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Um pescador, uma imigrante, um agricultor e um padre. As histórias de quatro vidas suspensas pelo Brexit

No meio do caos em Westminster, sobra incerteza para a maioria dos britânicos. Como será o dia depois da saída da UE? Um pescador, uma imigrante, um agricultor e um padre partilham as suas angústias.

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“Incerteza”, “preocupação”, “medo”. São algumas das palavras que saem da boca de Joseph, Alistair, Alena e Kevin, nos telefonemas que mantiveram com o Observador nas últimas semanas. Todos eles vivem atualmente no Reino Unido e todos — uns por causa do seu trabalho, outros pelas características da sua comunidade — podem vir a sentir na pele os efeitos da saída do Reino Unido da União Europeia (UE). Na terça-feira, o parlamento britânico vota a proposta da primeira-ministra, Theresa May, de acordo para o Brexit. Enquanto em Londres se discute se a proposta de acordo é boa o suficiente para entrar com calma num período de transição ou se é melhor dar um salto no escuro que é um Brexit sem acordo, os britânicos (e europeus) comuns vão matutando sobre as suas vidas — incluindo estes quatro.

Dois não votaram no referendo (uma porque não podia, um porque se absteve), os outros preferiram dizer Remain (Ficar). Mesmo esses, contudo, sentem-se abalados pelo vendaval político que se seguiu à consulta popular. Um admite que os argumentos dos que preferiram o Leave (Sair) também têm peso; o outro resignou-se a apoiar o acordo de Theresa May e fala na “ansiedade” em que Westminster mergulhou por estar disposto a chumbá-lo.

Numa coisa todos concordam: quer seja aprovado este acordo, quer o Reino Unido saia “à bruta”, as consequências são imprevisíveis. Estes quatro residentes, habitantes de zonas diferentes do país, sentem-se todos presos no limbo. Diariamente, acompanham as decisões políticas com perplexidade. E, mesmo assim, são cidadãos interessados e todos eles participam em organizações para tentar influenciar a política do país de alguma forma. Uma tentativa para repor o controlo sobre as suas vidas, talvez.

Enquanto, em Westminster, Governo e deputados se entretêm em avanços e recuos, movimentações de bastidores e pouca clareza, o dia-a-dia daqueles que vivem no país — britânicos e não só — vai sendo marcado pela dúvida. Polícias, médicos, pescadores, estudantes, britânicos a trabalhar nas instituições europeias, agricultores, cidadãos europeus, ingleses que moram em Gibraltar ou que viajam com frequência para Dublin, todos eles se interrogam: Continuarei a poder trabalhar com as instituições europeias? O meu negócio será afetado? Serei deportado? Conseguirei atravessar regularmente a fronteira? Que impactos terá isto na minha vida?

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Estas são algumas das interrogações de muitos britânicos e não só — incluindo destes quatro entrevistados. Sabem que o seu futuro pode vir a ser marcado por grandes dificuldades. Mas, por enquanto, ele é apenas um grande ponto de interrogação.

Joseph McVeigh, pároco de 73 anos em Enniskillen (Irlanda do Norte)

“Pensávamos que este problema tinha sido resolvido em 1998 com o Acordo de Sexta-Feira Santa. Vinte anos depois, as coisas estavam a começar a ficar normais: já se atravessava regularmente a fronteira, a economia estava a melhorar… E, de repente, vindo do nada, aparece esta coisa, este Brexit.”

Joseph McVeigh é padre há 45 anos. A sua diocese de Kilmore tem sede em Calvan, na República da Irlanda (a sul). Mas McVeigh é, há seis anos, um dos párocos de Enniskillen, no lado norte da fronteira. A confusão explica-se facilmente: aquando da separação das duas Irlandas, vários condados pertencentes à diocese ficaram de lados opostos da fronteira. Isso significa que o padre Joseph dá missa no norte, mas viaja frequentemente para sul, seja para se reunir com os responsáveis da diocese em Calan, seja para visitar família em Donegal. Por vezes, vai até Dublin, para visitar amigos. “Estou sempre na estrada”, resume.

O condado de Fermanagh, onde Enniskillen está incluído, é um dos mais pobres das duas Irlandas — um padrão semelhante ao das outras comunidades perto da fronteira, tanto no norte como no sul. Depende mais da agricultura do que da indústria e apoia-se economicamente no aumento do turismo, que tem dado bons sinais. “Mas não há muitas oportunidades de trabalho e os jovens acabam por sair daqui. É triste”, lamenta-se Joseph. “Muitas pessoas arranjam trabalho do outro lado da fronteira. É o caso do meu sobrinho, por exemplo, que é professor no sul e atravessa a fronteira todos os dias para ir trabalhar.”

Ao todo, milhares de pessoas atravessam diariamente a fronteira quase invisível, apenas marcada por sinais à beira da estrada, que separa as duas Irlandas. Segundo dados do Governo da Irlanda do Norte, serão entre 23 a 29 mil pessoas. A grande maioria trabalha “do outro lado”, mas há também estudantes, sobretudo no ensino superior.

Para além da livre circulação de pessoas, permitida até agora graças aos Acordos de Sexta Feira Santa e às regras da UE, há também a circulação de bens — e o seu impacto na economia local é tremendo. Cerca de 31% das exportações da Irlanda do Norte é para a República da Irlanda, que, por sua vez, exporta 27% para o norte. Basta relembrar que grande parte do trigo semeado ou das galinhas criadas no sul são depois processados em fábricas do outro lado da fronteira. Ou, num exemplo ainda mais concreto, como a cerveja Guinness é fermentada em Dublin, mas é engarrafada na Irlanda do Norte.

O padre McVeigh (2º a contar da esquerda) numa das ações de protesto da Border Communities Against Brexit (D.R.)

O impacto económico do Brexit na região pode ser de tal forma pesado que, por exemplo, alguns agricultores de Enniskillen já alertaram para o possível desaparecimento da sua indústria se não houver acordo de saída. “O DUP está a colocar-se num beco sem saída. Estão a fazer do Governo refém”, declarou um empresário local em novembro. Em causa está o finca pé do partido norte-irlandês unionista contra o backstop, a solução encontrada para prevenir uma nova fronteira entre as Irlandas. Evitar o regresso da fronteira física é a principal preocupação da maioria dos habitantes da Irlanda do Norte, sobretudo nos locais perto da fronteira. E o partido sabe bem qual é o sentimento por ali: a líder do DUP, Arlene Foster, é nada mais nada menos do que de Enniskillen.

Para o padre McVeigh, a explicação para esta posição é só uma: “Eles estão muito ligados emocionalmente ao Reino Unido e, por vezes, as suas emoções sobrepõem-se à racionalidade.” Emoção é coisa que não falta quando o tema é a relação entre as duas Irlandas e o papel da fronteira. E não é para menos: basta recuar 30 anos para relembrar o dia em que 12 pessoas morreram num atentado à bomba em Enniskillen. Os Troubles, o período de conflito entre unionistas e separatistas na Irlanda do Norte, ficaram marcados pelos atentados de forças paramilitares, que mataram sobretudo civis. A ferida, essa, ainda está bem viva na memória de todos os que ali vivem — e o regresso a uma fronteira física representa, no imaginário coletivo dos irlandeses de norte e sul, o regresso a um passado de violência e de tensão submersa que pode vir ao de cima se for aceso um novo rastilho de pólvora.

“Nós temos medo de regressar àquilo, de regressar aos Troubles. É um medo... Foram 35 anos de tempos muito amargos. Todos temos memórias do que aconteceu no passado e não queremos regressar à violência na fronteira. Iria destruir-nos, logo agora que estamos a começar a levantar-nos.”
Joseph McVeigh

“Eu vivi os Troubles. Vi os postos fronteiriços, o arame farpado, os soldados. Ninguém quer regressar a isso”, suspira o padre McVeigh. O seu primo também morreu num dos ataques desse período. O arame farpado esteve ali desde 1920, quando o Governo britânico decidiu separar os condados de maioria protestante do norte relativamente ao sul católico. A fronteira tornou-se mais real em 1949, quando a Irlanda se tornou um país independente do Reino. E a divisão ali ficou, marcada pelo sangue derramado pela violência sectária, até à assinatura dos Acordos de Paz de Sexta-Feira Santa, em 1998.

“Nós temos medo de regressar àquilo, de regressar aos Troubles. É um medo… Foram 35 anos de tempos muito amargos”, confessa Joseph. “Todos temos memórias do que aconteceu no passado e não queremos regressar à violência na fronteira. Iria destruir-nos, logo agora que estamos a começar a levantar-nos.”

Soldado britânico durante os Troubles em Belfast, 1972 (Evening Standard/Getty Images)

Para o padre McVeigh, que votou a favor da permanência na União Europeia e que sonha com, um dia, ver as duas Irlandas unidas num só país, a solução passa agora por aceitar o resultado do referendo e assegurar que não há fronteira física a passar perto de Enniskillen. Por isso, tem trabalhado junto da organização Border Communities Against Brexit. Sabe, no entanto, que o Brexit está aí à porta e que tem de respeitar o voto dos compatriotas. Por isso, gostaria de ver o acordo proposto por Theresa May aprovado, já que considera que a solução do backstop resolve o problema que mais o atormenta. Mas tem pouca esperança: “Ela não vai sobreviver a isto”, diz.

“Este acordo parece ser a melhor oferta em cima da mesa e a UE ficou do nosso lado na questão da fronteira. [Jeremy] Corbyn, por alguma estranha razão, opõe-se”, lamenta, referindo-se à posição do líder da oposição. “O Brexit tem sido muito estranho. Vai demorar anos até a política regressar às linhas antigas”, reflete o pároco. O desânimo, contudo, não o domina: “Vamos conseguir mantermo-nos firmes, preservar a nossa economia, a nossa dignidade e a nossa independência.” Apesar de todas as dificuldades, na Irlanda do Norte ainda há fé.

Alistair Sinclair, pescador de 64 anos em Loch Fyne (Escócia)

“Se não houver acordo para o Brexit, no dia 30 de março não haverá razões para sairmos para o mar.” Alistair Sinclair tem 64 anos e é pescador há 35. Durante anos, a sua rotina foi sempre a mesma: acordar por volta das 5h da manhã, pegar no barco com os seus colegas e só regressar já depois das seis da tarde. Há dois anos que já não vai para o mar, por causa de um acidente de carro que o deixou com algumas mazelas. Reformou-se da pesca — mas manteve um barco que emprega vários jovens. “Os meus rapazes estão na casa dos 20 e são uma equipa forte. Mas preocupam-se com o futuro. O que vai ser deles?”, questiona-se.

Este pescador reformado vive em Loch Fyne, na Escócia. A comunidade de pescadores locais pesca em águas abrigadas, bem longe do alto mar. A sua técnica é antiga e artesanal: creel fishing, ou seja, um tipo de pesca em que se usam covos (uma espécie de gaiolas) para apanhar marisco. É um modo de vida fisicamente exigente — e também está em risco. Alistair teme que o Brexit o ameace ainda mais. “A maior parte do nosso produto chega ainda vivo à Europa. Se tivermos atrasos na fronteira por causa do maior controlo alfandegário, o produto pode chegar morto ao destino. E ninguém quer comprar lagostas ou vieiras mortas! Estamos muito, muito preocupados”, explica. “Se encontrarmos mercados alternativos ao europeu, teremos de optar por vender o marisco congelado, e a qualidade não é tão boa…”

Atualmente, 80% do que os pescadores de covos na Escócia pescam é exportado para outros países europeus. “É a nossa sobrevivência que está em risco. Se perdemos o nosso mercado, vamos ficar numa posição em que teremos barcos que não servem para nada e que ninguém quer. Seria uma catástrofe económica.” O cenário, diz Alistair, é “negro” para si e para os seus homens.

“As pessoas da Escócia votaram para ficar na UE, os pescadores de pequena escala na Escócia também. Foram os votos ingleses que nos levaram a sair. O resultado aqui foi de 62% para Ficar. Isso diz tudo, não diz?”
Alistair Sinclair

Nem todos os pescadores do Reino Unido, contudo, pensam assim. Dias antes do referendo que ditou a saída do país da União Europeia, um estudo da Universidade de Aberdeen dava conta que 92% dos pescadores britânicos eram a favor do Brexit. As quotas pesqueiras impostas pela UE surgiam como um obstáculo que, na visão da maioria do setor, asfixiava a pesca britânica. A solução proposta por eles é apenas uma: “retomar o controlo” das águas do Reino Unido e, esperam, conseguir assim melhorias económicas.

Os impactos que uma saída da UE pode ter nos pescadores do Reino Unido ainda estão por avaliar. É certo que Londres deixará de ter de respeitar as quotas europeias, mas também é verdade que os países europeus absorvem cerca de metade do produto da pesca britânica. Alistair não põe em causa que o Brexit talvez possa favorecer os seus colegas que pescam em alto-mar. O problema, explica, é que tem quase a certeza que o processo irá matar a sua forma de vida. “Os pescadores de alto-mar, os armadores dos grandes barcos, que pescam o bacalhau e a pescada, esses votaram pelo Brexit, sim. Porque veem isto como uma oportunidade para eles, uma forma de poderem fazer mais dinheiro. Mas a nossa indústria é mais do que isso: é uma indústria que cria empregos na comunidade.”

Segundo a Greenpeace, apenas três empresas no Reino Unido dominam quase dois terços das quotas de pesca. De acordo com o “livro branco” preparado pelo ministério do Ambiente britânico, a saída da UE pode bem representar “um mar de oportunidades” para os pescadores do país. Estes, contudo, terão de continuar a respeitar quotas de pesca, desta vez impostas pelo Governo.

Alistair e os seus “rapazes” fazem parte do grupo de pescadores de pequena escala que têm direito a uma fatia muito pequena do bolo da pesca britânica. É por isso, defende o escocês, que não têm sido tidos em conta durante todo o processo que levou ao Brexit e depois dele. “Não votei no referendo”, admite o pescador. Mas e se houvesse uma nova votação? “Ainda no outro dia me foi feita essa pergunta por um responsável do Governo escocês para o setor das pescas”, conta, referindo-se a uma reunião que teve como representante da Federação de Pescadores de Covos da Escócia. “Eu respondi: ‘Da outra vez não votei porque senti que não tinha informação suficiente para tomar uma decisão em consciência. Agora, votaria Remain.’ Os tories não estão a proteger-nos, eles só se preocupam com os grandes armadores.

Lewis, um dos tripulantes da equipa de Alistair Sinclair, no Loch Fyne (D.R.)

Alistair

A revolta de Alistair com o poder político é muita e não se resume aos tories. “O Governo inglês não respeita o povo escocês”, acusa. “Sempre fomos o primo pobre do Reino Unido.” É por essa razão que, num outro referendo, não teve dúvidas: à proposta de independência da Escócia votou “Sim” e espera um dia poder voltar a fazê-lo, desta vez com a vitória estando do seu lado. “As pessoas da Escócia votaram para ficar na UE, os pescadores de pequena escala na Escócia também. Foram os votos ingleses que nos levaram a sair. O resultado aqui foi de 62% para Ficar. Isso diz tudo, não diz?”

Em Londres, continua a incerteza face ao acordo proposto por Theresa May. E Alistair já não sente grande esperança de que os britânicos possam sair com um acordo que proteja os interesses de pescadores como os de Loch Fyne. O futuro, diz, será muito “triste”: “Os jovens vão sair daqui por falta de emprego. E isto vai morrer”, sentencia. “Eu já não pesco, lá me vou arranjando. Tenho 64 anos e sou muito feliz com a minha mulher. É com os jovens que me preocupo, sabe? O que vai ser deles?”, pergunta.

Alena Useinovic, alemã de 36 anos e residente em Birmingham (Inglaterra)

“Eu estava na Alemanha, onde nasci, no dia do referendo. Não acreditava que o ‘Sair’ ia ganhar. Vi as notícias e só pensava ‘é horrível’. No dia seguinte, regressei ao Reino Unido. Lembro-me de estar numa fila no aeroporto e de ver um grupo de ingleses mais velhos, que vinham de um voo de um daqueles destinos de férias no sul da Europa. Um deles vinha a dizer ‘ganhámos!’. Lembro-me de ter pensado: ‘Nenhum deles me quer aqui’. E, tenho de admitir, senti-me muito zangada nesse momento.

Alena foi pela primeira vez ao Reino Unido há 20 anos. Chegou para estudar aos 16, vinda da Alemanha, e ali ficou até fazer 18. A experiência formativa foi tão boa que, quando chegou aos 30, tomou uma decisão: regressar ao país para viver de forma permanente. Pediu então à sua empresa, uma multinacional automóvel onde trabalha como vice-presidente de vendas, para poder ser transferida para o país. Passou seis anos felizes em Londres e, mais recentemente, em Birmingham: “Adaptei-me muito facilmente. Comprei uma casa, conheci o meu namorado… Tinha uma vida. E, depois, aconteceu o Brexit.”

Esta alemã é uma dos 3,7 milhões de cidadãos de países da UE que vivem atualmente no Reino Unido e que não sabem bem como será o dia a seguir a 29 de março de 2019 (dia oficial do Brexit) — incluindo cerca de 400 mil portugueses. O sistema criado pelo Governo britânico prevê que aqueles que, até 29 de março, estejam a viver no país há mais de cinco anos, possam candidatar-se até ao final de 2020 a um regime de “residente permanente”. Mas é claro que nem tudo é assim tão simples: “Quando abriram as candidaturas, comecei a ver a documentação toda e a perceber como era complicado”, conta Alena. “Eu trabalhei todos estes anos para a mesma empresa e tenho todas as minhas declarações de impostos, mas isso não chega. Paguei mais em impostos a este país do que um deputado recebe num ano, mas neste momento isso não significa nada.

Alena numa manifestação pelos direitos dos cidadãos europeus a viver no Reino Unido (D.R.)

Para além dos constrangimentos práticos, como as falhas de software — a app que verifica a documentação só funciona com equipamentos que usem o sistema Android, por exemplo —, há muitos mais obstáculos a enfrentar para conseguir obter o estatuto de residente permanente. “Eu tenho um número de Segurança Social, de utente do SNS, etc., mas, neste país, isso não chega, tenho de provar que existo. E eu sou um caso simples: como se resolve o problema de uma amiga minha holandesa, que está aqui há 30 anos, mas, como não trabalha e está em casa a cuidar dos filhos, não pode pedir o estatuto de residente permanente? O que é que se faz num caso destes?”, questiona Alena.

A holandesa não é a única dos amigos estrangeiros de Alena a enfrentar dificuldades. Só no seu círculo de conhecidos, há ainda o casal de marido britânico e mulher alemã cujos filhos — que nunca viveram fora do Reino Unido — terão agora de resolver a sua situação legal, por terem apenas cidadania alemã (a Alemanha não permite a existência de dupla nacionalidade). “Eles não entendem o quão importantes somos para o país. O quanto contribuímos, o quanto as nossas famílias estão integradas…”, desabafa Alena. “Sentimo-nos rejeitados. Temos medo e raiva. Acho até que muitos de nós já passaram da fase do medo e da desilusão para a raiva e para a zanga. Muitos já saíram do país, viraram as costas a isto.”

A livre circulação de pessoas permitida pela UE torna difícil ter uma noção de quantos cidadãos europeus decidiram sair do Reino Unido desde que o Brexit foi aprovado em referendo. Contudo, segundo dados reunidos pelo grupo Best for Britain, o número de demissões de cidadãos europeus de organismos públicos britânicos, como hospitais ou universidades, aumentou 15% entre 2016 e 2017.

Alena crê que, em parte, tal se deve ao ambiente que se vive no país, onde os incidentes de xenofobia se tornaram mais frequentes. “É claro que há uma divisão, há pessoas que nunca quiseram isto e que nos apoiam. Mas há outros que nos veem como uma massa despersonalizada e que não têm qualquer problema em dizer-nos para voltarmos ‘para a nossa terra’. Já me disseram isso”, conta a alemã. “A Grã-Bretanha é um país muito multicultural e agora, desde o Brexit, este tipo de comportamento normalizou-se. Na Alemanha, talvez devido à nossa história com o racismo, as pessoas reagem quando veem coisas dessas. Aqui não, as pessoas ficam na sua.”

“Tive pesadelos em que sonhava que estava a ser deportada e acordava a chorar na cama. Nunca pensei que iria passar por isto. Agora, serei de facto deportada? É altamente improvável. Mas a possibilidade está lá. Não estou a ser dramática, estes são medos reais. Não se pode escrever um acordo de saída e depois dizer simplesmente ‘pronto, está feito’.”
Alena Useinovic

O facto de esse sentimento ser muitas vezes promovido pelos próprios políticos — ainda há alguns meses a primeira-ministra Theresa May disse que, com este acordo, os europeus deixariam de poder “passar à frente na fila” da imigração —, não ajuda a aplacar os receios destes cidadãos. “Sinto que não sou valorizada o suficiente na sociedade para poder expressar uma opinião política. Se esse é o caso, para quê viver aqui? Mais vale viver na Arábia Saudita”, atira a alemã.

A frustração e o desamparo levaram Alena a juntar-se a um projeto onde pudesse contactar com outros cidadãos europeus que vivem no Reino Unido. Foi assim que se juntou ao In Limbo, um projeto que começou com uma página de Facebook no rescaldo do referendo, onde eram partilhados os testemunhos de vários europeus a viverem no país. Os casos “de partir o coração”, como diz, foram tantos que o projeto já se transformou em livro — um com testemunhos de europeus no Reino Unido, outro com testemunhos de britânicos na UE. “Quero muito chamar a atenção para isto, porque nunca se ouve as histórias pessoais neste debate”, explica Alena. “Tive pesadelos em que sonhava que estava a ser deportada e acordava a chorar na cama. Nunca pensei que iria passar por isto. Agora, serei de facto deportada? É altamente improvável. Mas a possibilidade está lá. Não estou a ser dramática, estes são medos reais. Não se pode escrever um acordo de saída e depois dizer simplesmente ‘pronto, está feito’.”

Alena pode não vir a ser deportada, mas tal não significa necessariamente que ficará no Reino Unido para o resto da vida. A indústria automóvel, da qual faz parte, tem sido um dos setores empresariais mais críticos do Brexit. Três quartos das empresas automóveis no país temem que um cenário de saída sem acordo possa afetar a sua viabilidade económica. Empresas como a BMW e a Jaguar já falaram abertamente do impacto que a saída pode ter no setor e avisam que podem encerrar fábricas e despedir pessoas. Na empresa de Alena, duas fábricas estão a ser encerradas, em parte por causa do Brexit. “Suspeito que, se houver uma saída sem acordo ou se acabarmos com um acordo pior do que este, a indústria automóvel vai acabar por abandonar o Reino Unido. Não vai ser imediato, mas vai acabar por acontecer”, prevê a diretora de vendas da área.

Alena com o namorado. A alemã vive no Reino Unido há seis anos (D.R.)

Com ou sem acordo, Alena começa a ponderar a hipótese de abandonar o Reino Unido e regressar ao seu país. “O meu namorado não fala alemão, por isso… É uma decisão muito difícil de tomar. Ainda não tenho 100% de certezas se fico ou não. Mas eu não sou um dos casos piores, sabe?”, diz, relembrando que a sua empresa não terá dificuldades em recolocá-la noutro sítio. “Eu sei que tenho um emprego na Alemanha à minha espera, se precisar. Mas quando se é uma mãe alemã, com um marido britânico que não fala nenhuma língua estrangeira, é muito mais difícil abandonar o país.” E enquanto a decisão de ficar ou partir não é tomada, Alena ali permanecerá. No limbo.

Kevin Harrison, 50 anos, feitor numa exploração agrícola em Bath (Inglaterra)

Para Kevin Harrison, só há uma palavra a utilizar quando se fala em Brexit: “Incerteza”. “Ninguém sabe o que vai acontecer. Talvez em breve possamos saber, mas tenho um pressentimento que não”, resume este feitor de uma exploração agrícola do sudoeste britânico.

“Toda a vida trabalhei com ovelhas e não me vejo a fazer outra coisa. Não há dia em que eu acorde e não queira ir trabalhar. Vou para a quinta, tomo conta das ovelhas e pronto.” Mas não só de trabalho se faz o dia-a-dia de Kevin: “Passo algum tempo na Associação Nacional de Produtores de Ovelhas, para tentar representar os trabalhadores das quintas e fazer com que eles sejam ouvidos. Sou um homem de família, tenho dois filhos já na universidade. E, de vez em quando, toco saxofone para me distrair. Sou um tipo normal, a tentar ganhar o meu sustento no campo.”

O “tipo normal” tem uma vida feliz, mas teme que, com o Brexit, venham aí tempos difíceis para a empresa em que trabalha. A sua quinta tem cerca de mil ovelhas. Da sua produção de carne de borrego, 35% vai para a exportação; desse bolo, 65% vai para a Europa. “Dependemos muito dessa exportação, sobretudo do comércio com França. Sem isso, vai ser complicado”, explica o feitor. “Os produtores não vão querer continuar a alimentar ovelhas se elas já não tiverem valor. Isso também vai ter efeitos na reprodução dos animais. O setor de produção de borrego é um dos que podem ser mais afetados e isto sem ter em conta os outros efeitos que o Brexit pode ter na economia. Em que ponto vai estar a libra nessa altura? Isso vai influenciar a nossa situação?”

O setor de produção de carne de borrego exporta muita da sua produção para países europeus. No País de Gales, o valor chega aos 90% (Jeff J Mitchell/Getty Images)

Getty Images

A exploração agrícola em que Kevin trabalha, contudo, nem é das que pode sofrer mais com os impactos de uma saída da UE — basta recordar que, só no País de Gales, 90% da carne de borrego ali produzida é exportada para países europeus. Em caso de uma saída sem acordo, o setor ovino pode ser dos mais afetados: as tarifas sobre as exportações podem mesmo chegar aos 60%, segundo a Farmers Weekly.

A saída da UE significa que o Reino Unido deixará de estar incluído na Política Agrícola Comum (PAC) e, com isso, perderá direito aos mais de três mil milhões de euros por ano, distribuídos aos agricultores britânicos. São cerca de duas mil empresas agrícolas que ficam sem financiamento europeu, podendo levar à falência de uma em cada quatro quintas. A solução encontrada pelo Governo britânico foi a de criar um novo sistema de apoios, financiado pelo erário público, que substituirá o financiamento da PAC. Esses apoios, contudo, estarão ligados a exigências ambientais, com os agricultores a terem de apresentar projetos que protejam habitats naturais e que melhorem a qualidade do ar e da água, por exemplo.

O sistema traz uma alternativa à injeção de dinheiro da PAC, é certo. Mas os agricultores como Kevin têm algum receio do que possa acontecer com as novas regras: “A linha europeia apoiava muito mais a produção alimentar, por exemplo. Agora, corremos o risco de que o Governo considere as questões ambientais mais importantes do que a produção de carne. Plantar árvores é muito importante, mas não nos podemos esquecer do que é que ergueu este país: a agricultura.

Kevin Harrison e as ovelhas que cria na quinta onde trabalha, em Bath (D.R.)

No referendo sobre o Brexit, as divisões entre as regiões urbanas e rurais tornaram-se ainda mais marcadas, com as grandes cidades a votarem fortemente a favor da permanência da UE, mas isoladas num país que, aparte a Escócia, era a favor da saída nas suas zonas rurais. Nas Midlands e no sul da Inglaterra, onde se situa Bath, votou-se pela saída (com exceção de Londres). Muitos agricultores acharam que o Brexit podia ser bom para o seu setor — agora, contudo, começam a ter dúvidas e a reduzir o seu investimento.

Kevin diz que compreende os dois lados: “Eu votei para ficar e votaria o mesmo se o referendo fosse agora, mas quando o resultado foi conhecido eu disse ‘OK, vamos a isso’”, explica. “Votei para ficar, mas há coisas na UE de que não gosto, como o excesso de regulação. No caso da produção de borrego, basta pormos uma etiqueta errada sem querer e perdemos logo 3% do nosso subsídio. Numa quinta grande, isso é imenso! É muito frustrante.”

De tal forma que, dois anos depois do Brexit, este agricultor diz sentir-se dominado pela confusão e não tem vergonha de admitir que já não tem certezas de nada. “Acho que o melhor cenário seria aprovarmos o acordo que está em cima da mesa, mas aquilo que está em cima da mesa é uma mixórdia para tentar agradar a todos. Há uma parte de mim que diz ‘saiam, não se deixem raptar pela UE’. Mas sei que o prejuízo para o setor ovino seria devastador”, concede.

"Os políticos têm de ganhar tomates… Há muitas manobras motivadas por questões pessoais, há pessoas que se preocupam mais com a sua carreira política do que com o país.”
Kevin Harrison

Se voltasse a haver referendo, crê que, desta vez, o ‘Sair’ não ganharia. “Disseram-se muitas coisas na campanha que não deviam ter sido ditas. Puseram o carro à frente dos bois, deviam ter estado a preparar-se em vez de largar soundbytes”, acusa Kevin. “Mas aconteceu e as pessoas votaram. Só tenho medo de eles estejam a fazer um acordo só por fazer, só para encerrar o assunto. E que, no final, seja um mau acordo que nos deixa pior.”

No meio da confusão e da incerteza, Kevin — como muitos outros por todo o país —, sente-se irritado contra a classe política. Não consegue acompanhar as mudanças que acontecem à velocidade da luz, os avanços e recuos, as traições e apoios. Não compreende a divisão dentro do Partido Conservador, nem a oposição pouco clara do Labour. “Desculpe a minha linguagem, mas os políticos têm de ganhar tomates…”, queixa-se. “Há muitas manobras motivadas por questões pessoais, há pessoas que se preocupam mais com a sua carreira política do que com o país.”

Em Westminster, o rebuliço promete continuar. A proposta de acordo de Theresa May, negociada com os europeus, será votada no Parlamento esta terça-feira, mas o mais provável é que seja chumbada tanto pela oposição como por alguns dos seus parceiros de Governo. O que vem depois, ninguém sabe. Kevin continuará a ouvir as notícias no seu pequeno rádio, enquanto alimenta as ovelhas. Mas a sensação de que não compreende nada do que se está a passar — e de que, no final, ele é que pode sair prejudicado — continuará a existir. “Acho que estamos todos… Conhece a expressão inglesa punch-drunk? Estamos todos meio bêbados com esta confusão toda.”

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