Para o Governo, uma sucessão de casos, casinhos, “espuma dos dias” e “distrações”. Para a oposição, uma série de polémicas graves que mostram o caos e a descoordenação até no próprio Executivo. Três meses depois do último debate de política geral, António Costa voltou ao Parlamento para jurar perante toda a oposição – esquerda e direita atiraram-se ao primeiro-ministro sem grandes hesitações – que não se irá distrair da governação prestando atenção às crises que assombram o Governo, preferindo apontar para o futuro – e para as reformas, e obras, que ainda espera deixar feitas.
Mesmo assim, o que preocupa os partidos é o presente – e, além dos casos envolvendo potenciais conflitos de interesses no seio do Governo ou os chumbos de audições de ministros no Parlamento, a principal preocupação da esquerda à direita teve mesmo a ver com o galopante aumento do custo de vida. Criticando os “truques” e “ilusões” a que o Executivo recorre para dizer que vai mesmo haver aumentos, a oposição lembrou o impacto da espiral inflacionista e ouviu, repetidamente, uma garantia: o PS, mesmo estando obrigado a jogar à defesa, nem sequer conhece a palavra “cortes”, que não está “no seu léxico ou prática”.
Pelo meio, o primeiro-ministro ainda deixou algumas novidades. A TAP será mesmo para privatizar no prazo de um ano – mas pode ser para perder dinheiro; quanto ao crédito à habitação, para já, o Governo não se mete.
Casos aos pares ou “a espuma dos dias”, na versão do primeiro-ministro
O regresso de férias veio com casos em catadupa, o que António Costa prefere chamar de “espuma dos dias”, numa tentativa estratégica de passar por cima do campo de minas em que se transformou o seu Conselho de Ministros, com as polémicas em que têm estado envolvidos vários membros do Governo.
Costa reconhece que eles existem e diz que não pode “andar a governar na espuma dos dias e dos casos do dia”, rematando com uma frase que tanto dá para esse lado de desdramatização como para o outro, o do recado para dentro: “O nosso trabalho é muito simples é não inventar problemas e resolver os que temos pela frente”. Ou noutro tom logo de seguida, mantendo as “mãozinhas no volante e olhos na estrada”, onde vai apontando as reformas que diz serem suas: no SNS ou nas grandes obras (com o acordo no aeroporto e a alta velocidade).
Na bancada do Governo tinha a ouvi-lo todos quantos foram objeto de questionário logo na abertura do debate, pelo líder do Chega:
a) Sobre Ana Abrunhosa e a notícia do Observador da concessão de fundos comunitários ao marido da ministra, o primeiro-ministro revelou que a responsável pela Coesão Territorial lhe colocou a questão da eventual incompatibilidade e como a aconselhou a pedir um parecer jurídico. Agora diz que o tal parecer, feito pela Procuradoria Geral da República, é “inequívoco”, sem referir, no entanto, tudo o que diz, nomeadamente a “obscuridade” que foi apontada à lei. Costa deixou sem resposta o desafio deixado para que os fundos sejam devolvidas ou a ministra se demita.
b) Manuel Pizarro é casado com a bastonária da Ordem dos Nutricionistas, mas o primeiro-ministro não só já sabia há muito – até disse logo que era fácil de concluir porque apareceu na tomada de posse a cumprimentar a mulher do seu novo ministro –, como dá a situação como resolvida. “A situação é simples: comunica-me e eu determino a delegação de competências adequada”, ou seja, a Ordem deixa de estar sob tutela do ministro. Foi a sua resposta sobre eventuais incompatibilidades.
c) Se nestes dois últimos casos Costa estava a par de tudo, nas buscas da Polícia Judiciária às instalações da Presidência do Conselho de Ministros, não sabe nem quer saber. O caso envolve suspeitas de corrupção que recaem sobre o secretário-geral, mas o primeiro-ministro disse que tudo o que sabe é pela comunicação social e que nada tem sabido “nem tinha de saber”. Um desvio de um caso que o secretário de Estado do Conselho de Ministros já tinha garantido que não tocava em gabinetes ministeriais. No entanto, a investigação envolve um ex-autarca do PS.
d) O ministro da Economia defendeu a baixa transversal do IRC e o tema também veio a debate, com o primeiro-ministro a discordar frontalmente da posição de Antóno Costa Silva ao dizer que o que pensa sobre política fiscal está no programa do Governo do PS. Defendeu a “excelência” e “experiência” do ministro e tentou virar o bico ao assunto, atirando ao “livrinho” do líder parlamentar do PSD e o que diz sobre política fiscal, nomeadamente a coleta mínima de IRC.
e) Ausências de ministros nas chamadas ao Parlamento também foram colocadas em cima da mesa, quando Cotrim Figueiredo não gostou das considerações de Costa sobre o seu tom estar a ficar parecido com o de André Ventura – “é que no André Ventura é genuíno, a si fica-lhe mal” – e ripostou: “Também está com a voz um bocadinho mais grossa”. Afinal, a maioria absoluta tem chumbado audições de ministros no Parlamento (já são oito) o que faz a IL questionar se é esta a “maioria dialogante”. Costa respondeu com números do ano passado, dizendo que já vieram a comissões 270 vezes e 217 a plenário e que só oito requerimentos não foram aprovados.
Aumentos nas pensões e salários? “É a sua verdade”
São truques, são ilusões, é a “verdade” — mas só de António Costa. Foram estas as expressões que a oposição escolheu em resposta aos argumentos de Costa, que tentou defender os supostos aumentos do Governo nas pensões e nos salários – os mesmos que, lembram os partidos, em tempos de inflação não chegarão a representar aumento algum, mas antes uma perda do poder de compra.
A dias de ser conhecida a proposta inicial do Governo para este Orçamento do Estado, e um dia depois de terem sido revelados os pormenores do acordo de rendimentos que o Executivo enviou aos parceiros sociais, para os partidos só há uma resposta a dar a Costa: esta é mesmo uma “forma de governar baseada em truques” (como resumiria o líder parlamentar do PSD, Joaquim Miranda Sarmento, um dos protagonistas dos diálogos mais acesos com o primeiro-ministro).
Afogado em ataques da oposição, que ia recordando os impactos da inflação e pedindo mais apoios para famílias e empresas, mas também para os pensionistas que perderão, em termos práticos, parte das suas reformas, Costa foi-se defendendo caso a caso. Com Miranda Sarmento, usou o instrumento a que já tinha recorrido no último debate parlamentar em que marcou presença, antes das férias de verão: foi lendo trechos e “pérolas” do “livrinho” em que o social-democrata expõe o seu pensamento económico para tentar provar que a exigência do PSD de aumentos maiores nos salários – especialmente na Administração Pública – e nas pensões é irónica.
E fê-lo aproveitando, sempre que possível, para colar a troika à pele de um PSD que ia falando das dores de pensionistas e funcionários públicos – dois eleitorados que perdeu precisamente nos tempos do Governo de Passos e Portas e que interessa recuperar.
Costa não hesitou em disparar: “O PSD acha que a peste grisalha não se sabe governar a si própria”, ironizou, recuperando a famigerada expressão para falar dos mais idosos e criticar a proposta do PSD de devolver rendimentos em vales alimentares. Depois, ao PSD, garantiria que a palavra “corte” nem sequer entra “no léxico e na prática” do PS.
Com Carlos Guimarães Pinto, da Iniciativa Liberal, entraria num longuíssimo pingue-pongue sem especificar se os aumentos salariais que constam do acordo com parceiros sociais serão nominais ou não – Rui Tavares, do Livre, tentaria fazer a mesma pergunta “em português” minutos mais tarde, lembrando que, se o PIB diminuir, a promessa de aumentar o peso dos salários no PIB poderá não valer de nada.
De Costa, ouviu que uma recessão não está no horizonte dos cenários macro do Governo. O primeiro-ministro arrumaria o assunto com ironia: o Governo ainda não encontrou forma de “decretar” o fim da inflação – e nem a leitura do “livrinho” de Miranda Sarmento, durante as férias, lhe trouxe uma “varinha mágica” para acabar com o problema que afeta a economia mundial.
Do outro lado, mas com argumentos semelhantes, encontravam-se os antigos parceiros, agora distantes como nunca. Jerónimo lamentou o aumento do custo de vida – “era sufocante, pode tornar-se insuportável”, pediu medidas corajosas, falou de pensões insuficientes e salários que vão pelo mesmo caminho, suspirou por um aumento do salário mínimo para os 800 euros.
Mas isso eram contas que se faziam no Parlamento durante os tempos de geringonça – agora, o líder do PCP ouve apenas, como resposta, um elencar das medidas que o Governo já adotou para apoiar empresas e famílias (o que acabaria por levar Jerónimo a suspirar: “Poderia concluir-se que trabalhadores e reformados ainda ficam a dever dinheiro ao Governo…! Mas pronto, é a sua verdade, fica assim”).
“Assim” ficaria também mais um pingue-pongue sobre pensões entre Costa e Catarina Martins. Não tendo nunca morrido de amores pelos parceiros bloquistas, essa página está mais do que virada e a líder do Bloco não ouviria mais do que garantias de que o PS já foi “ao limite” para apoiar os pensionistas. Com um aviso repetido: se o PS quer apoiar os pensionistas de hoje, o mesmo será verdade para os de amanhã. Daí que a prioridade seja não gastar demasiado agora para garantir que a Segurança Social se mantém sustentável – um argumento que Catarina Martins questionou usando as garantias do próprio Executivo sobre a estabilidade do sistema, mas que não deu frutos.
Quanto aos salários, o mesmo diálogo pouco frutífero: se nos últimos anos Costa e Catarina estariam por esta altura a discutir no plenário mas também em salas privadas, para negociar o Orçamento, agora as conversas são públicas e ficam pelo hemiciclo, com a bloquista a garantir que as promessas no acordo de rendimentos não têm “credibilidade”. Costa assegurou-a de que a proposta final do Governo não “desonrará o Estado”. E a conversa, como diria Jerónimo, ficou “assim”.
A privatização que pode custar dinheiro e as obras “emperradas”
A custo, Carlos Guimarães Pinto conseguiu arrancar a Costa uma das poucas novidade que as quase quatro horas de debate trouxeram. Depois de o deputado liberal ter questionado o primeiro-ministro sobre se a privatização da TAP é, como já foi noticiado, uma hipótese em cima da mesa para os próximos doze meses, Costa confirmou: “Espero que sim, é isso que está planeado”.
Mais difícil seria a pergunta seguinte: se Costa considera que o Estado pode vir a perder dinheiro no processo. O primeiro-ministro não respondeu imediatamente, andou às voltas e escolheu cuidadosamente as palavras, mas acabou por admitir “esperar” que não. E se diz que “espera”, como o próprio traduziu perante a insistência do deputado, é porque “admite” que isso possa vir a acontecer. Os próximos capítulos decorrerão à mesa das negociações.
Outro dos temas quentes em cima da mesa, mais uma vez, é a questão do aeroporto. Tendo já, na semana passada, acordado com o PSD a metodologia para a escolha do local, Costa disse fazer votos – tanto para a nova linha de alta velocidade como para o novo aeroporto, duas obras, como disse, “emperradas” há muito – de que “desta vez seja mesmo” a sério. Para já, garantiu ter sentido uma “vontade efetiva” de Luís Montenegro em dar andamento ao processo, com PS e PSD na mesma página. Até porque o país “não aguenta mais adiamentos”.
Créditos à habitação. Governo deixa nas mãos dos bancos
Foi um dos temas em destaque, com a oposição a apontar sobretudo a duas áreas: o alojamento estudantil e o impacto da subida dos juros nos créditos à habitação. À primeira, Costa respondeu com o plano que o Governo tem em execução e se estende até 2026. Quanto à segunda parte, atirou para os bancos.
A líder do Bloco de Esquerda ainda o questionou sobre se tem confiança nos bancos para deixar a essas instituições a solução para um problema que afetará os portugueses, já que não gostara de ouvir o primeiro-ministro dizer que e ao nível comercial que o assunto deve ser tratado num primeiro momento. Catarina Martins defende que a banca seja “obrigada a apresentar contratos renegociados mantendo a taxa de esforço” dos clientes, mas a posição do primeiro-ministro é mais recuada. Costa acredita que tal como na pandemia a questão se resolveu, também agora as situações de incumprimento serão um problema maior. “Estamos a acompanhar a situação e devemos ir acompanhando mas não nos devemos antecipar ou substituir” aos bancos, disse Costa sobre este assunto.