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O Altântida esteve muitos anos ancorado no Arsenal do Alfeite
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O Altântida esteve muitos anos ancorado no Arsenal do Alfeite

Miguel A.Lopes/LUSA

O Altântida esteve muitos anos ancorado no Arsenal do Alfeite

Miguel A.Lopes/LUSA

Um nó a menos, um acordo com a Venezuela, um armador esclavagista, um futuro no Amazonas e a expedição no ártico. A vida do navio Atlântida

O patinho feio de Portugal que se transformou no cisne nórdico, escrevia a empresa que recuperou o Atlântida depois da compra a Mário Ferreira. O negócio está sob investigação.

No próximo dia 26 de julho, e durante 12 dias, terá início em Oslo uma expedição que vai dar a volta ao arquipélago de Svalbard, na Noruega. Um voo até Longyearbyen vai levar os turistas a embarcar no MS Spitsbergen, da Hurtigruten Expeditions.

Spitsbergen é a maior ilha desse arquipélago e saltou para as notícias quando o governo norueguês adquiriu uma propriedade em Longyearbyen, nessa mesma ilha, por mais de 33 milhões de euros, impedindo, assim, que esse pedaço de terra — 218 quilómetros quadrados — fosse comprado pelo multimilionário empresário imobiliário chinês Huang Nubo (que escreveu livros de poesia e que tentou, sem sucesso, também comprar um pedaço da Islândia). Esse episódio da compra do terreno pelo governo norueguês aconteceu em 2016, no mesmo ano em que o navio que viria a ter o nome de MS Spitsbergen passou a fazer parte da frota da Hurtigruten.

Ainda não tinha essa designação. Em 2016, entrava na frota da Hurtigruten como Atlântida.

“Em 2016, o antigo Atlântida foi transformado de um navio RoPax [uma embarcação de passageiros que permite a entrada e saída de carros] inacabado num navio de cruzeiro de expedição completo através da atualização completa, da quilha ao mastro, e da reconstrução de todas as áreas públicas”, conta ao Observador a empresa de expedições norueguesa, que explica que atualmente opera como MS Spitsbergen para a Hurtigruten Expeditions, para cruzeiros de expedição no Ártico e na África Ocidental, mas não só.

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Tem capacidade para 180 passageiros e perto de 100 metros de comprimento. Permite uma navegação a 14,5 nós. Navega hoje em águas frias na maior parte do ano.

O patinho feio que se tornou num cisne

Spitsbergen: “O patinho feio português que se tornou um cisne de gelo norueguês”. Assim era o título da comunicação da Knud E. Hansen, que desenhou a reconversão do navio “rejeitado por todos durante 10 anos e que agora ganha uma nova vida”, escrevia em 2016.

A nova vida foi nas mãos da Hurtigruten que, no relatório e contas de 2017, escreve que assinou a 30 de junho de 2016 um acordo com a Jiaye International Ship Lease Co. Limited para a venda e aluguer (sale and lease back) do navio MS Spitsbergen. O período de aluguer está ainda em vigor, até 30 de junho de 2028, já que foi feito por 12 anos. “O preço de venda acordado foi de 55 milhões de euros, reconhecido como um contrato de locação financeira nas demonstrações financeiras do grupo”, que “tem a obrigação de comprar a embarcação por um preço acordado de 11 milhões de euros no final do período de aluguer”.

A reconversão do navio foi feita nos estaleiros da Fosen Yard, na Noruega, o que valeu, aliás, um prémio aos seus arquitetos que desenharam o navio com a reformulação total dos dois decks para os carros. O convés número 3 passou a área de armazenamento e de cabines para a tripulação. O convés 4 passou a ser a zona de cabine dos passageiros (que também existem nos convés 6 e 7), com o deck 5 a ser de área de espaço público, havendo outras áreas comuns noutros convés.

  • O MS Spitsbergen, que serve expedições da Hurtigruten desde 2016
  • O observatório do navio
  • O interior das cabines de passageiros

Tudo começou com encomenda dos Açores

Outubro de 2005. O Governo Regional dos Açores, liderado por Carlos César, criava a Atlânticoline, presidida por Duarte Toste Pacheco. Empresa que ficaria habilitada a lançar dois concursos públicos internacionais para a construção de dois navios: um de 96,9 metros de comprimento, outro com 60 metros. Os preços bases, respetivamente, eram 32 milhões e 8 milhões.

O primeiro é o que aqui interessa. Um navio do tipo “Ro-Ro [roll in-roll out, para carros] Day Car & Passengers Ferry”, para operar no tráfego marítimo internacional, com a capacidade mínima para transportar 750 pessoas e 140 viaturas. Uma das condições era que navegasse a 18 nós de velocidade cruzeiro. Na abertura das propostas surgiram dois concorrentes: a Astilleros Barreras, cuja proposta, no valor de 34 milhões de euros foi excluída no ato público porque, consta de documentos do Tribunal de Contas, pela “sua apresentação não ter sido efetuada em conformidade com as exigências do programa do concurso”. Nesse concurso havia outro concorrente: os Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ainda públicos), que propunham um preço de 40 milhões de euros. Estes estaleiros do norte do país (ENVC) concorriam também ao outro navio, propondo um preço de 14,5 milhões.

Um concurso que caiu por terra, já que foi deliberado não adjudicar aos ENVC os contratos porque estavam 25% e 81% acima dos respetivos preços base. Mas os Estaleiros de Viana do Castelo não foram deixados para trás. É que o concurso caía, mas mais tarde seriam aprovados dois procedimentos por negociação direta, e sem publicação de anúncio, convidando a Atlânticoline uma única entidade a apresentar proposta. Os valores base mantiveram-se, mas a proposta chegaria com os montantes ligeiramente revistos: 39,95 milhões e 9,95 milhões de euros, para cada navio, respetivamente.

Fonte: Tribunal de Contas

Valores que acabaram por ser aceites. A 8 de setembro de 2006, a administração da empresa regional adjudicou ambos os contratos de construção naval aos ENVC, que teria de os construir em 565 dias. Ou seja, como a assinatura do contrato aconteceu a 21 de setembro de 2006, os navios teriam de chegar aos Açores a 9 de abril de 2008.

Fonte: Tribunal de Contas. Navio C. 258 é o Atlântida; Navio C. 259 é o Anticiclone

Houve nestes concursos outros intervenientes, que acabarão por ser importantes no avançar da história:

  • Atlânticoline, S.A. – dono da obra:
  • ENVC, S.A. – construtor;
  • SCMA – Sociedade de Consultores Marítimos, Lda. – projetista, consultadoria e fiscalização, a quem foi adjudicado diretamente por 322,9 mil euros o contrato para o fornecimento da documentação do projeto preliminar para a construção de quatro navios. Com essa mesma empresa foram contratados serviços de consultadoria no âmbito da construção dos dois navios por 2.800 euros. E, ainda, por 3.000 euros, foram contratados serviços de assistência técnica relativamente à construção dos dois navios pela ENVC e a navios em regime de afretamento.
  • Fundo de Maneio, Lda. – estudo de viabilidade económica e financeira, com um custo de 17.500 euros, e preparação da candidatura a fundos comunitários, com um preço de 22.500 euros;
  • Sérvulo & Associados – Sociedade de Advogados, RL – assessoria jurídica e processo de conciliação, cujo contrato ascendia a 40.794,70 euros.

Ainda foi requisitado um engenheiro naval à Apto para a assessoria técnica e acompanhamento e fiscalização da construção dos dois navios em 2007, com um vencimento mensal de 2.200 euros (mais ajudas de custo).

A SCMA contratou, por sua vez, uma empresa russa, a PCB Petrobalt, para a realização dos testes de tanque aos navios e dos projetos. Mais tarde, Duarte Ponte, ex-secretário de Estado regional da Economia, no Parlamento açoriano, viria a atacar a participação desta empresa russa, tendo referido que a decisão de contratar a PCB Petrobalt teria sido dos ENVC. “O facto é que eles se queixavam amargamente da Petrobalt. Este projeto teve o desfecho que teve basicamente pela dificuldade de os ENVC ter ao seu lado uma equipa projetista capaz”, disse, segundo notícia do jornal i, citando a Lusa. O Público cita o mesmo responsável dizendo que “eles (ENVC) escolheram o projetista mais barato em 900 mil euros, e o mais barato sai caro”.

Mas já sairia mais caro, mesmo ainda sem se saber o desfecho do processo. O contrato até setembro de 2008 sofreu quatro aditamentos, num custo adicional de 6,5 milhões de euros, mais 16,3% face ao valor da adjudicação. O bolo já ia nos 46,45 milhões de euros.

Fonte: Tribunal de Contas

Com os aditamentos houve outra alteração relevante. A data de entrega dos navios passava a ser 30 de setembro de 2008. O atraso acarretaria penalizações para os ENVC.

O navio não foi entregue nesse prazo. E no ano seguinte, testes náuticos foram a razão para o Governo regional do Açores devolver a embarcação.

Uma milha náutica que fez toda a diferença

“Eles sabiam desde o início que a velocidade era fundamental. Estava definido com o presidente dos ENVC, não se podia brincar com a velocidade”, afirmou Duarte Ponte, na mesma audição parlamentar, dizendo que até propôs sacrificar a estética em prol da velocidade. As declarações foram feitas em 2014, anos depois do Governo regional ter posto fim ao contrato com os Estaleiros.

Os testes decorreram em 2009, tendo os ENVC assumido a 9 de abril desse ano que “conforme resultou das provas de mar, o navio tal qual se encontra não atingirá a velocidade mínima de 18 kts [nós] a 85% da potência”, insistindo, então, na necessidade de introduzir alterações ao navio. Mas foi a gota de água para a Atlânticoline, que nesse mesmo dia informa os Estaleiros que “pelo incumprimento (…) o conselho de administração da Atlânticoline deliberou resolver o contrato de fornecimento do navio C258 [Atlântida]”. Os testes apontavam para 17,40 nós a 100% da potência e de 16,72 nós a 90% da potência.

Nesse mesmo dia, Vasco Cordeiro — que assumiria anos mais tarde a presidência do Governo regional, mas que à data era secretário regional da Economia — convocava uma conferência de imprensa para anunciar: “devem ser desencadeados todos os mecanismos legais e contratuais para o ressarcimento de todos os prejuízos derivados das vicissitudes do processo de construção do Atlântida”. Nessa conferência garantia que, como estava agendado para 13 de maio o início da operação de transporte marítimo de passageiros e viaturas entre as ilhas açorianas, a Atlânticoline estava a tomar “todas as medidas adequadas” com vista ao fretamento de navios. Até ao momento tinham sido pagos 32 milhões de euros, que teriam de ser devolvidos, acrescido das respetivas indemnizações pelo atraso. Contabilizava-se, então, em 40 milhões o pagamento aos Açores — tendo a Empordef recebido um empréstimo da CGD de 37 milhões em dezembro de 2009 para dotar a ENVC de dinheiro para a indemnização — que deixariam de ser pagos em 2011, o que levou o caso aos tribunais e a uma penhora do navio em agosto de 2013. “Um dos passos que o nosso gabinete jurídico entendeu por bem dar”, declarou, à data, Carlos Reis (presidente nesse ano da Atlânticoline), para que conseguisse receber os valores em dívida. Faltava pagar a última tranche do acordo de rescisão do navio, de 8,4 milhões de euros.

Esse empréstimo da Empordef acabaria por ser considerado pela Comissão Europeia como uma ação que ” proporcionou à ENVC uma vantagem indevida”. Os Estaleiros já começavam a ter problemas financeiros e em 2015 Bruxelas considerou que os ENVC tinham recebido 290 milhões de euros em violação às regras de auxílios estatais.

Os Açores ficaram sem o Atlântida. Uma rescisão que o Público contabilizou em 70 milhões de euros o custo para o Estado. E os ENVC ainda teriam de resolver a situação.

Hugo Chavez visitou Portugal em outubro de 2010

José Coelho/EPA

Um quase acordo com a Venezuela

Outubro de 2010. Hugo Chavez marcou uma visita a Portugal. José Sócrates era primeiro-ministro. Uma das visitas era a Viana do Castelo e aos Estaleiros Navais. Em maio desse ano, José Sócrates visitara a Venezuela e já levava um contrato acertado para os estaleiros nacionais. Sete anos de negociação resultariam, nessa altura, num contrato para a construção de dois navios de transporte de asfalto para a Petróleos da Venezuela, num valor de 130 milhões de euros.

Em outubro, Hugo Chavez marca presença nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, que tinham um barco para mostrar ao então presidente venezuelano — o Atlântida. As notícias da época falavam de uma possibilidade de compra deste navio “encalhado” à Venezuela por 35 milhões de euros. (Nessa visita a Portugal ficou também acordada o fornecimento à Venezuela de 1,5 milhões de computadores Magalhães e seria recuperado o compromisso de construção pelo Grupo Lena de 2.500 casas na Venezuela).

Como Sócrates ajudou o Grupo Lena a conquistar a Venezuela

“Tremendo ferry, compadre, que vem para cá”. Terão sido palavras de Hugo Chávez num dos programas que promovia para se dirigir aos venezuelanos, onde informava do acordo para a compra do ferry que pretendia pôr a fazer a rota entre o porto de La Guaira e as ilhas de Orchila, Los Roques e Margarita. “Eu quero meter todos esses meninos pobres de La Guaira, as famílias mais pobres, no tremendo ferry, a classe média também. São 800 pessoas. Aí está um modelo do ferry que já pronto está a partir de Portugal, (será) uma linha de ferry, turismo popular, turismo venezuelano”, terá dito, segundo o DN.

Nessa altura já tinha visitado o Atlântida e o preço a que a Venezuela iria comprar já tinha passado de 35 milhões de euros para 42,5 milhões de euros.

Um ano depois… a Venezuela confirmava ter desistido da compra. José Sócrates já tinha deixado o Governo e a troika estava já instalada em Portugal. O Atlântida continuava ancorado no Arsenal do Alfeite. Já estava em funções o Governo PSD/CDS, com Pedro Passos Coelho ao leme. A privatização dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo passou a estar na agenda.

Passos Coelho privatiza os Estaleiros Navais e visita Viana do Castelo em 2015

ARMÉNIO BELO/LUSA

Uns estaleiros para novos donos

“Atendendo à urgência imperiosa decorrente da necessidade de viabilização económico-financeira da ENVC e do cumprimento dos compromissos assumidos, o Governo, com o presente diploma, pretende aprovar o processo de reprivatização do capital social da ENVC, cujo modelo integra a realização de uma venda direta pela Empordef a um investidor que venha a tornar-se acionista de referência, nacional ou estrangeiro, com perspetiva de investimento estável e de longo prazo, reservando-se contudo um lote de ações representativas do capital social da ENVC, S. A., para disponibilização aos trabalhadores”. O Governo de Passos Coelho dava o pontapé de saída na reprivatização dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo em agosto de 2012.

Estabelecia como critérios de seleção:

  • A percentagem das ações representativas do capital social da ENVC, privilegiando-se a alienação integral;
  • O preço indicativo apresentado para a aquisição das ações;
  • A apresentação de um adequado projeto estratégico para a ENVC, com vista ao desenvolvimento das suas atividades nos mercados nacional e internacional, que maximize a manutenção dos atuais recursos humanos da ENVC, bem como a promoção da concorrência e competitividade do setor da construção e reparação naval e de atividades económicas conexas ou relacionadas, e o desenvolvimento da economia nacional;
  • A contribuição para a sustentabilidade económico-financeira da ENVC;
  • A ausência ou mitigação de condicionantes jurídicas, laborais ou económico-financeiras do interessado para a concretização da venda direta de referência em prazo, condições de pagamento e demais termos que sejam adequados para a salvaguarda dos interesses patrimoniais do Estado ou para o funcionamento e desenvolvimento do sector naval nacional;
  • A respetiva idoneidade, capacidade financeira, técnica e de execução, assim como as garantias eventualmente prestadas para cumprimento dos critérios estabelecidos.

De 70 investidores potenciais identificados, apenas três acabariam por apresentar proposta vinculativa, mas apenas dois foram considerados elegíveis: Rio Nave Serviços Navais do Brasil e JSC River Sea Industrial Trading da Rússia, ficando depois só a JSC, cuja proposta acabou rejeitada, alegando-se que os compromissos eram excessivos e insuscetíveis de serem assumidos pelo Estado.

Com uma situação financeira debilitada — em 2013 tinha acumulado prejuízos de mais de 264 milhões — e sem venda possível, o Governo português decidiu liquidar a ENVC, instruindo a administração para vender os ativos, autorizando a ENVC a subconcessionar a terceiros, “parte ou a totalidade da área concessionada e da área afeta à concessão que lhe foram atribuídas até 2031, salvaguardando a área atualmente subconcessionada à Enerconpor”.

No âmbito desse concurso, foi admitida a proposta apresentada pelo agrupamento composto pelas empresas Martifer e Navalria (estaleiros em Aveiro que já pertenciam à Martifer). Segundo comunicado pela empresa dos irmãos Martins em 2013, “a subconcessão terá o valor de 415 mil euros anuais, vigorará até 2031 e o seu objeto constitui, única e exclusivamente, a utilização das áreas de terreno que integram a concessão dominial concessionada aos ENVC, dos edifícios, infraestruturas e alguns equipamentos afetos à concessão dos ENVC”. E prometia “desenvolver a sua atividade no mercado nacional e internacional e implementar, nas áreas afetas à aludida subconcessão dos ENVC, um projeto de construção e reparação naval, no âmbito do qual se prevê a criação de cerca de 400 novos postos de trabalho ao longo dos próximos três anos”. Criou uma nova sociedade para este negócio — a West Sea – Estaleiros Navais, que hoje detém os ENVC.

O primeiro contrato assinado pela West Sea, em 2014, foi a construção do navio-hotel Viking Osfrid com capacidade para 106 passageiros. Mário Ferreira era o primeiro cliente da West Seat e levava o barco para o Rio Douro em 2016, ano em que inaugurou o 11.º navio-hotel da Douro Azul, contando com a presença da  então ministra do Mar, Ana Paula Vitorino. Isto depois de um investimento de 12 milhões de euros.

Mário Ferreira continuou a encomendar à West Sea e a empresa da Martifer continuava a aumentar os números. Hoje diz que já construiu 17 navios (10 navios cruzeiro de rio, dois navios militares, três navios polares de expedição, uma draga e uma porta de doca), operou duas conversões e reparou 265 navios. Em 2021, tinha 359 trabalhadores e obteve proveitos operacionais de 91,7 milhões de euros. Esta subconcessão à West Sea foi investigada pelo Ministério Público, merecendo, no final, um despacho de arquivamento, mas foi deste processo que foi extraído uma outra investigação — a da venda do Atlântida.

Um concurso para vender o Atlântida

O desenvolvimento da West Sea decorria quando, a 11 de março de 2014, os Estaleiros Navais de Viana do Castelo, em insolvência, colocavam à venda o Atlântida que, em 2012, tinha sido contabilizado pela empresa como tendo um valor de 29 milhões de euros.

Apareceram no concurso três investidores: a Mystic Cruises, de Mário Ferreira, o consórcio das holandesas MD Roelofs Beheer e da Chevalier Floatels e os gregos da Thesarco Shipping. Os holandeses apresentaram a proposta mais baixa — 4 milhões de euros. Mário Ferreira a segunda mais baixa — 8,75 milhões e o armador grego apareceu com 12,8 milhões de euros.

A venda aos gregos daria à empresa pública apenas 4,8 milhões, já que por essa altura, em 2014, ainda faltava pagar oito milhões de euros à Atlânticoline. A 3 de julho foi escolhida a proposta deste armador, a quem foram dados 15 dias para a assinatura do contrato. Noticiou-se, logo, que em caso de incumprimento do prazo haveria a possibilidade de adjudicação ao segundo classificado. E foi isso que acabou por acontecer.

Filomena Bacelar, inspetora das Finanças, ouvida na Polícia Judiciária em 2015, no âmbito do processo (arquivado) de investigação à subconcessão dos ENVC à West Sea, declarou estranhar o desaparecimento da empresa vencedora, a Thesarco Shipping, segundo noticiou o Correio da Manhã. Acrescentando que essa responsável disse ainda que não tinha sido estabelecido um preço mínimo de venda do Atlântida, mas o critério de adjudicação estipulava o preço mais alto. Ainda assim, disse, não existia obrigatoriedade para se proceder a uma adjudicação ao segundo classificado.

O Atlântida quase foi parar às mãos da Thesarco Shipping que acabou associada a uma lista de más práticas legais, laborais, ambientais.

O empresário Evangelos Saravanos esteve envolvido numa série de casos de abandono de tripulações, detenções e até  afundamento de um navio em vários locais do mundo, segundo contou, em 2014, o Jornal de Negócios, citando como um dos casos mais polémicos o que aconteceu no porto grego de Pireu em agosto de 2009 com o seu navio Aetea Sierra. A tripulação do Aetea Sierra terá estado oito meses a bordo sem salários, sem comida e sem água, no que apelidavam de uma “prisão flutuante”.

Um barco que chegou a custar 50 milhões e que acabou vendido por 8,75 milhões

Com o armador grego a deixar passar o prazo para entregar os 12,8 milhões de euros propostos, os ENVC acabaram por entregar o navio ao candidato que ofereceu o segundo valor mais elevado — a Mystic Cruises que propôs a compra por 8,75 milhões de euros, menos 4,05 milhões do que os 12,8 milhões do armador grego.

Mário Ferreira ficou com o Atlântida depois de um armador grego ter desaparecido

Miguel A.Lopes/LUSA

A 19 setembro de 2014 ficava assim firmado que o Grupo Douro Azul, de Mário Ferreira, iria adquirir a embarcação por 8,75 milhões, o que, segundo a Lusa, foi feito através de capitais próprios, tendo, então, como objetivo transformá-lo num navio hotel para cruzeiros no rio Amazonas (em 2016). O contrato foi assinado no Arsenal do Alfeite.

“Foi um crime cometido contra o erário público, já que o navio, novo, foi vendido a preço de saldo. Espero que, apesar da venda da embarcação, se apurem as responsabilidades. A administração dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC) e o Governo sabem quem são as pessoas que têm responsabilidades neste caso. Haja coragem para resolver o problema”, declarou, em julho de 2014, Branco Viana, coordenador da União de Sindicatos de Viana do Castelo, à Lusa.

Navio Atlântida vendido a preço de saldo

E logo Mário Ferreira anunciou que iria investir na remodelação da embarcação para que fosse transformado num navio de cruzeiro com 105 metros de comprimento e capacidade para 156 passageiros e 100 tripulantes, noticiou o Jornal i. As obras que se estimava demorarem cerca de um ano e seriam realizadas nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo.

Assim, em outubro de 2015 já deveria estar a rumar ao Brasil para cruzeiros no rio Amazonas.

Rejeitado pelo Governo dos Açores o Atlântida irá para a Amazónia

Um projeto que não durou muito. Em dezembro de 2014, a Douro Azul anuncia, em comunicado, que afinal não vai transformar o Atlântida em cruzeiro no Amazonas. “O Grupo Douro Azul desenvolveu, nos últimos três meses, uma análise profunda às condições de operação do navio Atlântida e decidiu dar um novo rumo à embarcação perante as inúmeras solicitações de que foi alvo por parte de operadores internacionais”, explicou a empresa, citada, na altura, pelo Jornal de Negócios. 

As inúmeras solicitações acabariam por resultar na venda do navio a uma empresa holandesa. E aqui chega o caso que está sob investigação pelo Ministério Público. Segundo o Correio da Manhã, Mário Ferreira terá vendido a embarcação a uma outra sociedade que lhe pertencia, com sede em Malta, e que em 2015 acabou vendido a uma sociedade norueguesa por 17 milhões de euros.

Empresa Douro Azul de Mário Ferreira alvo de buscas. Empresário pede para ser constituído arguido

Essas transações terão levado às buscas que aconteceram esta semana, para investigar indícios de fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais no negócio da compra e venda do navio Altântida.

Suspeitas na venda do Atlântida trazem barco de volta

As buscas aconteceram depois de em tribunal o ex-presidente da Empordef e líder da comissão liquidatária dos ENVC ter dito que houve “alta corrupção” na venda do navio Atlântida à empresa Douro Azul, que entretanto, em 2019, procedeu à cisão de parte do seu património para integrar na Mystic Invest SGPS, ano em que a Mystic Invest passou a designar-se Pluris Investments SGPS, a tal empresa que esta semana recebeu um apoio de 40 milhões de euros, de um total de 70 milhões, do fundo de capitalização do PRR, atribuído pelo Banco de Fomento.

Pluris de Mário Ferreira, dono da TVI, recebe a maior ajuda do fundo de capitalização do Banco de Fomento por causa da Covid

Voltando à declaração em tribunal do ex-presidente da Empordef, João Pedro Martins ainda afirmou: “Houve alta corrupção que envolveu políticos em funções, o conselho de administração dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, o júri do concurso, o BES e o comprador”, ouvido como testemunha arrolada pela defesa da ex-diplomata Ana Gomes, no julgamento em que a antiga eurodeputada responde por difamação de Mário Ferreira. A ex-eurodeputada tem atacado o negócio feito entre o ENVC e Mário Ferreira, qualificando-o como “vigarice” e até atacou António Costa por ter estado a 7 de abril de 2019 no batismo do MS World Explorer, paquete construído nos ENVC para a Mystic Invest.

A venda do Atlântida a Mário Ferreira está a ser investigada, tendo o Correio da Manhã escrito que há dois inquéritos abertos: um a ver se existiu gestão danosa nessa venda por parte dos ENVC e outro por alegada fraude fiscal. Mário Ferreira pediu para ser constituído arguido no processo intitulado pelo DCIAP no “caso ferry”.

Mário Ferreira pede para ser arguido. A carta que escreveu ao Ministério Público

Mário Ferreira já disse que nunca foi ouvido mas, à SIC Notícias, disse esta sexta-feira que foram imputados custos fictícios ao Altântida na altura da construção ainda a pensar na rota dos Açores. “Aquele navio, se fosse eu, teria construído por 30-35 milhões”, declarou o empresário ligado ao Douro. Recusado pelos Açores, a venda a Mário Ferreira acontece muitos anos depois: “o navio estava abandonado no Alfeite”. Puxando os galões de 30 anos a trabalhar com embarcações — “por mérito próprio aprendi e percebo alguma coisa de navios” — Mário Ferreira disse à SIC Notícias que o navio, ao fim de cinco anos, tinha “dezenas de toneladas de marisco agarrado a todo o navio, ferrugem por todo o lado, os sistemas desligados, não estava operacional. Quando alguém ia visitar ficava extremamente desagrado com o que via”. E atira para a gestão dos ENVC: “a gestão pública deste processo foi um desastre. Eles sim deviam estar todos a ser investigados”.

Mário Ferreira: “Somos um grupo idóneo e não brincamos com os números como vocês insinuam”

Mas a investigação recai sobre a venda que Mário Ferreira fez. A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) suspeita que o empresário Mário Ferreira vendeu o ferry a uma empresa norueguesa através de Malta para declarar menos lucros em Portugal, reduzindo a fatura fiscal em sede de IRC, segundo o Público. E que o Correio da Manhã quantificou em 1,15 milhões de euros. Mas à SIC Notícias disse que só o vendeu depois de um investimento de vários milhões para certificar o barco e alterações necessárias para o conseguir vender. Quantificou esse investimento em mais de 2 milhões, sugerindo que a mais-valia foi cerca de 5 milhões.

Malta é o maior centro de registo de navios do mundo, justificou Mário Ferreira o facto de ter passado por essa jurisdição para a venda da embarcação aos noruegueses, nas mãos dos quais conseguiu finalmente levantar âncora e navegar.

Em novembro, o agora MS Spitsbergen levanta âncora de Hamburgo e chegará no 11.º dia de navegação ao Porto para no dia seguinte passar por Lisboa. Com nova roupagem, com novo nome, com novo dono, o Atlântida voltará à terra que o construiu.

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