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Vitorino Coragem

Vitorino Coragem

"Um homem muito alto e uma mulher muito baixa entram num bar": um conto de Valério Romão para o dia da mãe

Esta é a história de uma "única e insubstituível luz". Faz parte de "Nome de Mãe", novo livro que junta 10 autores portugueses e outras tantas ficções, todas com o mesmo tema na origem e na conclusão.

Com o carimbo da Companhia das Letras, trata-se do segundo título que segue este princípio: se em “Mães que Tudo” líamos contos inéditos de escritoras portuguesas, este “Nome de Mãe” reúne uma dezena de autores sob a mesma vontade. Conceito simples, o de procurar inspiração na mãe, a particular e específica de cada um e a palavra enquanto entidade abrangente.

A saber: Afonso Reis Cabral, Hugo Gonçalves, Jacinto Lucas Pires, João Tordo, Kalaf Epalanga, Mário de Carvalho, Miguel Araújo, Ondjaki e Ricardo Adolfo fazem parte do elenco desta coletânea. E também Valério Romão, cujo conto publicamos aqui.

De onde eu estava via-se apenas um preto enorme lá ao fundo e as pessoas pendiam para a esquerda e para a direita da fila para lhe tentar adivinhar a altura à distância e faziam apostas, e eu olhava maravilhado não somente para o sujeito que era certamente o maior homem que já vira mas igualmente para um sapato que, pendurado sobre a porta de entrada em jeito de troféu de pesca, dava ares de ter sido retirado do pé de um adamastor longínquo vergado a muito custo numa batalha à qual os poetas ainda não tinham prestado a devida reverência lírica.

O homem recebia as pessoas num silêncio de luto, apertando-lhes a mão mecanicamente e abanando a cabeça, e o sol mostarda de Outono recortava-lhe no rosto uma fatia de luz que lhe pendia sob os olhos como uma pintura tribal, o homem não sorria, não falava, cumpria numa diligência de pastor luterano as suas parcas funções de anfitrião contrariado e quando alguém se demorava mais do que o suposto no baque de o olhar de cima para baixo este içava do braço para, encostando a palma continental da mão nas costas do retardatário, o encaminhar para dentro do vagão.

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Era Outubro e era a Feira de São Francisco, eram os carrosséis e os carrinhos de choque, os blusões grossos fingindo couro polvilhados de insígnias geométricas de pano a fazer lembrar o Top Gun, era o chão de terra permanentemente ensopado de onde se levava para casa barro suficiente para fazer dois cinzeiros, eram os carrinhos de pipocas decorados numa fúria cromática capaz de orientar um barco fendendo o nevoeiro ente à costa, cada um deles competindo com os restantes no apelo aos passantes, e a coisa ia do sublinhado à responsabilidade parental pipocas, o melhor alimento do mundo! ao incentivo desavergonhado à birra infantil chora, miga, que a mãe compra!, eram as espingardas de ar comprimido de onde saía um peidinho de chumbo cansado numa direcção quanticamente aleatória, a trupe de caçadores bêbedos sorrindo de cada vez que um deles as empunhava, um gajo com isto não ferrava nem um tractor a dormir!, era o barulho inclemente e cacofónico com o qual se anunciava num tropel praticamente incompreensível de sílabas um jogo imperdível de atoalhados por gente de microfone ao peito cuja carreira poderia ter sido na pesca de pérolas, o barulho do início e do fim das sessões de osteopatia amadora na pista de carrinhos de choque, o barulho dos carrosséis rodopiando numa distribuição fortuita de leite azedo e vinho tinto, o barulho das pessoas alçando a voz para melhor expressarem desentendimento, o barulho dos geradores reumáticos alimentando o sistema nervoso central de todo aquele som e luz, o barulho que só terminava quando os últimos bêbedos se viam desalojados do banco alto rente a um qualquer balcão onde haviam planeado evitar a companhia da família.

A capa de "Nome de Mãe", coletânea de contos de vários autores portugueses (Companhia das Letras)

Era eu ali no meio, provinciano púbere espantado com tudo, os meus passos no encalço dos passos dos mais velhos e mais afoitos, eu que da vida social era mestre apenas na óptica do observador, sempre envergonhado, sempre com medo, sempre vestido para um baptizado, a minha mãe compondo-me as patilhas com uma generosa leva de cuspo e endireitando-me um casaquinho num tom de bege entre a fartura e a pelagem de alguns burros que se confundem com a seara, repetindo inevitavelmente a ladainha com que se despedia de mim fosse para um dia de escola ou uma sessão de cinema, não fumes, não aceites nada que te dêem, não te metas na cerveja, volta cedo, eu sacudia-lhe as mãos que nasciam por cima de mim tentaculares, ela descobrindo em cada leva uma madeixa desalinhada, uma migalha de tamanho subatómico, um pretexto para me ter mais tempo debaixo d’olho, eu que queria sair dali e ver o mundo, sair de Tavira, claro está, ir por exemplo a Lisboa onde me garantiam estarem sempre a acontecer coisas, coisas com que uma pessoa ali não ousava nem sonhar, coisas através das quais o mundo ganhava algum sentido ou, pelo menos, alguma dimensão, e enquanto não tinha idade para me pôr ao caminho numa felicidade canina de quem vai farejando tudo pela primeira vez, aproveitava qualquer ocasião que tivesse para me afastar de casa, o que, não sendo exactamente uma saída era, pelo menos, um benfazejo intervalo.

Era a chuva caindo tímida sobre a fila compacta e ainda assim afastando os mais empedernidos algarvios, perpetuamente confusos com a ideia de estações do ano, e a gente chegava-se rapidamente à frente não fosse um espertalhão com mais corpo ou hormonas aproveitar a aberta para lá enfiar a família a reboque, quando embatíamos distraídos na criatura defronte bocejávamos uma desculpa coral, todos de olhos postos naquela estaca de homem feito farol da nossa curiosidade, em Tavira não havia negros senão nas obras, e ainda assim poucos e muito menos daquele tamanho, os negros que víamos sem ser a acartar baldes de massa eram os mesmos que no talho ou no supermercado pediam uma cabeça de porco para guisar, para deleite civilizacional dos brancos que não tão disfarçadamente quanto isso cochichavam umas piadas simplórias – que é, no fundo, o patamar máximo do humor ao alcance do pobre – e só na tasca e sob amplo efeito de democratização etílica se atalhavam ocasionalmente algumas conversas inter-raciais nas quais os brancos percebiam que estavam mais próximos dos negros pela miséria que era comum a todos do que distantes e seguros, do outro lado do fosso imaginário das diferenças de pigmentação, e não raramente a descoberta se convertia em frustração e esta se tornava no combustível com que alimentavam a fornalha de insultos com que brindavam indiscriminadamente as coisas e as pessoas à sua passagem, no regresso trôpego a casa.

Era ainda em escudos que se pagava, duas moedas de cem convertidas num ingresso numerado que uma gorda aborrecida arrancava pelo picotado e nos passava por baixo de um vidro sujo e baço, uma mulher num vestido larguíssimo de padrão florido que juro ter entrevisto mais tarde num poema da Sylvia Plath descendo umas escadas à noite para beber água, e quando chegávamos mais perto do homem é que percebíamos que ele estava sentado, que havia ainda mais homem do que aquele que já nos causava considerável espanto, um dos meus amigos mais afoitos perguntava-lhe se ele se podia levantar e pela primeira vez víamo-lo esboçar uma expressão diferente, dir-se-ia que um sorriso – acaso o sorriso tivesse equivalência num corpo daquele tamanho, o que era de todo incerto – e o homem desencaracolando como uma árvore a espreguiçar-se ia subindo por ali acima até nos curto-circuitar o músculo que mantém a boca fechada, os mais sensíveis persignavam- se num espanto de apocalipse, ele estendia-me o braço longuíssimo por onde me via trepar como um saguim assustadiço, dava-me a costumeira palmada nas costas com que desfazia o torpor do espanto e aos tropeções uns nos outros entravámos no vagão quase às escuras.

"A minha mãe resignada num autocarro para Clermont-Ferrand sem saber uma palavra em francês, uma casa velha num primeiro andar onde o Inverno entrava como um fantasma, a minha mãe a alimentar o dia todo um antiquíssimo fogão a lenha no qual fervia água para o banho."

Andávamos ali dentro aos apalpões até a vista se acostumar à luz, e de um pequeno corredor que percorríamos num inédito silêncio adolescente passávamos para uma sala cujo chão e paredes negros eram pontilhados por focos incidindo sobre umas caixas de vidro onde toda a sorte de criaturas irreais posavam mortas, aproximávamo-nos receosos daqueles aquários de troféus, baços das dedadas dos curiosos, dentro do primeiro estava um borrego pequeno rudimentarmente embalsamado com duas cabeças af lorando da raiz de um pescoço minúsculo, os olhos eram uma espécie de berlinde leitoso onde alguém tivesse desenhado sem grande precisão aquelas pupilas horizontais a que não se adivinha consciência, duas cabeças, quatro olhos, duas criaturas, um corpo, todo um tratado de erros aritméticos básicos, a gente varria-o de cima a baixo em busca das costuras, da fraude, um dos rapazes do grupo recitava em catadupa um pai-nosso com que se protegia daquela visão, e mesmo os mais recalcitrantes à ideia do divino se defendiam numa lógica escolástica, porque nosso Senhor no seu infinito cuidado jamais permitiria semelhante ofensa à Sua obra, eu pelo contrário não me interessava nada saber se o bicho nascera assim ou fora enxertado para impressionar o pobre, o que me interessava do borrego bicéfalo ou do cão com duas patas suplentes era a ideia, a ficção, para mim aquele repositório de quimeras era a tradução mais perfeita da insuficiência que sempre sentira relativamente ao mundo, da necessidade lúdica de lhe desenhar outros contornos, de lhe acrescentar bocados simplesmente pelo prazer de o modificar, queria lá saber se era Deus ou o homem a perverter a natureza das coisas ou se a perversão se dava antes ou depois do nascimento e da morte, eu via no monstro a expressão mais inflexível das regras – a cabeça, dois olhos, uma criatura – e a plasticidade redentora da diferença, e se não foi naquele dia mesmo, naquele pequeno museu de horrores, que aprendi algo fundamental acerca da arte também não o terá sido mais tarde.

Quando à noite me ia deitar cumpria inevitavelmente o mesmo ritual: verificar se o esquentador estava desligado, fechar a válvula da bilha de gás e certificar-me de que a janela do meu quarto não estava completamente corrida, fosse Verão ou Inverno, porque o meu maior medo era morrer no sono, que morrêssemos todos no sono, eu, a minha mãe e o meu pai, desprovidos até da possibilidade de num último olhar à volta assistir ao  trabalho da morte e ao ruir de tudo quanto é, o candeeiro da mesa de cabeceira sempre ligado e uma magra lâmpada de vinte watts chegava para me assegurar a qualquer momento de que o quarto ainda era o quarto e de que eu ainda era eu, ao meu lado na cama o primeiro dos quatro volumes da Enciclopédia Médica da Família, eu abria ao calhas e descobria que um sujeito podia morrer tão repentinamente que dava igual estar acordado ou a dormir, aneurisma, apoplexia, AVC, de que nos podiam valer os olhos abertos ou a luz acesa, ou mesmo as duas cabeças do borrego bicéfalo, despertava a meio da noite aos gritos, a minha mãe acorria do quarto dos meus pais, eu sentado sobre a cama gelatina adolescente de palavra imprecisa, ela ia-me reclinando devagar como se acamam as gruas doentes, sussurrando-me coisas de tranquilidade e futuro ao ouvido, e era assim que eu varava muitas das noites em que a incerteza e o medo me visitavam de mãos dadas.

A minha mãe grávida aos quarenta e três anos, o meu pai emigrado em França, o Portugal de Marcello Caetano nos idos de setenta e três esfarelado por dentro, um país mobília velha comido e conservado pelo mesmo caruncho, um imenso faz-de-conta caninamente manso onde as pessoas todos os dias saíam de casa com um futuro imaginário no bolso para trocar à mesa do café ou da tasca, a minha mãe a descer e a subir furiosamente a escadaria da igreja na tentativa de me abortar, que eu não havia de nascer ali naquele tempo bruto e enevoado, a minha mãe com os pulmões a arder e nem uma farripa de sangue nas cuecas, a minha mãe resignada num autocarro para Clermont-Ferrand sem saber uma palavra em francês, uma casa velha num primeiro andar onde o Inverno entrava como um fantasma, a minha mãe a alimentar o dia todo um antiquíssimo fogão a lenha no qual fervia água para o banho, o meu pai pendurado por um baraço na arriba da cobertura de um oitavo andar para colocar umas telhas de xisto, quando olhava em redor via a cidade espraiar-se dolente naquela bacia cercada pelo Massif Central, é aqui que ele vai nascer, pensava, não é casa mas casa se fará, e no dia doze de Outubro a minha mãe entrava cedo nas urgências da maternidade, ao meio-dia estava despachada, de pequeno mamífero imberbe ao colo, o meu pai eufórico perguntava-lhe se ela ainda me queria dar para adopção, tão contrariada que estava com a minha vinda, a minha mãe respirando fundo como sempre fazia quando ele dizia disparates, como é que lhe vamos chamar, a minha mãe e o meu pai atirando uns nomes para cima da cama de hospital de onde emergia um por consenso, um nome que nunca cheguei a calçar, um nome de que toda a gente se esqueceu, pois quando o meu pai chegou ao registo três dias depois para me levar e à minha mãe para casa ainda estava bêbedo e à pergunta pelo nome do bebé improvisou.

"O herói não é a montanha, é o planalto, não me lembro já onde li isto, se terá sido num haiku japonês eternamente críptico para quem vê nascer o sol deste lado do mundo ou num daqueles filósofos franceses do século dezasseis com tempo a mais, mas poderia ser o epitáfio da minha mãe, campeã da longa distância existencial, movida pelo imperativo de nos manter vivos, a mim e às minhas irmãs, ao meu pai, aos netos e bisnetos, a toda e qualquer criatura calhando a orbitar em seu redor por algum tempo."

A minha mãe metera na cabeça a certeza da minha morte e de cada vez que eu espirrava ela adoecia, quando aos três anos fui um dos dois contemplados pela roleta russa de um surto de meningite na pré-primária a minha mãe, a caminho do hospital comigo no banco de trás fervendo em febre, pouco dada às coisas do céu e do inferno às quais o meu pai levemente marxista chamava tolices para miseráveis, contraía uma dívida de promessas a nosso Senhor absolutamente excessiva face ao tempo de vida para as pagar, o meu pai numa condução de fogareiro queimava todos os sinais de trânsito enquanto o meu corpo no banco de trás se ia silenciosamente fechando num prenúncio de falência, o meu pai à chegada ao hospital entrava urgências adentro comigo nos braços a gritar, a minha mãe ficava sentada no carro à espera da inevitável notícia, olhos postos no tablier onde uma medalhinha de São Cristóvão padroeiro dos viajantes supostamente nos velava nos dois mil quilómetros que separavam trabalho e casa, o carro que ia sempre atulhado de prendas do primeiro mundo para justificar o nosso estatuto de emigrantes, eu acordava aos berros com uma agulha grossa enfiada na coluna, quatro enfermeiros judocas acotovelavam-se por cima de mim para não me deixarem mexer, meningite bacteriana confirmava-se pouco depois, prognóstico reservado sussurrava um médico no corredor ao meu pai, uma semana a oxigénio, uma semana em coma, eu regressava do lado de lá com uma epilepsia que me havia de acompanhar até aos treze anos, a minha mãe, que depois de conseguir sair do carro passara os restantes dias concentrada apenas na minha respiração, olhava para mim como quem olha para um pardalito caído do ninho, por mais que eu faça o destino é certo.

O herói não é a montanha, é o planalto, não me lembro já onde li isto, se terá sido num haiku japonês eternamente críptico para quem vê nascer o sol deste lado do mundo ou num daqueles filósofos franceses do século dezasseis com tempo a mais, mas poderia ser o epitáfio da minha mãe, campeã da longa distância existencial, movida pelo imperativo de nos manter vivos, a mim e às minhas irmãs, ao meu pai, aos netos e bisnetos, a toda e qualquer criatura calhando a orbitar em seu redor por algum tempo, o oposto exacto do herói convencional no sítio certo à hora certa fazendo coisas de mudar o mundo num curto espaço de tempo, a minha mãe as pessoas que Raskólnikov encontra na Sibéria do seu exílio cortando madeira, atendendo às searas e aos animais, celebrando o solstício de Verão, a minha mãe na Sibéria de todas as casas que tornou casa ajeitando-nos a gola das camisas, mungindo-nos a febre a boiões de Vicks Vaporub, falando de nós num fervor de apóstolo divulgando a boa nova, sempre pronta para regressar ao fim da fila, implacável no cuidado.

"Um dia perceberemos porque morrem as mães, um dia, quando a física nos tiver finalmente encaminhado para dentro de um buraco para dele sair do outro lado do universo com um papiro digital na boca."

A minha mãe com oitenta e nove anos acamada, uma filigrana de vida pendendo-lhe dos dedos, um currículo absolutamente banal ao olhar destreinado, nem um feito de monta para lhe coroar o passado, para a medalha do reconhecimento alheio, uma vida como quem não passa pela vida, eu dobro-me por cima dela para lhe conseguir ouvir a voz que a custo lhe trepa da garganta à boca, pergunta-me como sempre o que comi, se me tenho agasalhado neste Inverno, se tenho conseguido pagar as contas, se estou feliz, se finalmente estou feliz, das raras vezes em que se lamenta da sua crescente impotência para tudo é para se desculpar por não nos poder ser mais, é como se existir fosse apenas útil na medida de ser uma função nas nossas vidas, como se existir fosse uma coisa acontecendo nos outros, a minha mãe aquele corpo frágil mirrado pela inclemência do tempo, aquele corpo que ainda há pouco se agitava nos bailaricos de terceira idade do pavilhão multiusos de Albufeira onde esfalfava velho atrás de velho, passando de um para o outro quando lhes detectava no rosto a arritmia, aqueles braços de onde a pele pende flácida que acartaram incontáveis arrobas de alfarrobas e amêndoas e que agora mal servem para segurar uma caneca trémula por onde nos melhores dias bebe uma sopa, de nada me vale a Enciclopédia Médica da Família, as sessões de psicoterapia para ultrapassar o medo do escuro, os antidepressivos que me guardaram à distância das pontes, de nada me vale mostrar-lhe o meu filho silencioso na tentativa de lhe sacar um sorriso, tudo lhe passa a considerável distância ou por ela imperturbavelmente como neutrinos, aquele corpo é só um peso a desenhar um contorno impreciso no colchão de onde ela já raramente sai, a gente abeira-se da cama, a gente ajoelha-se, a gente recebe uma courela de terra, um relógio de ouro falso, um papagaio de pirata em porcelana, ela vai dividindo as coisas em vida com os olhos postos no apeadeiro final, este corpo um entreposto de onde emerge de vez em quando o passado a cheirar a esteva e a leite coalhado, este corpo de pés pequenos correndo descalços serra fora porque estes olhos viram uma pequena perdiz ao longe, a gente recebe um bolo de arroz tremendo-lhe nas mãos, a gente tira-lhe a cinta de papel e parte-o ao meio, a gente devolve-lhe uma metade do bolo e ela deixa-o cair, a gente finge aborrecer-se com ela como ela se aborrecia connosco em crianças, este corpo é apenas uma resistência à luz que lhe faísca por dentro, um impedimento gasto que lhe coarcta a vontade rente à saída, tens de comer, insistimos, tens de comer para ficar melhor, mesmo sabendo que nada de melhor se pode esperar do que uma brevíssima interrupção do declínio, mas é a ficção que nos mantém à tona, a gente a fingir que a engana e ela a fingir-se enganada e assim se avia uma colher de sopa mais, ela contrariada fecha teimosamente a boca quando a verdade lhe assoma ao perto, tens de comer, mãe, para quê, sim, para quê.

Um dia perceberemos porque morrem as mães, um dia, quando a física nos tiver finalmente encaminhado para dentro de um buraco para dele sair do outro lado do universo com um papiro digital na boca, preparados para vermos respondidas algumas perguntas fundamentais, e se quanto à natureza da matéria e da energia já ousamos dar dois passos, no que diz respeito ao inflexível mistério de ser o que somos, apenas artistas e filósofos continuam a escrever umas perguntas na areia, vem a preia-mar e leva aquilo tudo e recomeça-se do zero, vem o veraneante semeando beatas de cigarros e ri-se entre golfadas de fumo, vem a economia mundial e dá-nos uma ensaboadela por não estarmos concentrados no problema dos corredores logísticos emperrados que impedem as crianças do primeiro mundo de terem uma nova iteração de uma consola qualquer, vem o pobre e despreza-nos pelo tempo que temos para pensar nisso e não em pão, vem o teu vizinho e dá-te um açoite porque ninguém resiste a um homem concentrado sobre si, um homem perigosamente alerta ao pulsar dos seus órgãos, mudo de espanto e ainda assim a fazer perguntas, vem a ciência e diz-te que isso é tudo físico, ou químico, ou biológico, que somos todos escravos de coisas infinitesimais organizando-se continuamente, e se perguntas porquê levas com uma fórmula na tromba para ver se deixas de te armar em esperto, e na verdade ninguém te sabe responder, porque morrem as mães, porque se some esta única e insubstituível luz, quando dás por ti pareces uma daquelas criaturas irreais dentro dos aquários de vidro, a vida passa lá fora embaciando-te a janela, as pessoas olham para ti como se tivesses duas cabeças ou quatro pés quando na verdade tens apenas uma dúvida, uma dúvida tão legítima quanto o porquê de ter nascido, aliás as duas passeiam juntas de mão dada no parque, toda a gente olha para elas fingindo votar-lhes indiferença como se finge come que vais ficar melhor, toda a gente a assistir a este filme experimental ou ao discurso deste psicanalista francês abanando a cabeça como se percebesse, há uma criança que se levanta a meio e ri, quando dás por ti és o sujeito da procissão de meia dúzia de curiosos, sobre ti incide continuamente uma luz branca, as pessoas aproximam-se na segurança de que há um vidro entre ti e elas, quando calhas de te mexeres para te coçares vê-las pular instintivamente para trás, eu tenho a certeza de que se mexeu, ai, que me assustas, deixa-te disso, está empalhado, está morto, é só uma curiosidade, são só palavras.

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