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Manuel Moura / Lusa

Manuel Moura / Lusa

Um percurso "Doce" e "bem bom": as histórias e os bastidores da girl band que parava o país

Vestiam-se para os concertos em casas paroquiais ou na casa do "presidente da junta". Conquistaram Portugal e tentaram o mundo. Viajámos até aos anos 80, aos bastidores da girl band que abanou o país.

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Foram a primeira grande girl band portuguesa e um dos maiores fenómenos da pop nacional nos anos 80. Para se prepararem para os concertos, ainda sem camarins à disposição, vestiam-se na “casa paroquial” das terras, em casa do comissário das festas, até num convento de freiras — e tinham de ser acompanhadas por “tropa, GNR ou PSP”, porque a histeria era tal que as pessoas lhes tentavam “arrancar a roupa e os cabelos” antes de entrarem em palco.

Mais de 40 anos passados desde que as Doce começaram a abanar o país, um novo filme chegará aos cinemas na próxima quinta-feira. Será um biopic, um filme que recorre à ficção para contar histórias reais (como já se vira com o recente Variações) que tem realização de Patrícia Sequeira e Bárbara Branco, Lia Carvalho, Carolina Carvalho e Ana Marta Ferreira no elenco, a interpretarem as quatro Doce — respetivamente Fátima Padinha, Teresa Miguel, Lena Coelho e Laura Diogo.

Aproveitando que a chegada do filme às salas de cinema nacionais está para breve — agendada para a próxima quinta-feira, 8 de julho, acompanhada do lançamento da banda sonora, com as canções regravadas pelo elenco —, fomos ouvir histórias dos bastidores do grupo pop feminino, na voz de Fátima Padinha, que integrou as Doce, e de Tozé Brito, um dos mentores da girl band, um dos responsáveis pelo “conceito Doce” e um dos compositores que mais trabalhou na criação das canções que as Doce haveriam de tornar êxitos nacionais.

“1 da manhã, ei!” Uma banda com dois embriões: de um lado os Gemini, do outro as Cocktail

Se as Doce fossem uma filha, os Gemini eram o pai e as Cocktail a tia. É ao trajeto destes dois grupos portugueses que é preciso recuar para encontrar o rasto original de uma girl band que, na viragem dos anos 70 para os anos 80 e sobretudo anos 80 fora, abanou Portugal, fez embasbacar homens e mulheres, cativou adolescentes e deixou trintões e quarentões rendidos.

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Comecemos pelo primeiro progenitor, aquele que tem uma relação direta mais forte com o nascimento das Doce. Em 1976, nascia uma banda chamada Gemini das cinzas dos extintos Green Windows — um grupo de que fizeram parte membros do Quareto 1111, como, entre outros, José Cid, Tozé Brito e o escocês Mike Sergeant (que teve uma passagem mais breve pelo “quarteto”, entre 1974 e 1975).

"Disse-lhes: meus caros, fazemos este verão porque temos espectáculos marcados, temos estrada até outubro, mas em outubro quero saltar fora do grupo. Para mim, os Gemini acabam. Profissionalmente quero fazer outras coisas, tenho outros desafios, outras ideias, outros métodos."
ToZé Brito

Os Gemini começaram em 1976 com Tozé Brito, Mike Sergeant, Isabel Ferrão e Teresa Miguel. Só neste quarteto de inicial estão dois compositores e músicos que escreveriam canções para as Doce — Tozé Brito e Mike Sergeant — e ainda Teresa Miguel, que seria uma das quatro integrantes da futura girl band. Mas à formação inicial juntar-se-iam outros dois elementos, Jorge Hipólito, antigo técnico de som dos Green Windows, e Fátima Padinha, que também passara pelo grupo anterior e que se juntaria mais tarde às Doce.

Em quatro anos, os Gemini tornaram-se um dos grupos sensação da canção pop portuguesa. Logo em 1976 foi lançado um single chamado “Pensando em Ti”. No ano seguinte, 1977, dá-se a primeira participação da banda no Festival da Canção — à época um “certame” (que é palavra caída em desuso) que fazia e desfazia carreiras — e é editado um LP de dez cantigas.

O grande ano dos Gemini foi, no entanto, 1978, quando a banda defende quatro canções no Festival da Canção e acaba por vencer o concurso com “Dai Li Dou”. Apesar do insucesso na Eurovisão, onde só conseguiram cinco votos, os Gemini estavam  instituídos em Portugal. Não tendo a dimensão que viriam a ter as Doce, ainda lançaram nesse 1978 um LP.

A Fá no tempo dos Gemini, com a Teresa Miguel, Tozé Brito e Mike Sargeant. O galardão da canção vencedora no festival da…

Posted by DOCE – Fan Club on Wednesday, January 15, 2020

Fátima Padinha, que passou pelos Green Windows e pelos Gemini e que depois viria a integrar as Doce, recorda ao Observador como funcionava o grupo antecessor da girl band: “Os Gemini eram um grupo profissional, no sentido em que se ganhava dinheiro com os espectáculos. Mas era um grupo de amigos, uma coisa muito caseira. Tínhamos uma vivência light. Não tínhamos espectáculos sobre espectáculos, não havia aquela correria que havia nas Doce, era uma coisa mais atempada e com calma, percebe?”.

Chegado a 1979, o grupo estava numa encruzilhada: e agora? Tem a palavra Tozé Brito, membro dos Gemini que por essa altura preparava-se para se tornar AR — uma espécie de executivo e olheiro de novos talentos — da divisão portuguesa da editora Polygram, hoje Universal Music, que por sua vez projetaria as Doce: “Pareceu-me que tínhamos atingido todos os objetivos que queríamos atingir, que não havia mais nada importante a fazer. Já tínhamos discos de ouro e platina, já tínhamos ido representar Portugal à Eurovisão. Foram três anos cheios, mas ao fim de três anos olhei para a frente e já não era aquilo que me apetecia fazer”.

No segundo trimestre de 1979, “aí em abril ou maio”, Tozé Brito chamou Mike Sergeant, Fátima Padinha e Teresa Miguel para lhes comunicar a decisão de pôr um ponto final aos Gemini. “Disse-lhes: meus caros, fazemos este verão porque temos espectáculos marcados, temos estrada até outubro, mas em outubro quero saltar fora do grupo. Para mim, os Gemini acabam. Profissionalmente quero fazer outras coisas, tenho outros desafios, outras ideias, outros métodos”.

Tozé Brito: “Queria ter escrito uma canção para a Amália”

A notícia não caiu com leveza: “De repente criou-se ali uma dúvida”, conta Tozé Brito, acrescentando: “Quando disse que saía, o Mike também pensou em sair — ia fazer a sua vida como produtor, como arranjador. Mas a Fá [Fátima Padinha] e a Teresa Miguel perguntavam-se o que se poderia fazer a seguir. Os Gemini eram, profissionalmente falando, a vida de todos. Isso era uma questão à qual era sensível”.

Se seria “um pouco difícil o grupo manter-se” com a sua saída, Tozé Brito lembra que Fátima Padinha e Teresa Miguel “ficaram, coitadas, de certo modo penduradas” com o fim que impôs aos Gemini. E o músico conta agora que na altura começou a pensar “enfim, como é que vamos dar a volta a isto”. Foi então que se começou a pensar numa hipótese: e se se tentasse uma coisa “que nunca tinha sido tentada em Portugal”, um quarteto só com mulheres, uma girl band da pop?

Quando se fala em girl band, o melhor é chamar à discussão outro “embrião”, como Tozé Brito o descreve: as Cocktail, que se tinham formado dois anos antes do fim dos Gemini (em 1977) como grupo vocal feminino de três elementos por onde passariam, entre outras, Fernanda de Sousa — mais tarde conhecida como Ágata — e também Lena Coelho, cantando temas compostos por Tozé Brito, Pedro Brito (irmão de Tozé) e Mike Sergeant, por exemplo.

A formação original das Cocktail aguentou-se pouco tempo, recorda agora Tozé Brito: “Eram apenas três e tinham problemas complicados entre elas, em termos de personalidade chocavam muito”. Ainda gravaram temas como “O Que passou passou”, “S.O.S. Igual A Sós”, “Aquele Fim De Verão”, “Nem 8 Nem 80”, “Vem Esquecer o Passado” e “Porta Fechada”, por exemplo, mas “nunca tiveram o arrojo que as Doce tiveram, nem nada que se parecesse”. Foram, ainda assim, um “embrião”, por serem uma girl band e por ali ter passado um elemento que viria a estar no núcleo duro das Doce, Lena Coelho.

“2 da manhã, ei!” Dos Gemini sobravam duas. E agora?

Já tinham existido os Gemini. Parte do país, ainda que relativamente pequena, já tinha ficado a conhecer uma girl band portuguesa, as Cocktail. Mas não existia nada com a dimensão e a popularidade que teriam as Doce. Era, portanto, altura de criar o projeto. “A ideia foi: vamos fazer um grupo com quatro mulheres”, recorda Tozé Brito.

Passados 40 anos é difícil patentear a ideia, mas Fátima Padinha recorda ao Observador “um cocktail de despedida” organizado para assinalar o fim dos Gemini. Nesse cocktail, “estavam a Lena Coelho, a Teresa Miguel e o [jornalista] Duarte Ramos, que tinha uma revista que era a ‘Música e Som’. Ele reparou: olha, elas as três ficavam bem, ficam bem juntas, têm piada. Ele teve essa ideia. Já mais tarde, no escritório da Polygram, há uma conversa com o Tozé Brito em que isso se começou a pensar mais a fundo e em que ele diz: ‘era giro fazermos um grupo só de raparigas, que tivesse uma imagem arrojada’.”

"Tínhamos três pessoas muito fortes na parte vocal, a Teresa, a Fá e a Lena —  a Laura nem tanto, temos de ser sinceros e honestos, mas também o que se lhe pedia não era isso. Sendo afinada, não tinha o poder vocal das outras três. O que se lhe pedia era que tivesse outras valências. Provou que as tinha, até em termos de ser quase a manager do grupo, a pessoa que administrava os contratos e a parte financeira das Doce"
ToZé Brito

Dois elementos das futuras Doce seriam sempre incontornáveis, Fátima Padinha e Teresa Miguel, porque tinham cantado juntas algum tempo nos Gemini. Tozé Brito e Mike Sergeant, também eles ex-Gemini, dispunham-se a ficar na retaguarda, não fazendo parte de um novo grupo mas escrevendo canções para essa formação nova. Era preciso recrutar mais duas mulheres para se juntarem a Teresa e a “Fá” — e Lena Coelho foi escolha consensual.

“A Lena Coelho cantava muitíssimo bem, sempre cantou. Acrescentava muito em termos vocais e também visuais. Encaixava no que procurávamos”, explica hoje Tozé Brito. Acresce que, recorda Fátima Padinha, Lena já fizera uns espectáculos com os Gemini, substituindo Teresa Miguel naquele verão anterior de 1979: “Já nos conhecíamos todas”.

Lena Coelho e ToZé Brito em 1979.

Posted by DOCE – Fan Club on Friday, July 10, 2020

De repente já existiam três Doce, que além de cantarem bem eram fisicamente vistosas, assentando como uma luva nos padrões de beleza da época — algo que era considerado fundamental para uma girl band da pop que queria singrar no mainstream, que almejava a derreter corações e deslumbrar multidões.

“Já tínhamos uma morena não muito escura, a Fá, e uma ruiva natural [Teresa Miguel]. Fomos buscar a Lena que era morena, morena daquelas carregadas”, lembra Tozé Brito, acrescentando: “Visualmente já só precisávamos de uma loira para completar o que tínhamos imaginado em termos visuais”. A escolha recaiu na modelo Laura Diogo, que não tinha “qualquer experiência” como cantora e que naquele ano de 1979 tinha sido eleita Miss Fotogenia no concurso Miss Portugal.

Passados 42 anos, Tozé Brito explica a escolha: “Concebemos para o grupo uma determinada estética, um determinado visual. Fomos à procura de uma pessoa que tivesse as características físicas que tínhamos pensado. Tínhamos três pessoas muito fortes na parte vocal, a Teresa, a Fá e a Lena —  a Laura nem tanto, temos de ser sinceros e honestos, mas também o que se lhe pedia não era isso. Sendo afinada, não tinha o poder vocal das outras três. O que se lhe pedia era que tivesse outras valências. Provou que as tinha, até em termos de ser quase a manager do grupo, a pessoa que administrava os contratos e a parte financeira das Doce”.

ToZé Brito, Lena Coelho, José Carlos, Laura Diogo e Paulo Matos, 1982.

Posted by DOCE – Fan Club on Tuesday, July 14, 2020

“3 da manhã, ei!” A imagem das Doce e José Carlos, “o quinto elemento”

Nada no conceito Doce foi pensado ao caso — incluindo a forma como as quatro se apresentavam ao país, na televisão ou em concertos. E para a estética visual, que ia dos penteados exibidos à roupa que vestiam, muito contribuiu um interveniente cujo nome ficou algo esquecido pelo tempo: o estilista José Carlos. “Foi o costureiro e designer que as acompanhou, que concebeu toda a parte visual delas. Esse homem teve um papel fundamental”, recorda Tozé Brito.

Como é que este homem entrou na “equipa” que trabalhava com as Doce e apoiava o grupo? O segredo está no nome Laura Diogo: antes de entrar nas Doce, Laura já trabalhava com José Carlos, tendo recorrido ao estilista para decidir os penteados que levaria e a maquilhagem que usaria no concurso de Miss Portugal — e posteriormente, quando foi representar Portugal ao Japão como modelo.

Tozé Brito corrobora esta versão da história. “Quando trazemos a Laura, é ela que nos pergunta se queremos trabalhar com o José Carlos”, conta. “Depois de o conhecermos, gostámos das ideias dele, dos croquis e desenhos que fez para os primeiros fatos. A partir daí a equipa estava formada”, acrescenta o músico.

Laura Diogo e José Carlos em 1979.(Cortesia: Página Oficial de José Carlos).

Posted by DOCE – Fan Club on Sunday, April 25, 2021

O processo habitual era José Carlos apresentar os “croquis em papel” — os desenhos e figurinos — sugerindo que os fatos teriam “esta ou aquela cor”. Tozé Brito e a Polygram ouviam e depois avançavam, “nomeadamente com o dinheiro para os fazer”.

Para Fátima Padinha, o estilista foi tão fulcral que era uma espécie de quinto elemento das Doce: “Teve um papel muito importante, trouxe até nós a alta costura. O José Carlos fazia altura costura e acompanhou-nos, principalmente durante os primeiros quatro anos esteve sempre connosco. Isso ajudou-nos muito a ter a imagem que tínhamos. Costumo dizer que era o quinto elemento porque foi ele que nos ajudou na imagem, era ele que era arrojado, era ele que trazia coisas de Londres e Paris que não existiam cá. Fazia viagens de propósito para nos trazer roupas e para trazer ideias”.

"Estávamos em 1981, as pessoas eram conservadoras, ortodoxas, cinzentas. Isto era um país ainda muito agarrado à revolução, foi poucos anos depois do 25 de abril. De repente põem como presidentes do júri professores, padres, presidentes de junta, e aparecem-lhes quatro mulheres de biquini e com correntes. Foi um escândalo completo. No ano seguinte, fomos tapadas até ao pescoço."
Fátima Padinha

A estética visual das Doce teve, ainda assim, um pequeno acidente de percurso em 1981. Nesse ano, as quatro aparecem no Festival da Canção e na RTP a cantar “Ali-Babá (Um Homem das Arábias)”, vestidas de odeliscas e com muita pele à mostra. Acabaram em quarto lugar, num festival vencido por Carlos Paião (com “Playback”) e que teve em segundo lugar José Cid (“Morrer de amor por ti”) e em terceiro Maria Guinot (“Um adeus, um recomeço”).

O resultado foi uma surpresa e logo se começou a associar a indumentária arrojada das Doce ao inesperado quarto lugar. “Os fatos eram mesmo muito arrojados. Na altura o resultado não era decidido por voto popular, era pelo júri que a RTP nomeava nas sedes de distrito. O júri penalizou-as bastante, foi uma canção polémica pela maneira como elas se apresentaram em palco. Não é por acaso que depois quando interpretam a ‘Bem Bom’ vão quase todas tapadas, só tinham cabeça e mãos de fora. Os fatos de mosqueteiro da ‘Bem Bom’ protegiam-nas. Tudo isso foi pensado, não foi por acaso”, conta Tozé Brito.

As Doce em 1982 no Festival de Trujillo em Espanha com os fatos do Bem Bom. Apesar de serem talvez os mais icónicos, acabaram contudo por não ser muito usados em espectáculos ao vivo.

Posted by DOCE – Fan Club on Friday, July 2, 2021

Hoje os fatos usados pelas Doce em “Ali-Babá” dificilmente chocariam, mas o Portugal de 1981 não era o de 2021: “Havia muito puritanismo ainda no Portugal dessa altura. E o júri penalizava quem se atrevesse”, garante o músico e compositor, que considera ‘Bem Bom’ — cuja música escreveu com o irmão Pedro Brito e cuja letra escreveu com António Vargas — uma canção “que ritmicamente é baseada num malhão, que é uma música tradicional portuguesa”.

Fátima Padinha tem o mesmo entendimento quanto ao mau resultado com “Ali-Babá”: “Eu na altura disse ao José Carlos: ‘vamos perder o festival e é por causa dos fatos’. Esteve para aí um mês sem me falar, ficou muito ofendido por eu lhe ter dito isso. Mas veio-se a verificar”, vinca a cantora, acrescentando: “Estávamos em 1981, as pessoas eram conservadoras, ortodoxas, cinzentas. Isto era um país ainda muito agarrado à revolução, foi poucos anos depois do 25 de abril. De repente põem como presidentes do júri professores, padres, presidentes de junta, e aparecem-lhes quatro mulheres de biquini e com correntes. Foi um escândalo completo. No ano seguinte, fomos tapadas até ao pescoço”.

“4 da manhã, ei!” Os concertos Portugal fora: “Vestiam-se muitas vezes na casa paroquial…” e iam para o palco “acompanhadas pela tropa”

A Docemania propagou-se cedo no país, ainda no arranque dos anos 80, não tivesse o grupo (formado nos últimos meses de 1979) tido logo em “Amanhã de Manhã” um primeiro êxito — e daí em diante saíram discos, houve participações no Festival da Canção (e uma vitória em 1982 e um representação honrosa na Eurovisão, com “Bem Bom”), sucediam-se os concertos. Muitos concertos.

Teresa Miguel, António Pinho, Fátima Padinha, Pedro Brito, Lena Coelho, ToZé Brito e Laura Diogo. A vitória no Festival RTP da Canção de 1982.

Posted by DOCE – Fan Club on Tuesday, July 7, 2020

Fátima Padinha lembra-se bem da vida de estrada no início dos anos 80: “Os concertos eram uns atrás dos outros. Em 1981 chegámos a fazer 27 concertos só no mês de agosto”, recorda, explicando que as digressões nacionais não podem ser comparadas às atuais, dado que “ainda por cima não era uma coisa programada, não íamos de norte para sul ou de sul para norte, tudo seguidinho — era aos saltos, um dia em Mangualde, outro dia em Portalegre, noutro dia em Oliveira do Hospital. Andávamos para cima e para baixo”.

Acresce que na vida de estrada das Doce percorriam-se estradas bem diferentes das atuais, demorava-se muito mais tempo a viajar pelo país. “Costumava dizer que não eram estradas de Salazar, eram estradas de Sidónio Pais — todas às curvas, muito estreitas, com muito trânsito”, recorda a cantora.

No primeiro ano da banda, a opção das Doce e da editora foi alugar uma carrinha para as viagens e para os concertos. Mas com o aumento do número de espectáculos foi preciso outra opção, lembra Fátima Padinha: “Comprámos uma carrinha nossa, uma Ford Transit. Tínhamos tanto material… era preciso. A carrinha tinha uma pintura personalizada: tinha ‘Doce’ escrito num dos lados, com o desenho de uma boca ao lado”.

Os concertos foram muitos mas, em conversa com o Observador, Fátima Padinha lembra-se de um concerto que não esqueceu. “Foi em Idanha-a-Nova, em Castelo Branco, fomos fazer uma romaria. Tínhamos muita gente à nossa frente e tínhamos um espectáculo bastante corrido, quase só com músicas fortes e com impacto, mas pelo meio tínhamos uma música mais lenta, que era a ‘Depois de Ti’, para podermos descansar um bocadinho do ritmo das outras músicas”.

Naquela noite, em Idanha-a-Nova, as Doce começam a cantar o slow ‘Depois de Ti’. Mas “na plateia começa um senhor a leiloar: olha a cabecinha do leitão, olha a cabecinha do leitão!”. Fátima Padinha ri-se: “Parámos a música e dissemos-lhe: olhe, o senhor que está aí a leiloar a cabecinha, deixe-nos só acabar aqui o espectáculo e depois pode vender a cabecinha como quiser”. A resposta: “Com certeza”. Volta a música, “depoooois de tiiiii”, volta o pregão: “Olha a cabecinha! Quem dá mais pela cabecinha?”.

Havia um impasse com a cabecinha do leitão. E as Doce insistiam do palco: “Olhe, desculpa, a gente assim não consegue. Enquanto o senhor estiver a falar a gente não consegue cantar”. Outra vez: com certeza, com certeza. Siga a música. Nova tentativa, novo pregão: olha a cabecinha! “Pronto, desistimos de cantar a ‘Depois de Ti’ e tivemos de arrancar para o ‘Ali-Babá’ e por ái fora”, ri-se Fátima Padinha.

Nas Doce, era ela, Fátima, que “tratava dos hotéis”. E muitas vezes era preciso “ver o percurso das estradas, onde dormíamos e comíamos, etc”. Hoje pode parecer impensável mas a antiga vocalista das Doce lembra-se de terem ido a terras “onde não havia água nem luz”, que para poderem ter eletricidade para receber um concerto das Doce tinham de alugar geradores com muita potência — “porque toda a gente queria ter as Doce”.

Tozé Brito não seguia as Doce para todo o lado, nem perto disso, mas chegou a ir a alguns concertos. E lembra-se que “o ensaio de som às vezes já era um caos por já haver havia milhares de pessoas à espera do espectáculo. Muitas vezes chegava-se muito tarde porque no dia anterior tinha havido, imaginemos, um espectáculo no Algarve e naquele dia era em Leiria. Viajava-se durante muitas horas em estradas péssimas, numa carrinha que era grande mas não tinha grandes condições. Elas já chegavam aos sítios estouradas, cansadas, e ainda tinham de fazer o ensaio de som e ir comer qualquer coisa — tinha de se escolher um sítio pequenino, onde fosse possível comer em paz e sossego. Se fosse um local público não conseguiriam comer de certeza”.

"Muitas vezes tínhamos de ser acompanhadas ou por GNR, ou pela PSP ou até pela tropa", conta Fátima Padinha. "Dizíamos até a brincar que estávamos presas, porque entrávamos com guarda e saíamos com guarda. As pessoas queriam-nos arrancar a roupa, arrancavam-nos os cabelos..."

Depois do jantar, afigurava-se habitualmente outra dificuldade: onde é que Lena Coelho, Fátima Padinha, Teresa Miguel e Laura Diogo se podiam preparar e vestir para o espectáculo? “Vestiram-se muitas vezes na casa paroquial”, conta Tozé Brito. “Não havia outros sítios, portanto às vezes era em casa do padre da freguesia. Quem diz em casa do padre, diz a casa do presidente da junta de freguesia ou qualquer outra coisa. Era sempre a casa de alguém importante lá da terra, que fornecia um quartinho para elas se vestirem e se pintarem ao espelho”.

Fátima Padinha confirma a dificuldade de arranjar sítio para se vestirem, mas faz uma adenda: “Isso acontecia mas também tínhamos padres… o palco geralmente era no átrio da igreja local e alguns padres proíbiam que se montasse um palco no átrio da igreja para receber as Doce. Uns gostavam muito, outros nada”. Regra geral, conta a antiga integrante das Doce, já depois da fase “roulottes” era na “casa do comissário das festas” que se preparavam — como as festas muitas vezes eram religiosas, a casa era a do responsável da paróquia.

2 / 80Na sequência das anteriores publicações continuamos a revisitar alguns momentos relativos ao 1º fato com que as…

Posted by DOCE – Fan Club on Thursday, February 14, 2019

A cantora lembra-se até de uma noite, em Chaves, em que as quatro Doce vestiram os seus fatos arrojados no convento local. “As freiras foram mais do que simpáticas!”, recorda hoje Fátima Padinha, contando a história: “Estiveram até às quatro da manhã acordadas para nos fazerem companhia e nos receberem. Tínhamos de esperar pelos técnicos depois do concerto, para pôr a bagagem dentro da carrinha. Elas estiveram até às 4h acordadas para nos fazerem companhiam e receberam-nos com cházinho depois do concerto. Até torradinhas e bolachinhas nos deram!”

Camarins é que, nos primeiros anos, nem vê-los — até às Doce baterem o pé. “Foi uma guerra enorme: no segundo ano das Doce quisemos ter camarins para podermos mudar de roupa a meio do espectáculo. Mudávamos três vezes de roupa durante o espectáculo, se tivéssemos tempo para nos irmos vestir perto. Tínhamos três minutos para vestir o fato, era muito curto. Mas começámos a exigir nos contratos que tivessem um camarim ali ao lado para fazermos o espectáculo. E acho que isso também ajudou outros colegas, começou a haver essa preocupação dos artistas terem sítio onde estar perto do palco”, recorda Fátima Padinha.

Existirem camarins perto do palco permitia, desde logo, uma coisa importante para as Doce: não terem de sair do sítio onde se vestiam e percorrerem um longo caminho a pé até ao palco, furando entre a multidão. “Às vezes tinham 20 mil pessoas entre a casa paroquial e o palco. E tinham de atravessar aquela malta. Imaginem quatro mulheres prontas para subir para cima de um palco, maquilhadas, vestidas com aquela roupa — que não eram propriamente jeans e t-shirts — a atravessarem uma multidão de pessoas que tentavam tocar-lhes e chegar até elas…”, recorda Tozé Brito.

“Muitas vezes tínhamos de ser acompanhadas ou por GNR, ou pela PSP ou até pela tropa”, conta Fátima Padinha. “Dizíamos até a brincar que estávamos presas, porque entrávamos com guarda e saíamos com guarda. As pessoas queriam-nos arrancar a roupa, arrancavam-nos os cabelos… tínhamos mesmo de ter guardas porque queriam agarrar-nos, estar ao pé de nós. Então começámos a pedir a guarda que houvesse: se havia um quartel naquele sítio era a tropa, se havia GNR era a GNR, se havia a PSP era a PSP. Tínhamos de ter segurança”.

“5 da manhã, ei!” A relação entre elas e o segredo da longevidade: “Foi quase um milagre, pá…”

Passados 40 anos, há uma curiosidade por desvendar: fora dos palcos, quando estavam sozinhas, como se davam as quatro Doce? Haveriam grupos dentro do grupo? Fátima Padinha começa por assumir que numa fase inicial tinha mais cumplicidade com Teresa Miguel, cantora que já conhecia há muitos anos: “Dava-me mais com a Teresa. Vínhamos dos Gemini, tínhamos uma idade próxima, havia ali uma simbiose. Aliás, ainda hoje somos muito amigas, praticamente irmãs, gostamos muito uma da outra”.

Quando conheceu Teresa Miguel, Fátima Padinha tinha “16 ou 17 anos” — e Teresa “18 ou 19”. Portanto, é fazer as contas: a amizade dura há quase 50 anos. “Em relação à Laura e à Teresa… [Fátima faz uma pausa] oiça, havia ali um pacto. As Doce eram muito profissionais, sabíamos que precisávamos umas das outras para trabalhar e isso era mais importante que tudo o resto. Podíamos até estar muito chateadas cá fora, porque havia discussões, não lhe nego — em relação aos vestidos, em relação a comportamentos. Mas chegávamos ao palco e tudo era esquecido. Tivemos momentos maus, desagradáveis, mas isso uniu-nos muito, fomos profissionais até ao fim”.

As Doce estavam no Porto quando pensaram em acabar com o grupo. E ao telefone, preocupado, Tozé Brito alertava: "Ninguém sai daí. Em que hotel é que estão, para ir aí ter?"

Tozé Brito corrobora a versão de Fátima Padinha: “Não vou dizer que as quatro se deram sempre bem. Por vezes estavam duas de um lado com uma ideia e duas do outro. Mas dentro deste equilíbrio e da amizade que foram fazendo, o grupo foi sempre equilibrado, nunca quebrou por completo, nunca partiu todo para um lado com três de um lado e outra de outro. Isso nunca aconteceu naqueles anos e foi muito importante. Houve também bom senso da parte delas, que o sucesso também ajuda a ter. Se o projeto não tivesse tido o sucesso que teve se calhar o grupo ter-se-ia dissolvido mais cedo. Elas rapidamente perceberam que este era um projeto ganhador e onde iriam ter muito êxito — e que a união das quatro economicamente também seria vantajosa”.

O escritor de canções, à época funcionário da Polygram e colaborador das Doce, assume que não esperava que as Doce durassem tanto tempo: “O que se conseguiu ali foi quase um milagre, pá… Quatro mulheres durarem, como elas duraram, sete anos, juntas, em grupo, de forma profissional, era algo complicadíssimo. Na minha cabeça nunca sonhei que elas fossem durar sete anos. Se ao fim de três anos nos Gemini me tinha cansado do projeto, quis abandoná-lo e parti para outras coisas, pensei que as Doce na melhor das hipóteses iriam durar os tais 3 anos”. Fátima Padinha comenta: “Toda a gente acha que um grupo de mulheres já é difícil e que durar seis ou sete anos é quase impossível. Mas tínhamos um pacto entre nós, podíamos até estar muito chateadas cá fora, fomos sempre profissionais”.

“6 da manhã, ei!” As piores zangas e telefonemas a dizer “o grupo acabou”

Fátima Padinha já assumiu que também houve “momentos maus, desagradáveis” e que “existiram discussões”. Mas e exemplos? Tozé Brito lembra-se de alguns: “Houve alturas em que cheguei a receber telefonemas delas a dizer-me: ‘o grupo acabou!’ Isto às duas ou três da manhã. E eu a perguntar: onde é que vocês estão?”.

Numa dessas ocasiões de que se recorda, as Doce estavam no Porto quando pensaram em acabar com o grupo. E ao telefone, preocupado, Tozé Brito alertava: “Ninguém sai daí. Em que hotel é que estão, para ir aí ter?” O compositor e AR da Polygram ouviu a resposta e “meti-me no carro e fui para o Porto, de Cascais, onde vivia — às tantas da manhã, para poder estar no Porto às 9h, ter uma conversa com elas e dizer: vocês não podem matar um projeto destes só por uma discussão”.

Aconteceu “mais do que uma vez”, durante os tempos de maior sucesso, as Doce “terem a tentação de dizer: não aguentamos mais isto, vamos acabar com isto”, assume Tozé Brito

Nesse caso específico, Tozé Brito não se recorda exatamente da discussão que criou tensão no grupo. Mas estas aconteciam por “coisas corriqueiras, banais, que acontecem quando as pessoas estão muito cansadas”, aponta. “Elas passavam meses… de julho a setembro quase não vinham a casa, tinham espectáculos quase diariamente, não viam a família, não tinham tempo quase para mudar de roupa. É normal e natural que as pessoas tivessem dias em que rebentassem, que começassem discussões parvas por coisas menores: ‘tu enganaste-te’, ‘o meu microfone estava mais baixo e o teu mais alto’, coisas dessas que não têm importância nenhuma mas que naquelas alturas de cansaço e stress emocional…”

Aconteceu “mais do que uma vez”, durante os tempos de maior sucesso, as Doce “terem a tentação de dizer: não aguentamos mais isto, vamos acabar com isto”, assume Tozé Brito. Mas “era sempre uma questão de falar com elas, dizer: não, vamos lá ter calma, por amor de Deus, isto custou muito a pôr de pé, não é por uma coisa sem qualquer importância que agora vão pôr isto em causa”. Tudo resolvido, siga a banda.

“7 da manhã, ei!” O boato Reinaldo: “Correu mundo! Cheguei à Austrália e ouvi bocas”

Se as Doce sobreviveram a isto, sobreviveriam a tudo: a 22 de outubro de 1981, Fátima Padinha lembra-se da data exata, começou a correr um rumor pelo país de que Laura Diogo tinha dado entrada no Hospital Santa Maria, alegadamente por ferimentos que teriam tido origem após praticar sexo anal com Reinaldo, então futebolista do Benfica.

Fátima Padinha recorda que foi preciso “operações para advogados irem ao Hospital Santa Maria e a um hospital particular”, tentar provar que o rumor era infundado, mas nada feito: o boato tinha vindo para ficar. “Oiça, o boato surgiu nesse dia. Fomos para os Estados Unidos da América quatro dias depois, íamos fazer lá uma tournée. Quando chegámos aos Estados Unidos o manager que nos representava diz-nos: então mas vieram as quatro? E nós: então quem é que havia de vir?”.

A pergunta do manager em solo norte-americano parece esquisita, a explicação é simples: “O boato já lá tinha chegado! Já se dizia que uma das Doce estava hospitalizada. Esse boato correu mundo, cheguei à Austrália e ouvi bocas na Austrália sobre o Reinaldo!”, conta Fátima Padinha, logo acrescentando: “O mais curioso é que nunca conhecemos o Reinaldo!”.

Bem as Doce podiam insistir que não conheciam Reinaldo, bem podiam tentar provar que Laura Diogo não dera entrada em hospital nenhum — no máximo poderia ter sido confundida com alguém —, de nada valia. “Sabe o que fazíamos? Como tínhamos aquela carrinha a dizer ‘Doce’ num dos lados muitas vezes éramos identificadas. Antes passávamos pelas terras e as pessoas punham-se a dizer na estrada: ó Doce! ó boa!. Quando surgiu isso já diziam, para olharmos para eles: olha o Reinaldo! Sabe o que começámos a fazer? Abríamos os vidros e antes que eles dissessem alguma coisa, dizíamos nós: olha o Reinaldo! [risos] Tirávamos-lhes a piada que queriam fazer, adiantávamo-nos”.

O grupo pode ter abalado com o “caso Reinaldo” mas não quebrou: “Conseguimos ultrapassar isso, mesmo a nível de espectáculos tivemos muito sangue frio”. Do que Fátima Padinha tem mais pena é do antigo futebolista, que teve mais dificuldades para superar o rumor: “O Reinaldo tornou-se um pária. Era um jogador de futebol com imenso êxito e estragaram-lhe a vida. Teve de mudar de casa, teve de ir viver para Vila Nova de Famalicão, a mulher acabou por se divorciar dele, estragaram a vida ao homem. A nós não, passámos por cima disso, mas o homem ficou muito prejudicado. E nós nunca o chegámos a conhecer, o que é incrível”

“8 da manhã, ei!” As Doce libertaram a mulher portuguesa? “Trouxemos um arejamento”

Há quem sustente que quando as Doce aparecem, vestindo-se de forma arrojada para os padrões femininos da época, não causaram apenas polémica — como a que se sentiu quando se vestiram de “odeliscas”, mostrando a pele, no Festival da Canção em que interpretaram “Ali-Babá”. Tozé Brito, por exemplo, acha que tiveram “um papel muito importante na mudança de mentalidades e no papel da mulher na sociedade portuguesa”.

A própria entrada do grupo no panorama português, com o primeiro êxito "Amanhã de Manhã", é aliás emancipadora em si: na cantiga, quatro mulheres portugueses exultam "quem ama por gosto" e prometem a um amante prendê-lo "na cama, no chão". Revolucionário qb para um Portugal ainda cinzento e opressivo para as mulheres.

O músico, compositor e então executivo da indústria discógrafica lembra ao Observador que até ali “as mulheres não se podiam atrever a mostrar as pernas, o braços, o peito até onde era possível mostrar — sem se passar a tal linha vermelha que tivemos sempre presente na nossa mente”. E que, por tudo isso, as quatro cantoras foram “muito importantes para a emancipação da mulher”.

A própria entrada do grupo no panorama português, com o primeiro êxito “Amanhã de Manhã”, é aliás emancipadora em si: na cantiga, quatro mulheres portugueses exultam “quem ama por gosto” e prometem a um amante prendê-lo “na cama, no chão”. Revolucionário qb para um Portugal ainda cinzento e opressivo para as mulheres.

Tozé Brito defende que “o papel da mulher em Portugal muda muito também por ação daquilo que as Doce tiveram a coragem de representar” e dá os principais créditos pelo feito às quatro cantoras: “A ideia [da girl band] pode ter vindo de outros, que foram os pais da ideia, mas o mérito é todo delas. Quem deu corpo a tudo isto foram elas, quem teve coragem de ir para a frente foram elas. É verdade que se criou a ideia, o formato do grupo, as traves e linhas mestras, mas elas deram-lhes corpo e voz com uma elegância, um bom senso e um sentido de humor perfeitos. Só com isso era possível ultrapassar todas as críticas que ouviram numa fase inicial”.

Confrontada com isto, Fátima Padinha reconhece: “Trouxemos um arejamento social”. Mais do que isso, não lhe cabe arriscar: “Há quem diga que as Doce tiveram um papel na libertação da mulher portuguesa daquela altura. Não sei se será o caso, não sou especialista para emitir essa opinião, mas acho que trouxemos um arejamento. O que se via lá fora, de repente estava em Portugal. As pessoas gostavam de ver os nossos fatos e a nossa imagem, de ouvir as nossas músicas. Nós também completávamos com coreografias”.

Laura, Teresa e Lena nos bastidores do Festival RTP da Canção em 1981. A Fá não estava por perto e as votações…

Posted by DOCE – Fan Club on Monday, May 18, 2020

A cantora diz até ter “muita pena que não haja um filme como deve ser de um espectáculo” porque entende que eram “muito boas em palco, tínhamos um espectáculo em que as pessoas até ficavam sem reação, completamente atónitas, deslumbradas”.

E se a paternidade da ideia da girl band não coube às cantoras, que ainda assim aceitaram o desafio e deram corpo e voz ao grupo, Tozé Brito garante: “Elas aprovaram sempre tudo o que foi feito e nada foi feito contra a vontade delas. Não as obrigámos a cantar canções que não gostassem. Quando não gostavam de uma canção, diziam: nós não gostamos disto. Chegou a acontecer. Elas tinham voz ativa, não faziam o que lhes mandávamos fazer, diziam de que é que gostavam e de que é que não gostavam”.

Fátima Padinha começa por concordar: “Em geral, as músicas que nos ofereciam eram músicas que nos agradavam. Aceitávamos cantá-las porque gostávamos das músicas”. Mas não deixa de fazer uma achega com um exemplo concreto: “Houve uma música que detestei que era a ‘Eu e o Meu Namorado’. Tivemos mesmo de a cantar porque só a conhecemos quando chegámos ao estúdio. Não gostei mesmo nada da canção, mas disseram-me perentoriamente que já não havia nada a fazer, que era um lado B, que tínhamos de a cantar e seguir. Mas em geral gostávamos das músicas. Dessa é que particularmente não gostei, mas talvez tenha sido uma posição muito pessoal”.

“9 da manhã, ei!” A “internacionalização” falhada. E uma madrugada na Alemanha com José Malhoa

As Doce também tiveram uma expressão internacional, ainda que a tentativa de as tornar um produto pop com alcance mundial, fora do domínio da língua portuguesa, não tenha sido bem sucedida.

A tentativa de internacionalização começa depois da participação do grupo na Eurovisão, com o tema “Bem Bom”, que Tozé Brito escreveu com o irmão Pedro Brito (dividiram a parte musical) e com António Avelar de Pinho (trabalharam na parte lírica). Uma canção que ficaria no imaginário português, que ritmicamente é inspirada em ritmos tradicionais portugueses — mais especificamente no ritmo do malhão —  e que, irreverente qb para o Portugal de então, pôs quatro mulheres a cantarem sobre uma longa madrugada e manhã de amor.

Na Eurovisão, em 1982, “a coisa corre bem”, conta Tozé Brito, acrescentando: “Ficaram a meio da tabela, o que na altura era um lugar perfeitamente honroso para Portugal porque era habitual ficarmos nos últimos lugares. Elas ficaram bem acima disso, muito acima”. Na altura a Polygram “pertencia, no fundo, à Phillips” e a Polygram holandesa, que era o ‘país mãe’ da multinacional, apercebeu-se do resultado meritório do grupo na Eurovisão e começou a pensar: e se as Doce cantarem em inglês e saírem de Portugal?

As Doce na Eurovisão

Eurovision

Daí à tentativa de internacionalização foi um pulinho, conta Tozé Brito: “Por volta de 1983 ou 1984, creio, as Doce começaram a trabalhar com produtores musicais holandeses e compositores e autores holandeses que lhes escreveram repertório em inglês. Na altura coloquei a questão em termos práticos e claros à Polygram internacional, disse-lhes: o que podem eventualmente estar a fazer é matar o grupo”.

Para Tozé Brito, o sonho da internacionalização era pouco sustentado e tinha mais riscos do que vantagens: “Uma coisa é cantar em português de Portugal e haver um foco no mercado interno, que foi o que fizeram de 1979 a 1983, salvo erro. Outra era a concorrência internacional, que era incomparável — era muito maior. E realmente nada funcionou”.

As Doce chegaram a gravar temas como “For The Love of Conchita” e “Starlight”, mas “as canções não funcionaram e elas não se adaptaram muito bem a cantar em inglês — o que também era expectável, não foi nada surpreendente para mim”, aponta Tozé Brito. “Ainda cantaram em N países europeus, saíram da Europa, mas essa tentativa cansou-as imenso, viajaram de forma violenta e sem resultados práticos”.

De repente, recorda o compositor e então executivo discográfico, “nós na Polygram Portugal deixámos de ter controlo sobre quem escrevia as canções, quem ia produzir os discos, que músicos estavam em estúdio, como se iriam elas vestir. O próprio José Carlos já se estava a afastar um pouco porque eles, no fundo, metiam-se em tudo. A carreira das Doce passou a ser decidida mais em Amesterdão do que em Lisboa”. Ainda assim, Tozé Brito acrescenta: “Pelo que me diziam foram sempre muito bem tratadas, gostavam e até tiveram uma palavra a dizer em relação à escolha das canções em inglês, de que gostaram. Agora, a concorrência aqui era uma e lá fora era outra, muito maior e mais alargada, já com alguns grupos femininos — lembro-me das holandesas Luv, que eram um grupo também acarinhado localmente e que tinha pretensões a fazer uma carreira internacional”.

Ao Observador, Fátima Padinha recorda que as Doce chegaram a ser editadas “em, creio, cinco países em simutltâneo” mas reconhece que a tentativa de internacionalização foi “mal conseguida” e “uma aposta falhada da editora”. Ainda assim, tem boas memórias dos concertos fora do país. E recorda uma história de uma ida a “uma cidadezinha alemã, uma pequena cidade satélite”, onde as Doce foram cantar.

A chegada do grupo a essa tal cidade alemã deu-se já “muito tarde, à uma ou às duas da manhã”. Problema: “Não encontrávamos o hotel, estava tudo em alemão e ninguém sabia alemão”. Além de Fátima, Teresa, Lena e Laura, na comitiva estava José Malhoa. E o grupo depara-se com “um indivíduo, um rapaz novo, a vir para casa — e que vinha com os copos”.

Com a entrada nas Doce de Ágata, ou melhor, Fernanda de Sousa, "a unidade do grupo estava desfeita e começaram a haver questões complicadas de gerir, com as personalidades delas em relação à Fernanda — e o grupo terá acabado ao fim de seis meses, creio que foi por volta disso".

José Malhoa chega-se à frente, aborda o alemão e Fátima vê o alemão “falar, falar, falar” e José Malhoa a acenar que sim, muito compenetrado. A conversa prolongava-se mas a madrugada também. E Fátima aproximou-se do duo luso-germânico e perguntou a José Malhoa: “Mas tu sabes alemão?”. Ele: “Eu não!”. Mas então se estava a acenar e a dizer que sim, como se percebesse tudo… “Ele está a ser tão simpático, tenho de lhe dizer que sim”.

O tal rapaz alemão levou os portugueses todos para sua casa, “está a ver a matulagem”, uns sete ou oito a entrarem casa dentro. No interior, a mulher do alemão dormia mas acordou com o barulho. “Levanta-se, era daquelas alemãs muito grandes…”. Solução: a rapariga falava melhor inglês do que o rapaz, percebeu o problema e ajudou as Doce e José Malhoa a perceberem onde ficava o tal hotel que procuravam. “Ainda assim, primeiro que chegássemos foi outra história… houve histórias muito engraçadas por essa Europa fora, nos Estados Unidos, na Austrália. Temos sorte e a felicidade de as pessoas terem gostado dos nossos espectáculos, em Portugal e fora”, diz hoje, passados 40 anos, Fátima Padinha.

O fim: “Estávamos muito cansadas. Ainda sugeri que se parasse um ano…”

Afinal, porque é que as Doce acabam em 1986? Tozé Brito tem uma tese: a tentativa de internacionalização falhada e as constantes viagens “juntaram-se a um cansaço natural”, o grupo percebeu que “isto internacionalmente não vai dar nada, estamos confinadas a Portugal e em Portugal já fizemos tudo o que tínhamos para fazer” e daí ao fim da banda é um pulinho. “Essa tentativa, quanto a mim, começa a exasperá-las. Depois há uma gravidez natural, a Lena Coelho engravidou e saiu do grupo, entrou a Fernanda de Sousa que hoje as pessoas conhecem como Ágata”.

Com a entrada nas Doce de Ágata, ou melhor, Fernanda de Sousa, “a unidade do grupo estava desfeita e começaram a haver questões complicadas de gerir, com as personalidades delas em relação à Fernanda — e o grupo terá acabado ao fim de seis meses, creio que foi por volta disso”.

"Doce 15 Anos Depois", compilação editada em 2002, serviu de apoio promocional ao espectáculo que as Doce (em formato…

Posted by DOCE – Fan Club on Sunday, November 29, 2020

Fátima Padinha dá a sua versão da história, recordando uma reunião “em outubro de 1985” em que já estavam todas “bastante cansadas”. Tinham-se passado seis anos, “eram espectáculos sem fim” e “Portugal era pequeno”, iam a uma localidade um ano e passado outro ano já lá estavam novamente, corriam tudo todos os anos.

Nessa reunião em outubro de 1985, Fátima Padinha diz que sugeriu “que se parasse durante um ano”. Por um lado, a paragem permitiria às quatro Doce descansaram da vida frenética que levavam. Por outro lado, era um tempo que poderia ser aproveitado para “que adaptássemos a nossa imagem não às teenagers, que era a ideia quando tínhamos começado, mas às mulheres”. Problema: “Não quiseram”.

As propostas de Fátima Padinha foram várias: “Também sugeri largarmos o playback [instrumental] e começarmos a cantar ao vivo com um conjunto de músicos. Mas isso ia durar pelo menos um ano a preparar: tínhamos de rever a imagem, pensar no nome das músicas, num conjunto que nos acompanhasse ao vivo — e tudo isso implicaria uma logística a nível de transportes, de pessoal e equipamento técnico, etc”. Nada feito: “As pessoas estavam muito cansadas e diziam que não aguentavam estar mais tempo, então iam queimar os últimos cartuchos, fazer os últimos espectáculos e terminar o grupo”.

Fátima Padinha diz que já “não quis continuar” e saiu. E ao contrário de Tozé Brito, não acha que a tentativa de internacionalização tenha sido a raiz do início do fim das Doce, quanto muito não foi o “balão de oxigénio” que permitiria aguentar o cansaço mais tempo e daria “um fôlego” novo. “Já não existia grande novidade sobre nós, éramos um dado adquirido. Só era possível continuar renovando as Doce, mas para isso era preciso força anímica, querer pensar de novo em tudo e as pessoas estavam muito cansadas”, aponta “Fá”.

"O Barquinho da Esperança", foi o último single que as Doce editaram no natal de 1984. Tema participante no Festival da…

Posted by DOCE – Fan Club on Saturday, October 31, 2020

Até a editora “já estava um bocadinho cansada das Doce, já não havia grande novidade”, diz Fátima Padinha. As coisas “foram acabando gradualmente, naturalmente e pelo cansaço das pessoas. Atrás ficaram “seis, sete anos” de um percurso “bem bom”, sem “saber o que virá depois”: um filme, estilo biopic, que as irá apresentar a uma nova geração.

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