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Ainda hoje, passados quase três anos desde o acidente, Maria não se lembra do mês seguinte àquela manhã em que soube que o filho tinha morrido. Na véspera, Rodrigo tinha estado a jantar com Maria, com o padrasto e os filhos dele. Chegou cedo, ainda saiu para comprar umas pizzas, fizeram uma videochamada para a irmã de Rodrigo, a viver no Reino Unido, dançaram em frente ao ecrã, partilharam histórias e, depois, o jovem professor do primeiro ciclo despediu-se da família: ia passar na casa de um amigo e seguiria direto para Bucelas, onde morava. Tinha de acordar cedo. “Mãe, vou a Campolide ter com o Rolo e, depois, vou para casa porque tenho testes para corrigir.”
Foram as últimas palavras que Maria trocou com o filho. A notícia do que aconteceu a seguir só chegou às primeiras horas de domingo, 7 de março de 2021. “Quando acordei, tinha várias chamadas não atendidas do pai do Rodrigo”, conta Maria ao Observador. A polícia tinha-se deslocado a sua casa, mas a morada estava desatualizada. Acabaram por chegar ao contacto com o pai. Assim que acordou e olhou para o telemóvel, Maria devolveu a chamada. “Não sei bem o que ele me disse, já tentei refazer essa memória… Falou num acidente, estava a chorar muito.” O apagão na sua memória começa nesse momento.
Rodrigo despediu-se do amigo já ao final da noite, pegou no carro e começou a percorrer o trajeto entre Campolide e Bucelas, onde vivia com outro amigo. Mas já não chegou a casa.
23 horas, 39 minutos, 19 segundos e 696 milésimos: é esse o momento em que as câmaras de videovigilância registam o brutal impacto de outro carro na traseira do Volkswagen Polo de Rodrigo, no interior do túnel do IC17. Seis segundos antes (às 23h39m13s), o flash do radar do controlo de velocidade do túnel do Grilo, como é conhecido, tinha disparado quando o condutor de um Audi A3 cinzento passou naquela zona.
A passagem do carro de Rodrigo naquele mesmo local foi registada às 23h38m56s. O condutor do Audi demorou quatro vezes menos tempo a percorrer os 324 metros entre o radar e o local do acidente. Porque, ao contrário de Rodrigo, o condutor do Audi não cumpria o limite de velocidade de 70km/h. Na verdade, conduzia bem acima desse limite: foi apanhado a 196km/h no flash do túnel, mas, depois, continuou a acelerar até embater na traseira de Rodrigo a 204,48km/h, segundo os cálculos das autoridades.
Momentos antes, à entrada do túnel, os dois Audi passaram pelo carro de JP, a primeira testemunha a chegar ao local do acidente e a dirigir-se ao carro de Rodrigo. À PSP, a mulher contou que “foi ultrapassada pela esquerda” por dois carros que circulavam a “grande velocidade, bem acima dos limites ali permitidos” e “certamente acima dos 150/170km/h”. Nas declarações que prestou às autoridades, JP admitiu também que “ficou logo com a sensação de que esses veículos provavelmente estariam a fazer alguma corrida entre eles”. Umas centenas de metros à frente, deparou-se com um dos Audi A3 já imobilizado na faixa da esquerda e o Polo, completamente destruído, à sua frente.
A dianteira do Audi ficou bastante danificada, mas são as imagens do Polo as que verdadeiramente impressionam: as rodas traseiras avançaram mais de um metro face à configuração normal do carro e ficaram encaixadas quase sob o banco do condutor. A carroçaria tinha agora metade do comprimento, compactada pela força do impacto — metade do carro parecia, simplesmente, ter desaparecido.
Quando se deslocou para junto do carro de Rodrigo, a mulher apercebeu-se de que, no interior, estava “uma pessoa inconsciente” no lugar do condutor. Não chegou a perceber se “ainda estava com vida” ou não. Pegou no telemóvel e ligou de imediato para o 112. Durante todo esse tempo, o condutor do Audi manteve-se à distância, não interagiu com Rodrigo nem se aproximou do Polo destruído. “Parecia não demonstrar preocupação com o que tinha acontecido”, relatou a testemunha à PSP, cerca de seis meses depois de ter assistido aos instantes que se seguiram ao acidente.
Carros sem matrícula e os minutos ao telefone sem ligar para o INEM
As imagens das seis câmaras de videovigilância do túnel contam muito daquilo que se passou naquela noite de março de 2021.
Esses registos, anexos ao processo judicial que decorreu já este ano, explicam, de resto, a razão para que o condutor do Audi A3 seguisse a uma velocidade quase três vezes superior à permitida naquele troço do IC17. E foram fundamentais para a decisão do tribunal de o condenar a uma pena de quatro anos e seis meses de prisão — efetiva, uma raridade, se não mesmo um caso único, quando se olha para outros casos em que estão em causa mortes provocadas por condução perigosa (neste caso, ainda se junta o crime de omissão de auxílio).
“Não podemos deixar de sublinhar a extrema gravidade, a todos os títulos, da conduta do arguido, a justificar as penas parcelares acima fixadas, pelo que, tendo em consideração a gravidade global dos factos praticados, o modo de atuação do arguido e a sua personalidade, entende-se ser justa e adequada a pena única” decidida pelo tribunal, refere a sentença de outubro deste ano, a que o Observador teve acesso.
Para contar esta história por completo é preciso voltar a esses registos das câmaras.
Um segundo depois de o Audi A3 ser apanhado pelo radar a quase 200 km/h há outro carro, da mesma marca e modelo, mas preto, detetado a passar por ali sensivelmente à mesma velocidade. A investigação nunca chegou a descobrir quem era o condutor do segundo carro, nem sequer que carro era exatamente aquele, por uma razão simples: ambos circulavam sem as placas de matrícula afixadas, e também porque o condutor que provocou o acidente, e a morte de Rodrigo, alegou sempre não conhecer o seu adversário naquele despique.
Para o tribunal, não houve dúvidas. “O arguido encontrava-se a fazer uma ‘corrida de rua’ com um outro condutor de um veículo automóvel, marca Audi, modelo A3, cuja matrícula não se logrou apurar, e, por tal motivo, a fim de não ser detetado pelas entidades fiscalizadoras, tinha retirado as chapas de matrícula do carro que conduzia, trazendo-as no seu interior”, refere a sentença na matéria de facto dada como provada durante o julgamento.
Depois do embate na faixa da direita do túnel, o Audi A3 e o carro de Rodrigo ainda embatem na parede que separa os dois sentidos daquela estrada, do outro lado da via, antes de acabarem imobilizados mais de 100 metros à frente. O Audi A3 preto — que escapou ao acidente por milésimos de segundos — atravessa a nuvem de fumo e destroços e segue túnel adentro. Passam-se largos segundos sem qualquer ação. Mas, quase um minuto depois, o autor do acidente toma uma decisão. “Às 23h40m03s, ou seja, cerca de 50 segundos após a colisão, o condutor arguido, ainda no interior do seu veículo, lança para o exterior, pela janela da porta do condutor, um objeto que posteriormente se veio a constatar ser a placa da matrícula do seu veículo”, refere o auto do visionamento das imagens de videovigilância feito pela PSP na sequência do acidente e a que o Observador também teve acesso.
Pouco depois, o homem sai do carro, dá à volta pela traseira, passando para o lado do passageiro, e agacha-se. A PSP suspeita de que, nesse momento, estava a colocar a segunda placa de matrícula junto ao seu carro, para despistar as autoridades da corrida ilegal em que estava a participar quando provocou o acidente.
O carro de Rodrigo estava mesmo ali ao lado, imobilizado a poucos metros de distância. Não há qualquer movimento visível no seu interior. O condutor do Audi nunca se aproxima do Volkswagen. Volta a contornar o seu carro para o lado do condutor, pega na primeira matrícula, que tinha lançado pela janela, e coloca-a num local mais próximo da parte da frente.
Por fim, dirige-se ao separador central, pega no telemóvel e passa os minutos seguintes a falar com alguém. Em alguns momentos leva as mãos à cabeça. Noutros, faz sinal aos outros condutores que passam no local — poucos, uma vez que o país estava genericamente em regime de confinamento devido à pandemia da Covid-19. Nos exames ao sangue a que foi submetido nessa noite, o homem acusou uma taxa de álcool no sangue de 0,86 g/L. Rodrigo não acusou qualquer vestígio de álcool.
Uma coisa é certa: durante todo o tempo em que esteve ao telefone, nenhuma das chamadas que o condutor do Audi fez foram para o INEM, uma vez que não há qualquer contacto com o número de emergência que tenha partido do seu número.
A equipa de emergência chegou minutos depois. Retiraram Rodrigo do interior do carro, mas o jovem professor já estava morto.
Corridas ilegais que a Justiça — e as estatísticas — normalizam
Não se sabe onde começou aquela corrida ilegal que levou à morte de Rodrigo. Mas não ficaram, para o tribunal, quaisquer dúvidas de que se tratava de uma corrida ilegal. Porque os dois Audi circulavam sem matrículas e porque, como mostram as imagens de videovigilância, em poucos segundos cruzavam as três faixas em direção a Sacavém, da esquerda até à direita, depois para o centro. “Existe uma tranquilidade, por parte de quem pratica esta atividade, em relação à nossa justiça criminal, e esta tranquilidade explica-se pela segurança que os praticantes têm em saber que não serão presos e que, aconteça o que acontecer, será sempre só um acidente de viação. E, em Portugal, as condenações que existem por homicídios derivados de acidentes de viação resultam em prisão suspensa”, diz ao Observador Ana Faustino Duarte, a advogada da família de Rodrigo.
Neste caso, a corrida terminou com uma morte — e com uma condenação a pena de prisão efetiva. Mas em muitos casos as autoridades são incapazes de controlar um fenómeno que nunca deixou de existir nas estradas em Portugal.
Em 2020, o jornal i publicava uma série de reportagens sobre este tipo de corridas (também aqui e aqui), mostrando que, apesar de no Ralis, no Eixo Norte-Sul e na A2 ter sido possível, pelo menos, abrandar a frequência com que aquelas estradas eram palco de “picanços” a alta velocidade, em locais como a A1, A16, ponte Vasco da Gama e CREL, todas as semanas os donos de carros alterados apareciam, aceleravam e voltar a desaparecer, em muitos casos sem que a PSP ou a GNR tivessem sequer tempo de detetar a sua presença.
As corridas eram marcadas em grupos fechados nas redes sociais, e os postos de abastecimento de combustível ou até parques de estacionamento de grandes superfícies comerciais serviam em muitos casos de zona de encontro antes do “picanço”. O perfil dos participantes era muito distinto: jovens adultos com capacidade financeira para comprar e modificar os carros, pilotos de aviões e até elementos das forças policiais. Mas também muitos condutores sem carta de condução — maiores de idade, mas não só.
Aquelas reportagens mostraram também outro dado que a sentença no julgamento da morte de Rodrigo pode ajudar a alterar: muitas das mortes que ocorriam no contexto de competições de street racing eram, aos olhos da justiça e das estatísticas oficiais, encaradas como consequência dos milhares de acidentes de trânsito que todos os anos acontecem nas estradas do país.
A advogada que representou a família de Rodrigo em tribunal acredita que, para o condutor do Audi que matou o jovem professor, aquela não era uma estreia em corridas ilegais. Além da preocupação em posicionar estrategicamente as placas de matrícula no exterior do carro, logo após o embate, na investigação que fez nas redes sociais para sustentar o caso em tribunal Ana Faustino Duarte encontrou vários vídeos em que o autor do acidente na CRIL mostrava as capacidades do seu carro, muitas vezes em estradas públicas, tão movimentadas como aquela em que o homem — de 25 anos, tal como Rodrigo na noite do acidente — participou no despique. Esses conteúdos, que o Observador ainda pôde visualizar, foram entretanto apagados.
O coletivo de juízes que conduziu o julgamento considerou que a única razão que levou o Audi a embater no Polo de Rodrigo foi o facto de o condutor seguir em alta velocidade no contexto de uma corrida ilegal na via pública. O piso estava seco — não chovia — e não apresentava qualquer defeito, a iluminação no túnel funcionava em perfeitas condições, o troço onde ocorreu o acidente tinha boa visibilidade e, naquele exato momento, não havia qualquer outro carro por perto: apenas o Polo de Rodrigo, o Audi que provocou o acidente e, imediatamente atrás, o segundo Audi que participava na corrida, que atravessou a nuvem de fumo e detritos que preencheram o ar logo após o embate, pisou o travão por uma fração de segundo quando passou pelos dois carros na faixa da esquerda e seguiu.
Uma morte que pode servir de “alerta”
Maria, mãe de Rodrigo, garante que nunca sentiu “raiva” nem desejo de “vingança” do homem que matou o seu filho. “Sempre pensei que não me interessava saber pormenores que só iam fazer-me sofrer, que não podiam trazer o Rodrigo de volta.” Também nunca foi a tribunal, no processo constam apenas as declarações do pai de Rodrigo e do seu atual companheiro e, por isso, nunca se cruzou com o autor do acidente. “Sei que se deu como culpado, que esteve sempre cabisbaixo em tribunal. Acho que tem consciência do que fez, mas também acho que quando se metem num carro se julgam invencíveis”, diz ao Observador, numa conversa já em dezembro, no mesmo dia em que o filho completaria 28 anos.
Não quer “vingança”, insiste, mas está determinada em garantir que a morte de Rodrigo sirva de exemplo, que ponha um fim à facilidade com que estas corridas ilegais se realizam e ao sentimento de impunidade dos condutores. E esse caminho, acredita, começou a ser feito com a sentença que condenou o autor do acidente a uma pena de prisão efetiva.
“Nunca me pus no papel de vítima, de pensar ‘porquê eu?’ O meu filho foi vítima e o que tem de ser feito é justiça. Quem provocou o acidente tem de lidar com a consequência dos seus atos. Disseram-me que estas penas são sempre suspensas. Mas eu respondi: ele vai cumprir pena, nem que seja três meses, porque tem de se mostrar que estas corridas continuam a existir. Há anos que não se fala nisto, mas existe. Existe todos os dias!”
Além da pena de prisão efetiva, por cúmulo jurídico — pelos crimes de homicídio por negligência grosseira, em concurso com o crime de condução perigosa, agravado pelo resultado, e omissão de auxílio agravado —, o condutor do Audi A3 foi também condenado a uma inibição de condução por um período de dois anos e meio.
Na sentença, o coletivo de juízes do tribunal judicial da comarca de Lisboa, presidido por Francisco Coimbra, foi particularmente enfático a enquadrar o contexto em que aquele acidente ocorreu, recorrendo por diversas vezes às expressões “corrida de rua” e “corrida ilegal” e sublinhando a ideia de que o autor do acidente “conduzia de uma forma imprudente, temerária e descuidada”. Todo o seu comportamento, “além de apontar para uma assumida desobediência da legalidade e, bem assim, uma consciência aguda da ilicitude e do perigo social que se dispõe a causar, revela uma atitude particularmente censurável de leviandade e de descuido”.
Mais ainda: na leitura do coletivo, se o condutor do Audi tivesse cumprido com as regras, o desfecho nunca teria sido aquele.
“Além de se verificar que o arguido agiu em violação de um dever objetivo de cuidado, pode ainda afirmar-se que, caso tivesse cumprido as normas estradais e aquelas resultantes da experiência comum, o desastre mortal não teria ocorrido, tanto mais que à infeliz vítima nenhuma responsabilidade pode ser assacada na produção do evento, uma vez que exercia a condução do aludido veículo automóvel em obediência às aludidas regras”, lê-se na sentença.
O acidente que lhe tirou o filho, diz Maria, mudou-a por completo. Alheia a ideias feitas, conta como passou a dar mais valor àquilo que, antes, tomava como garantido — “acordar de manhã e respirar”, exemplifica. E continuou sempre a falar do filho, o assunto nunca se tornou um “tabu” para a família, que nos seus encontros dedica sempre algum tempo a recordar a “bondade”, a “disponibilidade” para os outros e o “sorriso na cara” com que se apresentava sempre. “Há dias difíceis, em que choro de manhã à noite”, admite. “Noutros, não.”
Depois de ser condenado a quatro anos e meio de prisão, o condutor do Audi decidiu recorrer da sentença. A meio de dezembro, a advogada da família respondeu ao recurso e a decisão está agora nas mãos da Relação de Lisboa. Maria continua focada no objetivo de transformar a morte de Rodrigo num exemplo daquilo que pode acontecer quando se ignoram todas as regras e se faz da estrada uma pista de corridas a velocidade alucinantes. “Nunca pensei que o Rodrigo fosse meu, ele era do mundo. Quando morreu, passou a ser do universo. Eu só não sabia que o universo ia ser tão longe. Nada vai trazê-lo, nada. Mas se eu puder ajudar a alertar…”
*Os nomes usados neste artigo são fictícios