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Esta mulher perdeu os pais esta manhã, ambos assassinados por Adelino Briote
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Esta mulher perdeu os pais esta manhã, ambos assassinados por Adelino Briote

Ricardo Castelo/ Observador

Esta mulher perdeu os pais esta manhã, ambos assassinados por Adelino Briote

Ricardo Castelo/ Observador

"Um homicídio é uma espécie de funeral sem corpo. É uma ferida aberta"

Chamam-lhes "vítimas ocultas". São os familiares e amigos de pessoas assassinadas, dezenas, no caso dos homicídios de Barcelos. Mas há ajuda.

O caos que Adelino Briote lançou na manhã de sexta-feira em Barcelos vai demorar muito tempo a sarar. Morreram quatro pessoas, assassinadas durante a manhã a golpes de faca. Um casal de 80 e 84 anos, uma mulher com cerca de 60 anos e uma mulher de 37 anos, grávida de sete meses, que acabou também por perder a bebé.

Mas as vítimas deste crime não são apenas quatro. São muitas mais. São os filhos, os pais, os irmãos, os maridos, os amigos. Chamam-lhes “vítimas ocultas”, aquelas que perderam amigos ou familiares assassinados.

Pessoas que podem ser ajudadas por profissionais e que muitas vezes recorrem aos polícias como apoio. Fomos falar com quem passou por esta situação e já consegue falar do assunto e com aqueles que todos os dias se dedicam a ajudar.

Foi há quinze anos, mas as marcas estão bem fundas e não hão de desaparecer nunca. Tanto que não quer dar o seu nome verdadeiro. Elsa lembra-se bem do momento em que tudo começou. “Estava a trabalhar, mas saí da secretária e não levei o telemóvel. Uma colega chamou-me a atenção de que a minha mãe estava a ligar insistentemente.” Atendeu o telefone e só percebeu que algo de muito grave tinha acontecido com o pai. “A minha mãe não estava sequer em condições de explicar. Nunca pensei que tivesse morrido. Imaginei um acidente de trabalho. No caminho cruzei-me com uma ambulância em emergência e pensei que fosse ele lá dentro. Só quando cheguei a casa comecei a perceber o que tinha acontecido.” Até então não pensou que o pai pudesse estar morto, e pior, que tivesse sido assassinado… Só acreditou quando a irmã lhe contou.

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As primeiras horas e dias foram cheios de ocupações. “Havia que ser forte, tratar de coisas, tratar dos animais, receava que a minha mãe não aguentasse com os problemas de saúde que já tinha. Quis ocupar-me até esquecer. Ao fim de três dias talvez, vomitei, como se fosse a dor, a raiva, a tristeza que deitasse fora. Senti-me fisicamente tão vazia como me sentia emocionalmente“, recorda.

Desde aquele dia tudo mudou na sua vida. “Desde logo achar que ele podia estar vivo se eu estivesse lá, como era previsto. Também podia ter acontecido aos dois. Colateralmente influenciou uma escolha profissional. Não fui trabalhar para a Polícia Judiciária, mas comecei uma relação com a PJ”, conta. Do inspetor principal do caso guarda admiração. Agradece aos inspetores “a dedicação, a humanização num serviço que diariamente se ocupa dos podres do ser humano”.

Feita a investigação, houve julgamento, mas não condenação. O suspeito de ter assassinado o pai continua em liberdade. “Faltaram provas. Justiça dos homens não foi feita. Justiça de Deus, espero que sim”, diz.

102

Em 2015, o relatório de Segurança Interna revela que houve em Portugal 102 homicídios voluntários consumados. Destes, a rede da APAV dá apoio a cerca de 20 a 25% dos casos.

Desde 2013, a RAFAVH já ajudou 391 pessoas, num total de 2887 atendimentos. Em 2016, houve quatro crianças com menos de 16 anos acompanhadas. A rede começou, no ano passado, a apoiar familiares e amigos de vítimas de homicídios no estrangeiro (29 utentes) e vítimas de terrorismo (três pessoas).

Ter o pai assassinado deixou marcas profundas. “Um homicídio é uma espécie de funeral sem corpo. Não fechas essa porta do passado, porque há um presente, uma investigação, um julgamento eventualmente. Vai para além do funeral. Da morte até. É uma ferida aberta.” Elsa diz que é algo vivo “todos os dias”. “Não ouves, não vês e não lês uma notícia sobre um homicídio da mesma maneira do que os outros. É uma experiência indescritível.”

Elsa só anos mais tarde procurou ajuda. Na época, ainda não existia a Rede de Apoio a Familiares e Amigos de Vítimas de Homicídios (RAFAVH), da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV). Bruno Brito é psicólogo clínico e coordenador desta rede que existe desde 2013 e conta com a colaboração da Polícia Judiciária. “Quando começámos a desenvolver este trabalho com a PJ, cada caso apresentava contornos mais particulares do que o anterior. Infelizmente, a realidade supera a ficção do que estamos habituados a ver nos filmes. Estamos a falar de situações que causam disrupções profundas, têm uma carga simbólica, de gestão do dia a dia complicada.”

"Quis ocupar-me até esquecer. Ao fim de três dias talvez, vomitei, como se fosse a dor, a raiva, a tristeza que deitasse fora. Senti-me fisicamente tão vazia como me sentia emocionalmente."

A rede apoia familiares e amigos de vítimas de homicídio na forma tentada e consumada e também vítimas de tentativas de homicídio. Bruno explica que o “apoio é gratuito, confidencial e de âmbito nacional” e inclui “apoio psicológico, jurídico e prático”. A rede tem protocolos de referenciação com a Polícia judiciária (PJ), Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) e Instituto de Medicina Legal. A PJ é a entidade que mais referencia (32%), mas a maioria das pessoas acompanhadas (61,3%) chega através da linha de apoio à vítima da APAV.

Os inspetores da PJ são como uma “tábua de salvação” das famílias

Quando há um homicídio, muitas vezes, as primeiras pessoas a contactarem com vítimas, familiares e amigos são os inspetores da Polícia Judiciária. Edite dias é coordenadora na Divisão de Investigação de Crimes de Homicídio da Diretoria do Norte da Polícia Judiciária. Casos como o de Elsa e do pai conhece muitos, infelizmente. “O contacto com as vítimas, familiares e amigos fica para sempre. É como se se agarrassem aos inspetores como uma tábua de salvação, muito mais quando o autor do homicídio não é conhecido. Além do trauma, o facto de não sabermos quem é o autor faz com que as pessoas recorram muito aos inspetores e telefonem constantemente. Querem ver resultados e o resultado é levar os autores à justiça”, afirma. O contacto com estas pessoas é constante e a experiência fá-la dizer que familiares e amigos “são vítimas”, as tais “vítimas ocultas”, como também são chamados.

"Cria-se uma relação entre o investigador e a vítima ou familiar. E a pessoa agarra-se e quer saber. E isto significa que o inspetor, além da investigação, tem de ter disponibilidade para apoiar e não tem, na realidade. Há pessoas a ligar constantemente."
Edite Dias, coordenadora na Divisão de Investigação de Crimes de Homicídio da Diretoria do Norte da Polícia Judiciária

Edite Dias explica: “Se temos uma vítima, um amigo ou familiar, aquela pessoa precisa de ajuda naquele momento. E nem sempre estamos disponíveis para dar ajuda, nem sempre estamos preparados para dar apoio psicológico, social e emocional… Nós também nos preocupamos com as vítimas e com os familiares. Recebemos telefonemas constantemente a perguntar coisas”. No local do crime, em contacto com familiares e amigos, o investigador informa que há a RAFAVH e pede autorização para que os seus dados sejam cedidos. Se sim, alguém da rede entra em contacto com a pessoa e o apoio começa.

Edite Dias admite que no meio de tantas coisas para fazer ao chegar ao local de um crime, por vezes, isso fica para trás. “Para os inspetores, é mais um papel que têm de preencher, é um ato mais na sua check-list. Estar a analisar o local do crime e o cadáver não é fácil, nem para um investigador com vinte anos de profissão”, justifica a coordenadora. Mas isso não quer dizer que não se valorize o trabalho da rede, pelo contrário garante.

Direitos das vítimas

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O art.º 67 – A do Código de Processo Penal estabelece que os familiares de pessoas mortas em consequência de crime são vítimas. E as vítimas têm direito a:

  • Informação fornecida sobre o processo-crime (saber como está o processo, ser informada de fuga ou saída em liberdade, por exemplo);
  • Direito a receber comprovativo de denúncia;
  • Direito à informação e proteção jurídica;
  • Direito a compensação pela participação no processo e ao reembolso de despesas;
  • Direito a uma indemnização por parte do autor ou do Estado, se o autor não tiver meios para o fazer;
  • Direito à proteção.

Mais informações em infovitimas.pt

A inspetora vê nele um apoio ao próprio inspetor. “Cria-se uma relação entre o investigador e a vítima ou familiar. E a pessoa agarra-se e quer saber. E isto significa que o inspetor, além da investigação, tem de ter disponibilidade para apoiar e não tem, na realidade. Há pessoas a ligar constantemente.”

Haver apoio da rede liberta para o trabalho de investigação. Mas a coordenadora vê outras vantagens: “Muitos destes amigos ou familiares são também intervenientes processuais. Se eu tenho uma testemunha estabilizada, com apoio psicológico e emocional, tenho alguém mais disponível para me ajudar na investigação”. Edite Dias recorda um caso em que isso aconteceu. “Numa altura andámos com uma família de quatro – mãe, mulher e filhos da vítima e fizemos para lá do que nos era exigido. Mas se não fosse a APAV com apoios sociais, dar comida, procurar alojamento seguro… Os filhos e a esposa da vítima eram também testemunhas, estavam presentes quando o senhor foi morto. Estavam cheios de medo.” A família colaborou na investigação e acabou por encontrar paz.

"Temos situações em que esta ajuda é o que permite à família recompor-se, porque muitas vezes a vítima era a pessoa responsável pelo sustento da família. É um processo burocrático, complexo e não é fácil. Ajudamos e tratamos com advogados"
Bruno Brito, coordenador da Rede de Apoio a Familiares e Amigos de Vítimas de Homicídio

Quando diz que os familiares e amigos de vítimas de homicídios acompanham os investigadores toda a vida, a inspetora Edite sabe bem do que fala e lembra alguns casos. “Em 2014, aparece na Diretoria do Norte, na secção de investigação, o pai de uma vítima de homicídio. O filho tinha morrido em 2004 e, dez anos depois, ele foi lá para falar com o inspetor, que entretanto já estava reformado. O senhor nunca tinha tido apoio e não tinha feito o luto. Em 2013, tivemos uma mãe de um homicídio de 2008, ainda não resolvido em 2013…”

Bruno Brito, coordenador da Rede de Apoio a Familiares e Amigos de Vítimas de Homicídio explica que, muitas vezes, os familiares chegam “no dia a seguir ao da ocorrência do crime o que obriga a dar apoio emocional do choque”. O psicólogo clínico conta que “são sessões pesadas, por mais que a pessoa chore não consegue consolar-se; é difícil encontrar tranquilidade interna para o que aconteceu”.

“Perdia-me na rua, dormia no trabalho”

Maria, nome fictício, ficou sem o filho, foi assassinado. Fala disso sem conseguir controlar o choro. “Estive numa situação em que me esquecia da rua, abandonei a minha casa, dormia no trabalho, perdia-me na rua, não conseguia orientar-me”, recorda. “A pior coisa deste mundo é perder um filho, principalmente da maneira como eu perdi o meu”. A relação com a Polícia Judiciária foi boa e agradece o apoio que sempre lhe deu: “Sempre me receberam, a mim e à minha família”. O caso foi a julgamento e sente que “foi feita justiça”. Mas a ferida fica, aberta.

Como Maria, Bruno afirma que muitas pessoas precisam de apoio diário. “O impacto que este crime provoca faz com que haja uma disrupção das rotinas do dia a dia. A pessoa vê-se perdida na rua, há medicação que deixa de fazer, deixa de pagar seguros e contas. Nos primeiros meses, tentamos saber quais as rotinas para poder ajudar a que a vida não se complique mais do que já foi.”

"Estive numa situação em que me esquecia da rua, abandonei a minha casa, dormia no trabalho, perdia-me na rua, não conseguia orientar-me"

Problemas familiares e conjugais não são incomuns em resultado de um homicídio. Quando um filho é assassinado, pai e mãe são apoiados individualmente e nem sempre conseguem dialogar sobre o que sentem ou o que se passou. “Acaba por haver incompreensão. A mulher diz-nos: “Não compreendo o meu marido. Ele foi trabalhar logo a seguir à morte do filho. Parece que não se importa.” E o marido diz-nos: “Tenho de ir trabalhar porque é a única coisa que posso fazer para o meu mundo não desabar”», explica o coordenador da RAFAVH.

A rede conta com apoio de psicólogos e é feito o levantamento das necessidades. A rede pode ajudar no planeamento das exéquias, a realizar a notificação de morte, acompanhar o reconhecimento do corpo ou apoiar o regresso à escola de familiares ou amigos de pessoas que foram assassinadas, etc.

Indemnização

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A Comissão de Protecção às Vítimas de Crimes é responsável por atribuir indemnizações a vítimas de crimes violentos. No ano passado, foram concluídos 29 processos por homicídio consumado e 33 por tentado. No total, foram atribuídas indemnizações em processos de crime violento a 44 vítimas, totalizando 606.564,41 euros.

Os familiares de vítimas de homicídio e as vítimas de tentativas de homicídio têm direito, sob certas condições, a indemnizações por parte do Estado. “Temos situações em que esta ajuda é o que permite à família recompor-se, porque muitas vezes a vítima era a pessoa responsável pelo sustento da família. É um processo burocrático, complexo e não é fácil. Ajudamos e tratamos com advogados.”

“Os familiares e amigos não se veem como vítimas de crime, porque a vítima foi assassinada”, admite Bruno Brito. O apoio da rede dura cerca de um ano a um ano e meio, habitualmente a duração do processo judicial. “Os familiares e amigos vão revivendo várias vezes tudo. Quando a sentença sai, o apoio começa a extinguir-se e a pessoa começa a conseguir virar a página“, explica.

Para o coordenador da RAFAVH, “é possível viver-se depois de um homicídio”. “Estamos aqui para ajudar a viver dentro do que é possível, não para esquecer o que aconteceu.” E recorda com um sorriso uma situação positiva: “Recebemos um postal de uma familiar de uma situação de homicídio. Foi apoiada e mandou-nos um postal a dizer que estava bem e a agradecer o apoio. Tinha encontrado tranquilidade, mas há marcas que nunca se apagam.”

É possível viver e não apenas sobreviver? Elsa admite que sim: “Voltas a sorrir, até a ser feliz, apesar da cicatriz”. Que está sempre lá, aberta.

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