A Covid-19 e outros vírus mais políticos trouxeram à baila o tema da garantia de um rendimento mínimo a todos os cidadãos, o qual tem sido, aliás, recorrente nas discussões contemporâneas sobre políticas sociais.
A UE reconheceu em 1992 o imperativo de se assegurar a todas as pessoas legalmente residentes no espaço comunitário um patamar mínimo de recursos e prestações conformes à noção europeia de dignidade humana, combatendo a pobreza e a exclusão social. O assunto foi objeto de uma recomendação do Conselho Europeu e remetido para a jurisdição dos Estados-membros, seguindo o princípio da subsidiariedade aplicado ao objetivo de convergência dos níveis de proteção social garantidos na União. Portugal observou a recomendação europeia, tendo instituído o Rendimento Mínimo Garantido (RMG) —em 1996 rebatizado como Rendimento Social de Inserção (RSI).
A partir de 2005, as políticas sociais foram ganhando maior relevo na UE, com o chamado Método Aberto de Coordenação (Social). Este é um quadro europeu de definição, implementação e avaliação das políticas sociais focado na erradicação da pobreza e da exclusão social, na garantia de sistemas de pensões adequadas e sustentáveis e no acesso a cuidados de saúde e continuados de qualidade e sustentáveis. No entanto, só em 2017 a UE deu um novo e importante passo no sentido da maior convergência das políticas sociais dos Estados-membros: o Pilar Europeu dos Direitos Sociais, que foi proclamado solenemente, visando a construção de um modelo de crescimento mais inclusivo e sustentável para a Europa. Concebido especificamente para a área do Euro, embora dirigido a todos os Estados-membros, entre os 20 princípios desta proclamação está o que estipula o direito a prestações de “rendimento mínimo” adequadas, que garantam “um nível de vida digno em todas as fases da vida, bem como um acesso eficaz a bens e serviços de apoio” a quem não disponha de recursos suficientes.
Ora, a recente tomada de posição de três ministros das áreas sociais dos governos de Espanha, Itália e Portugal em prol de um “sistema comum de rendimento mínimo que permita combater a pobreza e a exclusão social numa perspetiva ambiciosa e integrada” inscreve-se neste mesmo princípio do Pilar Europeu. A novidade da posição é a de remeter para o nível de responsabilidade europeia a definição mesma dos níveis “adequados” de rendimento mínimo. A iniciativa é liderada pelo Vice-Presidente do Governo de Espanha, Pablo Iglésias, o que tende a radicalizar desde logo o seu significado político e, ao responsabilizar a UE pela fixação do nível de rendimento mínimo de cada país, levanta a suspeita de que deseja remeter para o orçamento comunitário o financiamento da medida. O protagonismo de Iglésias pode deixar os outros subscritores em posição desconfortável arriscando mesmo a irrelevância no contexto atual dos debates da União. No caso de Portugal, onde a experiência de RMG/RSI tem mais de vinte anos e apresenta resultados ambivalentes quanto ao real alcance na redução da pobreza e na inclusão social, ainda mal estudados, teria sido mais avisado recatar a posição do governo, fora de qualquer seguidismo em relação à “gerigonça” espanhola.
Condicionalidade do rendimento mínimo
Foi dos escombros da II Guerra Mundial que emergiu uma das marcas civilizacionais mais distintivas de todo o século XX, que é a ideia de “cidadania social”, assim designada pelo influente sociólogo inglês T.H. Marshall e pré-anunciada pelo famoso Relatório Beveridge, em 1942. Para além dos direitos civis e políticos, passaram a ser reconhecidos pelo Estado os direitos a um módico de bem-estar económico (o fundamento direto da prestação de rendimento mínimo), à partilha da herança social e à fruição dos padrões de vida civilizada prevalecentes na nossa sociedade.
Sendo a cidadania um conceito liberal, no plano político mas não no económico, relativo a direitos e deveres dos indivíduos que decorrem do moderno contrato social, os seus elementos constitutivos são intrinsecamente incondicionais, tanto no que diz respeito ao exercício dos direitos como das obrigações (serviço militar ou pagamento dos imposto, por exemplo). Isto é, o exercício daqueles não está dependente do cumprimento destas e vice-versa.
Para cimentar o estatuto de cidadania nos Estados nacionais, em sociedades que se desejam livres e coesas dificilmente se poderia dispensar o apelo ao vínculo dos seus membros à comunidade nacional, expresso em sentimentos de dever para com esta e de solidariedade recíproca, para lá do contrato social. Tais sentimentos comunitaristas alimentam a própria identidade de cada pessoa e, nessa medida, robustecem o fundamento mesmo do contrato social. Em situação de carência, quando esta é inultrapassável por meios e vontade dos próprios, os cidadãos podem aceder a apoios públicos porque gozam de direitos sociais, visando aqueles preservar o estatuto pleno da cidadania. O reconhecimento dos direitos sociais naquela situação-limite não é mera declaração de intenções na medida em que prevaleça o sentimento de solidariedade entre membros da mesma comunidade, com as obrigações daí decorrentes.
Entre as obrigações de cidadania avulta a de renúncia a uma parte dos recursos de cada um para se poder constituir um fundo coletivo que providenciará o nível mínimo de recursos necessários a uma vida digna a quem esteja em situação de carência inultrapassável. O sentimento de dever relativamente a esta obrigação combina virtuosamente com o fundamento teórico individualista que é elaborado ficcionando a escolha sob véu da ignorância de um seguro que cobre a eventualidade de cair em carência inultrapassável e da qual se ignora a probabilidade de ocorrência.
O acesso aos apoios públicos dirigidos à situação de carência é normalmente sujeito à comprovação por means-testing, isto é, por verificação de uma condição de recursos previamente estipulada — na UE, em média, cerca de 10% dos benefícios pecuniários são sujeitos a condição de recursos, embora haja países em que se ultrapassa os 30% (Irlanda e Dinamarca) e outros que ficam bem abaixo da média, como é o caso de Portugal.
Algumas vozes têm questionado a verificação da condição de recursos, argumentando para o efeito com a incondicionalidade dos direitos sociais da cidadania. O argumento é falacioso, pois confunde a incondicionalidade abstrata do direito a recursos mínimos com a sujeição da atribuição concreta da prestação à verificação das condições materiais e legais de acesso de cada candidato à mesma. A comprovação da carência de recursos é, assim, análoga à verificação da idade e da carreira contributiva de quem pretenda a atribuição de uma pensão de velhice.
Sem embargo, há que reconhecer as notórias falhas de que padece o means-testing, sendo-lhe imputáveis, em particular, as seguintes: complexidade administrativa de fixação do nível mínimo de rendimento por agregado familiar e da comprovação dos rendimentos deste; estigmatização social dos beneficiários; armadilha do benefício, sempre que o aumento de rendimentos de outra origem dentro do agregado familiar possa tornar inelegível o beneficiário ao mesmo tempo que reduziria o rendimento total auferido pelo agregado.
Mais substancial é a crítica a que a atribuição da prestação de rendimento mínimo esteja sujeita a contratualização, vinculando o beneficiário à realização de determinadas ações que visam promover a respetiva inserção social. O RSI português impõe, entre outras, as seguintes obrigações: fornecer à Segurança Social os documentos que comprovem a situação de dificuldade económica; ir às reuniões convocadas pelo Núcleo Local de Inserção, nas quais é definido, assinado e revisto o contrato de inserção; cumprir as obrigações assumidas no contrato de inserção. Aqui sim, existe uma condicionalidade no sentido próprio do termo, ainda que limitada, a qual é frequentemente criticada seja pela infração à regra da incondicionalidade dos direitos sociais, seja pela inoperância prática muitas vezes observada, seja pelo paternalismo que lhe é atribuído.
Qual o fundamento desta a condicionalidade limitada? A experiência de implementação de políticas sociais nos países mais desenvolvidos, desde meados do século XX, postulou um papel integrador à imposição de específicas obrigações como contrapartida da fruição dos apoios públicos, com isso justificando a mitigação da incondicionalidade inerente aos direitos e deveres da cidadania. Consagrou-se um verdadeiro trade-off entre cidadania e integração social, firmando-se a ideia de condicionalidade para atribuição de apoios públicos, através, designadamente, da obrigação de trabalhar e/ou de receber formação capacitante para ingressar no mercado de trabalho ou de ter aproveitamento escolar, no caso dos mais jovens, ou ainda de frequentar programas de inserção social e de reabilitação, noutros casos.
Até hoje, tem sido esta a filosofia dominante na política social europeia do rendimento mínimo. Aceita-se a condicionalidade na atribuição da prestação de rendimento mínimo apesar de beliscar a incondicionalidade dos direitos de cidadania, mas valendo a pena com o que se supõe poder ganhar em integração social dos seus beneficiários. Tudo decorreria afinal do sentimento de dever que move os membros de uma mesma comunidade organizada solidariamente, nos termos de uma ética da responsabilidade. Infelizmente, os resultados de integração social dos beneficiários do rendimento mínimo não têm sido inequívocos, e, por isso, o prestígio da condicionalidade imposta à medida foi sendo ofuscado pelas dúvidas sobre a eficácia do trade-off na redução da pobreza e da exclusão social, o que também terá sido agravado pelo conhecimento de certas manifestações clientelares na administração da medida.
Rendimento para todos e sem condições?
Uma abordagem completamente diversa à da condicionalidade contratual do rendimento mínimo é a do rendimento básico incondicional (RBI), fixado este a partir da identificação do conjunto de necessidades básicas de toda e qualquer pessoa, expressas num valor monetário, e de cuja satisfação depende atingir-se um limiar de vida digna.
A ideia tem larga tradição no pensamento europeu que remonta, pelo menos, à Utopia de Thomas Morus. A referência teórica europeia principal da proposta do RBI, na atualidade, é o filósofo Philippe van Parijs – vejam-se, por exemplo, a sua intervenção de 2013 em defesa do “euro-dividendo”, em Copenhaga, bem como a entrevista ao Observador em 2017.
Há um interesse renovado pelo RBI por parte dos responsáveis de políticas públicas desde a década de 1980, o qual se acentuou muitíssimo neste século. Têm sido desencadeados aguerridos movimentos de opinião nas redes sociais que o tomam por bandeira. A Suíça realizou em 2016 um referendo sobre o tema, tendo sido recusada a introdução do RBI por larga maioria. A Academia tem dado adequada atenção ao tema e personalidades de grande destaque mundial têm apoiado a ideia. Mais importante, têm sido levadas a cabo nos últimos anos algumas experiências-piloto de RBI em países europeus e da América do Norte.
O caso mais conseguido é, talvez, o do Estado americano do Alasca, que criou um Fundo Permanente que centraliza e distribui parte dos rendimentos estatais originados pela exploração do petróleo a todos os residentes, numa base de capitação. O mais recente e escrutinado é a experiência-piloto da Finlândia, entre 2017 e 2019, que envolveu 2000 beneficiários de subsídio de desemprego, entre os 25 e os 58 anos, substituído por um RBI de 560€.
Rendimento universal falhou na Finlândia. Ou será que foi um sucesso?
Em termos gerais, o RBI consiste em pagamentos uniformes aos cidadãos, atribuídos pelo Estado à totalidade ou à fração em idade ativa da população, para que cada pessoa disponha do rendimento básico independentemente da sua carreira contributiva, património pessoal e familiar, rendimentos de outras origens, procura de trabalho ou qualquer outra condição — isto é, sem sujeição a qualquer condicionalidade.
O RBI tem uma atratividade muito grande pois, de algum modo, transcende o quadro ideológico clássico esquerda-direita em políticas sociais, reunindo apoios ecléticos, e sendo numerosos e razoáveis os argumentos a favor do RBI:
- A cobertura é inequivocamente universal, pois todos os cidadãos são naturalmente elegíveis.
- Evitam-se os escolhos colocados pelas novas realidades da economia e dos estatutos atípicos de trabalho, cada vez mais numerosos, que embaraçam a implementação das políticas sociais nos moldes tradicionais – especialmente, o complicado processo de means-testing.
- Os ajustamentos do mercado de trabalho são facilitados pela maior segurança proporcionada às transições laborais, desencadeadas pela digitalização de muitos processos produtivos, mantendo-se ao mesmo tempo os níveis de procura dos consumidores finais.
- Desaparece a estigmatização dos beneficiários de rendimento mínimo, porque todos os cidadãos auferem do RBI.
- Os cidadãos mais frugais podem ficar mais libertos para atividades criativas e empreendedoras.
Mais problemáticos serão a ausência de seletividade que beneficia todos independentemente do seu nível de rendimentos, bem como o possível desincentivo à integração no mercado de trabalho. O primeiro destes argumentos é análogo ao que tem sido usado, por exemplo, contra a gratuitidade universal do nosso Serviço Nacional de Saúde, onde não fez real mossa à consistência deste, nem ao que se alcançou em melhoria do estado sanitário da população. Tão-pouco prejudicou a criação de um setor privado de cuidados de saúde de qualidade.
O segundo argumento parece proceder sobretudo do fascínio pela engenharia social que exibem muitos dos que desenham as políticas sociais, não atingindo verdadeiramente o conceito. Na realidade, são os modelos consumistas de vida que têm sido o principal motor do empenho diligente na atividade económica por parte da maioria dos cidadãos; e o incentivo das remunerações variáveis segundo o desempenho de cada um revelou-se há muito tempo como alavanca poderosa neste domínio. De resto, o Estado manteria outros instrumentos de política pública, em especial as políticas ativas de emprego, com que sempre poderia contrabalançar eventuais desincentivos ao trabalho originados pelo RBI.
Operacionalização impossível?
A maior dificuldade posta à concretização do rendimento incondicional não é de natureza conceptual mas operacional, como se discute a seguir.
Para garantir a estrita neutralidade orçamental na sua implementação, o RBI teria de resultar da substituição do conjunto de benefícios de “rendimento mínimo” atribuídos até aí sob condição de recursos, sendo redistribuído o montante do respetivo financiamento por capitação uniforme a toda a população. O resultado seria, como foi salientado em 2017 pela OCDE, a fixação de um valor do RBI muito abaixo da linha de pobreza. Política e socialmente não seria viável tal opção, a qual prejudicaria afinal os mais pobres para beneficiar pessoas com recursos superiores à linha de pobreza. Para Portugal, pode ver-se as estimativas e a discussão do tema num artigo de Pedro A. Teixeira.
A proposta de RBI só terá pés para andar se houver aumento da despesa pública. Ora, o aumento de despesa pública só pode ser financiado por dois modos, como é de todos conhecido. O primeiro, sem neutralidade orçamental, consiste na emissão de dívida pública, que vai impor custos às gerações vindouras, carecendo de qualquer justificação moral e política, pois não visa a correção das assimetrias atuais de rendimentos. O segundo modo é através do agravamento da carga fiscal, que é muito complicado nos seus efeitos económicos e sociais relativamente à criação de riqueza, ao investimento e ao emprego, ou quanto aos diferentes impostos que poderiam ser manipulados ou qual a recombinação destes menos penalizante (mais os diretos ou mais os indiretos, incidindo mais sobre rendimentos das famílias ou das empresas, etc.?).
Finalmente, deve referir-se que a substituição de prestações de rendimento mínimo atualmente recebidas, quando estas são acompanhadas por outras prestações sociais, umas pecuniárias e outras em espécie, podem criar armadilhas de benefício e agravar assimetrias de rendimentos entre famílias. Por outras palavras, o RBI não poderia ser introduzido sem a profunda revisão de todo o edifício do Estado Social contemporâneo.
Dito isto, devemos arrumar a ideia como mais uma utopia simpática, mas sem viabilidade prática?
Esta posição não me parece adequada nos tempos que correm. As políticas públicas, em particular as sociais e fiscais, vivem há muitos anos aquilo que em gestão se chama a “escalada de comprometimento” na qual, para não se rever o adquirido nas práticas dos últimos anos em matéria de políticas “ativas”, se introduzem ajustamentos sobre ajustamentos às mesmas, inventando novas prestações e critérios de condicionalidade cada vez mais complexos que, estes sim, irão corrigir todos os defeitos dos outros — para se descobrir mais adiante que geraram afinal novas armadilhas de benefício mais do que eliminaram as anteriores.
Precisamos, antes de mais, de estudar de forma completa e rigorosa os resultados que alcançaram todas estas políticas, mais ou menos ativas, e as medidas sujeitas a condição de recursos, especialmente, o RMG/RSI.7 Infelizmente, não será fácil enquanto não forem eliminados os sistemáticos obstáculos postos ao acesso pelos investigadores à informação de base produzida pelo Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, que têm sido regra nos últimos cinco anos. E necessitamos ainda de ensaiar ao nível de projeto e de experiência-piloto novas abordagens à cidadania social, designadamente, na fiscalidade e nos apoios sociais, que alterem a lógica vigente do trade-off cidadania-integração social.
Em 1942, os britânicos, com o céu ainda obscurecido pelas bombas voadoras dos nazis, foram capazes de pensar as bases do Estado Social moderno, que foi edificado nas décadas seguintes. Será irrealista esperar que uma Europa em plena crise de saúde pública e económica seja também ela capaz de pensar, não apenas a mutualização europeia da dívida para acorrer aos dramas imediatos do lockdown, mas também as bases de uma cidadania renovada com menos condicionalidades e em que a ideia do RBI possa ser equacionada sem preconceito nos seus méritos e deméritos?
Fernando Ribeiro Mendes é economista e presidente da Associação Cidadania Social. Foi secretário de Estado da Segurança Social entre 1995 e 1999.