca os socialistas a “fazer costas com costas” com PSD, CDS, IL e até Chega, no que toca à defesa dos grandes interesses. Em mais um momento de justificação sobre a decisão que tomou ao chumbar o Orçamento do Estado socialista, explica que o PS está cada vez mais inclinado para a direita — ou seja, seria cada vez mais difícil negociar com os socialistas, que já estariam a planear a rutura com os parceiros da esquerda — e dá exemplos: do “embuste” dos aumentos das reformas à “retoma do processo privatizador” da TAP ao acordo de rendimentos assinado com os patrões, o PS cada vez se confunde mais com a direita, avisa Jerónimo. E os tempos de maioria poderão, para o líder comunista cessante, trazer um “aprofundar” dos problemas ainda maior do que nos tempos da política de direita. Os ataques continuam uns minutos depois, quando Jerónimo acusa o PS de “empolar e encenar” uma oposição com os partidos à sua direita — principalmente com o Chega, que Costa tem agitado como papão, na mesma linha do que fez na campanha eleitoral para chamar a si o voto útil da esquerda — mas, no fundo, de acabar por tomar decisões que a direita tomaria em “aspetos essenciais”.

Evidente nos mais recentes desenvolvimentos é o explícito e crescente confronto com a Constituição da República por parte das forças reacionárias, com o objetivo da sua revisão e subversão, a par da promoção de alterações de sentido antidemocrático às leis eleitorais e à legislação laboral. O início do processo de revisão constitucional agora avançado e a olhar para a experiência passada de concertação entre o PS e o conjunto das forças reacionárias, inimigas da Constituição de Abril, não nos pode deixar descansados.

Jerónimo de Sousa será o último deputado constituinte a abandonar o Parlamento. E, à saída, deixa um aviso: no processo de revisão constitucional que agora decorre pode trazer uma nova “concertação” entre PS e direita, além de alterações “antidemocráticas”. Em princípio, não haverá assim tantas razões para Jerónimo temer os resultados do processo, pelo menos a julgar pelas palavras de António Costa, que já veio garantir querer mexidas minimalistas e sem alterações institucionais ou de organização política. Por perceber fica se não há negociação possível com o PSD que possa alterar essas certezas do primeiro-ministro, sendo certo que, para haver revisão constitucional, ambos os partidos terão de entrar nestas contas (para garantir a aprovação do documento por dois terços dos deputados).

Sabemos que o caminho é duro. Sabemos quanto pesa a brutal ofensiva que se desenvolve contra o PCP, porque é o que é e não abdica de o ser(…). Sabemos o que significam e pretendem as campanhas de deturpação das suas posições, das calúnias e das tentativas de chantagem, condicionamento e silenciamento a que o PCP está sujeito, em resultado da sua corajosa intervenção. A classe dominante – os senhores do mando no país – ambicionaria que, perante a ofensiva, o Partido tivesse soçobrado e abdicado de princípios e objetivos, se submetesse à sua agenda e aos seus critérios. Enganaram-se e vão continuar enganados!

O discurso virado para dentro, para motivar os militantes contra os inimigos externos, continua. Aqui, Jerónimo admite que os tempos não estão fáceis para os comunistas, mas volta a culpar fatores como um alegado ataque ao partido simplesmente por ser “o que é”. O PCP não recua: Jerónimo chega a dizer que era do interesse dos “senhores do mando no país” que o partido “escondesse a verdade” tanto sobre os aproveitamentos da pandemia, como sobre as “opções de classe do PS” ou sobre a natureza da NATO, a guerra e as sanções. O PCP apresenta-se assim como uma espécie de agente da verdade, injustamente isolado e silenciado no espetro político, mais uma vez com o mesmo objetivo: chamar as tropas a si e defender-se.

Sabemos, pela experiência acumulada que o caminho para resistir e avançar  não pode ser outro senão aquele que sempre deu provas: centrar  a intervenção do Partido na resposta aos problemas concretos, nos anseios e aspirações dos trabalhadores e do povo, articulada com a luta por uma política alternativa e uma sociedade mais justa. Ligar ainda mais o partido à vida, afirmá-lo como o instrumento fundamental de acção e luta. Reforçar a organização, como instrumento fundamental de ligação aos trabalhadores e às populações.

Aqui, Jerónimo traça, em três grandes pontos, o que será o caminho do PCP neste novo ciclo que se inicia. Por um lado, é preciso centrar-se nos “problemas concretos”, um objetivo não desligado do segundo, que passa por ligar o partido “à vida” — e à luta. O PCP acredita que é assim, olhando para as bases, posicionando-se como a voz dos que mais estão a sofrer num contexto económico difícil e fazendo a defesa desses nas ruas — até porque tem muito menos palco parlamentar e o novo líder não tem lugar como deputado — que vai conseguir resistir aos problemas que enfrenta agora. O terceiro ponto passa por reforçar a organização do partido, ponto crucial para o PCP, cuja organização depende muito desse trabalho dos militantes e das organizações locais, assim como da sua ligação a empresas e sindicatos (daí que Jerónimo note que é particularmente “imprescindível” reforçar a sua “capacidade de atração” nesses setores). O “trabalho no seio das massas” é a linha a seguir, depois de tempos de geringonça muito focados na frente parlamentar.

Um partido que assume firme e corajosamente a sua identidade comunista. Um partido que faz toda a diferença, porque diferente é a sua ideologia, a sua política, o seu projecto político. Uma diferença que se distingue na identidade própria: natureza de classe, teoria revolucionária – o marxismo-leninismo -, democracia interna assente no desenvolvimento criativo do centralismo democrático, linha de massas, projecto do socialismo, patriotismo e internacionalismo.

Em tempos de crise, Jerónimo faz uma ressalva importante: o PCP pode estar consciente de que enfrenta um ciclo duro, mas não é por isso que alterará alguma coisa na sua essência ou abdicará da sua “identidade comunista”, chegando a recordar aos delegados a base do projeto político marxista-leninista do PCP. Um sinal de que o partido não está interessado em fazer grandes adaptações à sua linha política, até porque está convencido de que isso ditou, no resto da Europa, o definhamento de outros partidos comunistas, que enveredaram pelo caminho dos “desvios” e de supostas “modernizações”, como diziam fontes do partido ao Observador. Jerónimo deixa o recado: o PCP não deve desviar-se um milímetro da sua ideologia e do seu projeto para uma “sociedade nova”.

O PCP, com a luta dos trabalhadores e do povo, influenciou e influencia a evolução da vida nacional. Sabemos que o vento está duro e fustiga-nos o rosto, mas não lhe viramos as costas.

Por fim, um recado de esperança — o PCP continua a “influenciar” a vida e a política — e uma promessa: não virar as costas ao mau tempo. A segunda frase, mais inflamada, é, de resto, o único improviso que Jerónimo arrisca em 40 minutos de discurso, e consegue levantar a sala (e ser aplaudido durante mais de quatro minutos). Assim, falando muito do partido e nada de si próprio — não há uma única referência ao facto de esta ser a sua última intervenção em 18 anos de liderança, nenhuma referência pessoal ou balanço — Jerónimo sai de cena.

Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre o perfil de Paulo Raimundo.

Paulo Raimundo “é solução” para o PCP?