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HENRIQUE CASINHAS/OBSERVADOR

HENRIQUE CASINHAS/OBSERVADOR

"Um perfume tem de ter provocação e eu considero-me um provocador nato"

Com 11 anos de carreira, Lourenço Lucena acaba de lançar a sua primeira fragrância. Da fórmula inspirada em Portugal aos meandros da indústria, para o perfumista cada aroma é uma história.

Foram precisos 11 anos a compor fragrâncias por encomenda para Lourenço Lucena decidir lançar o seu primeiro perfume, Acqua di Portokáli. A fragrância é uma homenagem à laranja portuguesa mas também uma obra depurada, composta a partir de alguns dos ingredientes mais simples da perfumaria. Fomos falar com o perfumista português a quem também já chamaram sentertainer, isto é, entertainer dos sentidos.

Não há texto sobre o Lourenço que não comece a dizer que é o único português membro da Société Française des Parfumeurs. O que é que isso quer dizer na prática?
É apenas um detalhe. Acho que por ser o único, as pessoas acabam por dar importância a isso, mas há vantagens em fazer parte da Société Française des Parfumeurs. É estar no ponto de centralização de toda a informação na indústria. À parte da “cagança” de ser o único isto e aquilo, a verdade é que é um privilégio fazer parte de um grupo onde se encontram os maiores criadores e os maiores perfumistas do mundo. Recordo-me que, há sete anos, tive uma artista plástica a querer recriar o ambiente do pós Revolução Francesa. Na altura, pela investigação que fez, ela descobriu que havia um perfume chamado Parfum à la Guillotine. Ela queria trabalhar o ambiente olfativo do espaço onde ia fazer a performance. A única forma de encontrar alguma coisa foi via Société Française des Parfumeurs porque, no conjunto de membros, existem alguns historiadores da perfumaria. São detalhes importantes, mas não dependo da sociedade para fazer perfumes. É mais um ponto de encontro e Paris é Paris, qualquer desculpa é boa para lá voltar.

E esse detalhe acaba por ter tanto destaque por estarmos em Portugal. Em França seria banal?
No ativo, é provável que não existam mais do que 750 perfumistas no mundo inteiro. Não deixa de ser interessante fazer parte desse grupo. Vale o que vale. Mas sim, em França há dezenas. Continua a ser a capital mundial do perfume, embora hoje já tenhamos outros polos. Em Barcelona há uma indústria de produção muito consistente. Os perfumes de marcas como Prada, Comme des Garçons e Carolina Herrera já são feitos lá. Claro que um perfume feito em França continua a ter outro peso.

Lourenço Lucena, na Embassy, em Lisboa, onde o perfume está à venda por 120€. ©HENRIQUE CASINHAS/OBSERVADOR

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São 750 em todo o mundo. Isso quer dizer que os perfumistas estão em vias de extinção?
Não, de todo. Ainda ontem recebi um e-mail de uma pessoa a perguntar se sabia onde é que uma sobrinha dela podia ter formação para seguir a carreira de compositora de perfumes. Claramente, tem de ir para França, aqui não há nada a fazer, a não ser que se queira seguir o caminho pela química. O curso de perfumaria é no ISIPCA, em Versalhes. São cinco anos de formação e 95 por cento de quem acaba sai colocado. Ainda pus essa hipótese na altura, mas a minha vida estava completamente estabelecida e não tinha como fazer cinco anos sabáticos.

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Mas foi à mesma para Paris aprender?
Sim, em 2005. Acabei por me inscrever na Cinquème Sens. Contactei duas ou três escolas e o meu briefing à “tuga” era: moro em Portugal, tenho a vida feita cá e não posso de repente emigrar para a vossa terra durante não sei quantos anos, há alguma forma de eu fazer a formação? Ia dez dias por mês para Paris, três dias em classe com o resto da turma e os restantes a receber a formação que ia ser dada nas semanas seguintes. Isso permitiu-me fazer em dois anos a formação que habitualmente é feita em três.

"Não gosto de dizer que é um dom. Tendo o gosto e se trabalharmos, é uma capacidade com a qual podemos fazer magia. Criar perfumes é criar histórias."

Desde pequeno que teve um olfato acima da média. Numa carreira como perfumista, o que é que pesa mais, a aptidão natural ou a formação?
Todos nascemos com a mesma capacidade olfativa. O que nos molda é a experiência e o nosso percurso de vida. Obviamente, há pessoas que têm uma aptidão natural ou mais gosto, da mesma forma que há pessoas que gostam de carros e outras de vestidos. Desde pequeno fui sensível a tudo o que cheirava. Hoje, olho para trás e houve momentos marcantes na minha vida em que tenho os aromas muito claros na minha cabeça, só que na altura não os teorizava. Não gosto de dizer que é um dom. Tendo o gosto e se trabalharmos, é uma capacidade com a qual podemos fazer magia. Criar perfumes é criar histórias. É como ser pintor ou compositor de música, há uma altura em que se sente que a obra ganha vida própria. Há muita gente que me pergunta quanto tempo demoro a fazer um perfume. Não há um timing, há é um momento em que eu cheiro o perfume e sinto, não uma repulsa, mas uma sensação de afastamento. Esse é o meu sinal de que o perfume chegou lá. Pode demorar semanas, pode demorar meses, a mim nunca demorou anos, mas há casos em que demora muito tempo a construir. Temos de assegurar que as matérias-primas se respeitam e se deixam brilhar umas às outras. É como um casamento. Se só uma das partes brilha, então é um casamento desequilibrado.

Falando de gostos, é possível traçar um perfil olfativo dos homens e das mulheres portuguesas?
Eu acho que não devia existir o estereótipo do perfume de homem e do perfume de mulher. O que há, aos olhos da nossa cultura, são matérias-primas tendencialmente mais masculinas e outras mais femininas. O Acqua di Portokáli é um perfume unissexo e, tendo citrinos, tem também uma rosa branca. Podem dizer que a rosa é uma matéria-prima feminina, mas há perfumes extraordinários, para homem e para mulher, que usam rosa e não deixam de ser mais ou menos masculinos, mais ou menos femininos, por causa disso. Tem muito a ver com a liberdade com que escolhemos. Há flores super quentes, super impositivas. Até mesmo a magnólia, muito opulenta, cheia e um bocadinho adocicada, se eu a cruzar com pimentas, com canela, açafrão ou com cedro, ela perde aquele lado mais feminino, reequilibra e conta outra história. Tem a ver com a relação que estabelecemos entre as matérias. Obviamente que a indústria da perfumaria, que é gigante, segmentou o mercado, há dezenas de anos, e arrumou-o em lotes. Nós deixamo-nos arrumar ou não. Mas acho que hoje as pessoas estão muito mais livres na exposição do seu gosto do que há 15 anos. É ótimo, deixamos de andar aqui todos “encarneirados”.

O frasco negro, feito em Portugal, de Acqua di Portokáli. ©Divulgação

Mas a perfumaria vai muito além do que vemos nas grandes lojas. O que está do outro lado é mais especial?
Completamente. Há outro mundo. Em Portugal, temos a sorte de já ter algumas lojas a trabalhar esse nicho. A primeira foi a Skinlife. Foram aparecendo outros projetos e o mais recente é o da Embassy. Isso é um sinal de que o consumidor procura outras coisas, procura fugir do mainstream e do perfume a que toda a gente cheira. Por outro lado, há uma profusão de projetos que se apresentam como look alike da perfumaria, marcas que copiam os perfumes de forma perfeitamente desleal e desonesta. Mas atenção, é legal. A indústria da perfumaria não tem patentes nem registo de propriedade intelectual, portanto as fórmulas podem ser de facto copiadas. A verdade é que essas marcas estão a apropriar-se do trabalho de outros. Eles não investem na criação, no trabalho de desenvolvimento, no perfumista, na comunicação nem no lançamento. São milhões e milhões.

Essas marcas conseguem, efetivamente, fazer perfumes iguais aos originais?
Há sempre uma variação. Porque as cópias são feitas através de uma análise cromatográfica e essa análise não permite aferir 100 por cento da composição. E há um lado ainda mais nebuloso da indústria. As fábricas que produzem para as marcas que conhecemos são as mesmas que vendem as cópias. Às vezes temos cópias que são iguais ao original com uma ligeira diferença na diluição. Geralmente, têm menor grau de concentração para serem mais baratas e, por isso, duram menos tempo na pele. Se formos à parte velha do Dubai, por exemplo, algumas lojas vendem cópias de perfumes nas mesmas garrafas de alumínio que as grandes fábricas utilizam para transporte de produto. Há aí uma grande batota e, basicamente, toda a gente evita falar sobre o assunto.

"Um perfume também tem uma componente física, sensual, sexual e erótica. Afirma-nos e faz-nos desencadear desejo no outro. Não quer dizer que ponha um perfume à espera que alguém me venha dar dentadas. Pode acontecer, o que não deixa de ser divertido."

Tal como existem regras de styling na moda, há formas de saber se devemos usar ou não um determinado perfume?
Temos de usar um perfume que siga a nossa personalidade ou, mais do que isso, a nossa representação social. Tal como acontece com a roupa, quando escolhemos um perfume, queremos projetar uma determinada imagem. Eu acho é que é muito mais difícil escolher um perfume do que escolher uma roupa. É algo que não se vê, só se cheira, só se sente. Há muita gente a entrar nas perfumarias, a dizer que cheira tudo igual e que não consegue escolher um perfume. Isso já não acontece em lojas onde se direciona a oferta, se conhece o cliente e os seus gostos e se propõem soluções que façam matching com o perfil olfativo da pessoa. Contrariamente a perfumarias maiores, com um serviço muito pouco personalizado e onde há uma obsessão em despachar marcas, seja por comissionamento ou porque são novidade. A adaptação ao gosto de cada um é muito mais interessante. Um perfil olfativo dá algum trabalho, mas tenho feito imensos. Pessoas que não sabem bem o que hão-de escolher. Dizem que já usaram vários perfumes e todos muito diferentes e, quando os referenciamos, encontramos sempre uma madeira, especiarias, uma flor ou um citrino que os liga a todos. As pessoas acham que não, mas há sempre um denominador comum.

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Há os que vêm e vão e depois há aqueles sete perfumes que, mal acabam, Lourenço Lucena trata logo de substituir. Déclaration, da Cartier, Tuscan Leather, da Tom Ford, Terre d’Hermès, o original, Lumière Noire, da Maison Francis Kurkdjian, Visa, da Robert Piguet, L’Homme, o original da Yves Saint Laurent e Prada Amber são os perfumes que nunca podem faltar.

Com tantos perfumes a serem lançados todos os dias, ainda há espaço para boas surpresas?
Isso acontece sobretudo com os novos criadores, são muito mais livres. Criar para o nicho permite ter uma liberdade muito maior do que quando se pertence a uma grande casa, que recebe um briefing já super definido da história que tem de se contar. Ainda que haja marcas mais comerciais com perfumes extraordinários. Eu tenho vários. Há um perfume muito engraçado do Francis Kurkdjian. Hoje, tem a sua própria maison, mas já fez perfumes muito conhecidos para grandes marcas. Chama-se Lumière Noire, é um perfume unissexo, tem um casamento de cravo, rosa e patchuli e é extraordinário. Só essa liberdade de casar matérias tão diferentes, que acho que também tem pimentas e cacau, é uma lebre para a criatividade. É uma coisa que me estimula a procurar coisas diferentes. O fascinante no mundo dos perfumes, apesar de todos os dias surgirem imensas propostas novas, é que continua a ser possível surpreender, supreendermo-nos a nós enquanto criadores, e surpreender o mercado, seja pelo inusitado ou pela simplicidade da composição.

Procurou isso no Acqua di Portokáli?
Sim. Ao fim de 11 anos a fazer perfumes para os outros, achei que era o momento. Nunca foi uma preocupação, na verdade. No caso do Acqua di Portokáli, o meu trabalho foi de depuração. Eu quis chegar a uma composição bela pela simplicidade e pela pureza. Há cinco matérias-primas dominantes, embora existam outras por trás que ajudam as primeiras a brilhar, são os figurantes. O ponto de partida foi uma fórmula clássica da perfumaria com mais de 100 anos, a água de Portugal. Apesar de ser um eau de parfum com 20% de concentração, o que não é muito comum em perfumaria, tem na base a laranja e mais dois citrinos que ajudam o primeiro a brilhar, o limão e a bergamota. Quis pegar na laranja como símbolo de Portugal. Poucas pessoas sabem, mas, durante muitos anos, Portugal produziu laranjas para a perfumaria, laranjas do Algarve. Essa indústria perdeu-se. Fomos totalmente comidos por outros países muito maiores em termos de produção. Mas a laranja do Algarve era muito elogiada, pela pouca acidez, por ser muito sumarenta, por ser aquela laranja amadurecida pelo sol, com aquele lado mais quente. Os citrinos são das matérias mais alegres e mais bem-dispostas da perfumaria, mas também das mais difíceis de trabalhar sem que se evidenciem muito. Mas eu quis trabalhar esse lado do puro, para que quando sentimos o perfume sejamos remetidos para um pomar extenso de laranjas ao final do dia, com aquela luz dourada. Por isso, o nome do perfume. Uma referência indireta a Portugal, mas também porque laranja em grego se diz portokáli. Mas depois, tem o lado mais sofisticado da rosa branca. É das rosas mais caras de se produzir, por ser também a menos comum. É a mulher sofisticada e elegante atrás de um citrino que está de peito cheio a querer mostrar-se cheio de vontade. Depois, uma madeira de cedro, extremamente aromática a fechar o perfume. Ajuda a dar consistência, segurança e alguma maturidade, já que os citrinos têm este lado um bocadinho teen.

As cinco notas principais de Acqua di Portokále, o primeiro perfume de Lourenço Lucena ©HENRIQUE CASINHAS/OBSERVADOR

HENRIQUE CASINHAS/OBSERVADOR

E demorou muito tempo a fazer o perfume?
Foram oito meses, mas oito meses tranquilos. Como eu disse, isto não era uma obsessão para mim e há cerca de um ano comecei a achar que podia acontecer agora. Fui trabalhando, sem pressão. Pegava na composição, largava, voltava a pegar.

Tem ingredientes portugueses?
Infelizmente, não. A produção, sim. Eu quis fazer tudo em Portugal, mas o concentrado foi feito em Espanha. Tudo o resto, a diluição em água e álcool, a maceração, a diluição em função do grau de concentração e o enfrascamento, foi feito em Portugal, incluindo o frasco, pintado integralmente a preto e depois serigrafado com a cor da marca.

Como é que se é perfumista a tempo inteiro em Portugal?
Não sei, porque eu não sou. Já é possível ser, simplesmente tenho várias paixões na vida. Acredito que, um dia, vou dedicar-me inteiramente aos perfumes, mas neste momento eles ocupam cerca de 50 por cento do meu tempo. Existem aqui mais duas áreas, as marcas e a arte contemporânea. Hoje em dia, tenho de selecionar os projetos que faço. A customização de perfumes continua a ser a área que ocupa mais o meu tempo. Recentemente, tenho feito uma série de perfumes corporativos, da Deloitte ao Memmo Príncipe Real.

"Quis pegar na laranja como símbolo de Portugal. Poucas pessoas sabem, mas, durante muitos anos, Portugal produziu laranjas para a perfumaria, laranjas do Algarve."

Até porque tem estado envolvido em projetos que vão além do simples frasco de perfume.
Sim. Faço os jantares perfumados com outra marca que eu criei, o Mr Smell. Um amigo meu até já disse que eu era um sentertainer, um entertainer dos sentidos. Foi uma forma que eu encontrei de partilhar esta paixão pelos perfumes e de estimular os outros a descobrirem outras coisas. Depois, há o lado das masterclasses e dos workshops que continuo a dar, seja para grupos mais abertos ou mais fechados.

Foi um lançamento pontual ou vê-se daqui para a frente a apresentar um perfume por ano, por exemplo?
Já estou cheio de ideias. À partida, um por ano é a cadência, embora tenha já dois na minha cabeça muito evidentes. Não são propriamente derivações do Acqua di Portokáli, mas têm este como ponto de partida para depois ganharem outras roupagens. Não são novas versões do mesmo perfume como é muito hábito na indústria da perfumaria. Quando uma fórmula é bem-sucedida, estica-se a massa, mas nenhum dos perfumes sai tão bom como o primeiro, salvo raríssimas exceções. O mais certo é que os próximos nem sequer tenham uma referência no nome ao primeiro perfume.

Já agora, qual é o seu perfil olfativo?
É muito complexo e um bocado irritante. Eu não tenho dogmas. Adoro perfumes florais, gosto de perfumes cheios, ricos e intensos, que se afirmem. Gosto de perfumes que provoquem uma reação, que estimulem o desejo. Há algumas famílias de matérias-primas que gosto de usar nos perfumes que faço para mim. Gourmand, especiarias, todas as notas que apeteça trincar. Acho que um perfume também tem essa componente física, sensual, sexual, erótica. Afirma-nos e faz-nos desencadear desejo no outro. Não quer dizer que ponha um perfume à espera que alguém me venha dar dentadas. Pode acontecer, o que não deixa de ser divertido. Um perfume tem de ter um quê de provocação e eu considero-me um provocador nato.

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