Atualizado com esclarecimentos adicionais prestados por José Furtado esta sexta-feira
A dias ou semanas de ser anunciada a decisão final sobre a expansão do aeroporto de Lisboa para a base do Montijo, é apresentada uma nova alternativa desta vez a norte do rio Tejo e com a ambição de criar uma cidade aeroportuária (um hub) que integraria também a Portela. Não é o Portela mais um, mas é Alverca mais Portela. O atual aeroporto de Lisboa ficaria concentrado em voos de médio curso, um aeroporto de cidade que a prazo perderia movimentos e passageiros para a nova estrutura que cresceria a poucos quilómetros de Lisboa, e que numa primeira fase iria acolher os voos de longo curso.
Para concretizar este projeto seria necessário construir uma nova pista dentro do estuário do rio Tejo, aproveitando a ilha fluvial, o mouchão da Póvoa de Sta Iria. Também está prevista a construção de uma nova ligação rápida entre o atual aeroporto e o novo, um comboio automático (sem condutor) que faria o trajeto em 12 minutos. Ainda que, defendem os promotores do estudo, a solução Alverca seja possível sem este novo transporte. Alverca tem tudo, está ligada à Autoestrada A1, numa saída sem portagens, e é servida pelos serviços suburbanos da Linha do Norte.
O resultado seria um aeroporto com quatro pistas que teria capacidade para mais de 60 milhões de passageiros e 90 a 95 movimentos por hora, uma solução de longo prazo para responder ao crescimento de tráfego que aproveitaria infraestruturas já existentes, quer em termo aeroportuários, quer ao nível de acessibilidades. Um investimento da ordem dos 1600 milhões de euros, mas que poderia começar por ser mais baixo, tal como no Montijo, segundo a proposta apresentada esta quarta-feira.
Para o bastonário da Ordem dos Engenheiros, o que “concetualmente é uma ideia interessante, do ponto de vista operacional e de execução apresenta fragilidades grandes”. Em declarações ao Observador, Mineiro Aires aponta como um dos principais obstáculos a necessidade de ligar a atual pista de Alverca, onde estão as instalações das OGMA (Oficinas Gerais de Material Aeronáutico), à nova pista a construir sobre o mouchão atravessando a cala norte do estuário do Tejo. Trata-se de um canal navegável onde passam barcos com mastros elevados, diz, o que não seria compatível com os viadutos que vão ligar as duas pistas. A ideia é que a atual pista sirva de taxiway (entrada e saída de aviões) à nova pista, mas para fazer essa ligação, as duas têm de estar mais ou menos ao mesmo nível, sem grandes inclinações.
Já depois da publicação deste artigo, José Furtado veio esclarecer que a cala Norte tem sido sobretudo usada por “curtas lanchas a motor” e que no passado recente tem sido muito rara a passagem de barcos à vela com mastro, sobretudo depois do rebentamento do dique do mouchão. Se a hipótese se colocar, a embarcação poderia usar a cala das Barcas que fica do outro lado do mouchão. A cala Norte, que o projeto de construção de uma nova pista de aviões no estuário iria atravessar por viaduto, é um canal “sem manutenção, nem monitorização”, acrescenta.
Mineiro Aires conhece bem o projeto do colega José Furtado, que a Ordem dos Engenheiros não apadrinhou apesar de o bastonário ser um crítico da opção Montijo. E alerta ainda para “problemas ambientais graves”, assinalando que o mouchão faz parte da reserva agrícola nacional e é considerado como um santuário ambiental para aves. Concluindo, é “uma boa ideia no papel, mas é muito discutível e na prática muito complicada”.
Ainda sobre este tema, o defensor do projeto contrapõe que o “mouchão está totalmente degradado e o habitat irremediavelmente atrasado”.
O bastonário estranha o timing da apresentação, que também “não faz muito sentido” dado o esgotamento da Portela. Uma solução ancorada em Alverca exigiria sempre um “grande aprofundamento técnico” e uma resposta para o problema ambiental. O que quer dizer tempo — mais tempo para estudar.
Quem defende a cidade aeroportuária Portela/Alverca
O projeto foi apresentado esta quarta-feira na Fundação Cidade de Lisboa pelo principal promotor, José Furtado, acompanhado de especialistas do Instituto Superior Técnico e da Universidade Católica, numa sessão lançada por Carmona Rodrigues. O antigo presidente da Câmara de Lisboa foi ministro das Obras Públicas do Governo de Durão Barroso com responsabilidades sobre os transportes e os aeroportos, mas aqui o seu papel limitou-se a lançar a apresentação.
O principal rosto do movimento é José Furtado. De acordo com informação divulgada no site que lançou para promover o hub Portela/Alverca, é engenheiro especialista em planeamento estratégico e de infraestruturas de transporte. Em informação mais detalhada enviada ao Observador, indica que trabalhou na construtora A. Silva e Silva, e em projetos de obras de arte em autoestrada para Brisa. Esteve ainda durante 12 anos na construtora Bento Pedroso, controlada pelos brasileiros da Odebrecht, e na qual esteve envolvido em projetos no setor portuário e das infraestruturas de gás, bem como no estudo e apresentação de candidaturas a grandes obras públicas, como a alta velocidade ferroviária, a terceira travessia do Tejo e o novo aeroporto de Lisboa nas suas várias localizações. Concursos que não chegaram a avançar. Trabalha como consultor desde 2012.
A equipa que apresentou o estudo inclui ainda António Gonçalves Henriques. Engenheiro civil aposentado, que foi coordenador do departamento de hidráulica e ambiente do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) e liderou a autoridade ambiental (primeiro o Instituto do Ambiente que hoje é a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) entre 2007 e 2010.
Outro membro da equipa, que não esteve na Fundação Cidade de Lisboa, é Ricardo Ferreira Reis, economista e professor auxiliar convidado da Universidade Católica e diretor do Centro de Estudos Aplicados – CEA. Além de outros professores da Católica, como Rui Carvalho, participaram também professores do Instituto Superior Técnico como o especialista em transportes Fernando Nunes da Silva. O envolvimento é pessoal, mas se a ideia levantar asas, há vários departamentos especializados preparados para avançar com estudos, da Universidade Católica, do Técnico, bem como a equipa de Segadães Tavares e Associados, empresa de engenharia que trabalhou na extensão da pista do Funchal feita sobre o mar.
De onde surgiu Alverca
A ideia de usar a pista de Alverca, onde são as instalações das OGMA, já foi estudada no passado como resposta complementar ao atual aeroporto de Lisboa, no que ficou conhecido como a solução Portela mais um. Mas Alverca foi afastada porque a orientação da pista existente entraria em conflito com a rota de aproximação à Portela, porque é cruzada, o que não permitiria um aumento da capacidade. O processo que deixou pelo caminho Alverca acabou por conduzir à solução atual de desenvolvimento de um aeroporto complementar no Montijo, cujo estudo de impacte ambiental entrou na reta final de avaliação por parte da Agência Portuguesa do Ambiente (APA).
O projeto que ganha agora mais visibilidade também não é novo. José Furtado tem trabalhado no tema nos últimos anos com um site dedicado com vários estudos e, segundo afirmou na apresentação pública, já fez a proposta à Vinci em 2016 e já este ano ao concedente da operação aeroportuária, o Estado. Sem grande receptividade de nenhum dos lados, para já.
Então porquê agora? Carmona Rodrigues responde à pergunta que colocou logo no início da sessão. “É a sociedade civil que está a reagir. Não estão aqui em nome de um partido ou associação. São pessoas que entenderam que era útil dar voz e mostrar que o assunto do aeroporto é importante para Lisboa, mas também é da maior importância para o resto do país”.
Sem grandes exigências de paragem do processo que está em curso, a apresentação procurou mostrar que a solução Alverca é melhor que a do Montijo, sobretudo porque permitiria uma resposta de longo prazo para o crescimento do tráfego e uma melhor integração entre os dois polos aeroportuários. O Montijo, afirmou Carmona Rodrigues, “é uma solução de curto prazo, comprometida pelo calendário. É uma oportunidade fraca, para não dizer perdida”.
Ao mesmo tempo que apresentava comparações favoráveis, em tempo de execução, capacidade de resposta e até de impacto ambiental, face ao Montijo e até a Alcochete, a apresentação remetia também para aeroportos existentes onde as soluções propostas já foram testadas e executadas. Como por exemplo as pistas do aeroporto do Funchal, na Madeira, ou do aeroporto de Macau, feitas sobre a água. Ou ainda o aeroporto dinamarquês que tem um comboio a ligar terminais distantes.
“Não seria um aeroportozinho”
O que está em causa, segundo os promotores, é aproveitar “um potencial latente nunca antes avaliado em Alverca”, porque a análise esteve limitada à pista que lá existe, a tal que entra em sobreposição com a Portela. E para ultrapassar esse constrangimento, José Furtado propõe a construção de uma nova pista paralela à atual, mais extensa que as existentes e do que a prevista para o Montijo no espaço que está disponível nas instalações de Alverca. E esse espaço inclui o estuário do Tejo, ou melhor, um mouchão (ilha fluvial) que fica localizado mesmo em frente à base de Alverca. Esta ilha, que já foi alvo de intervenções humanas para reforço das suas margens, está em adiantado estado de degradação, e tem sido até alvo de algumas intervenções do Ministério do Ambiente.
A ideia seria aproveitar a construção da pista numa parte da ilha para reabilitar todo o mouchão, o que implicaria ligar a nova pista à que já existe em Alverca e que serviria de taxiway à nova infraestrutura.
O futuro hub passaria a contar com quatro pistas, três das quais paralelas, numa área que combinando a Portela com Alverca chegaria aos 1600 hectares, 400 mais 1.200. Esta estrutura, segundo os promotores, teria capacidade para 60 milhões de passageiros por ano e 90 a 95 movimentos por hora. “Não é um aereoportizinho”, afirmou José Furtado. O custo de construir a nova pista é competitivo face ao custo da solução Montijo, porque a extensão prevista para esticar a pista do outro lado do rio, e o investimento necessário, não será suficiente para que ela tenha o comprimento legalmente exigido, argumenta.
Quanto custaria
Mas afinal quanto custa esta solução? O número demorou algum tempo a surgir na apresentação e tem várias nuances, mas o valor redondo varia entre os 1.600 a 1.650 milhões de euros: a nova pista e as alterações necessárias nesta componente custariam cerca de 250 milhões de euros; os dois terminais previstos, um para low-cost e outro com todos os serviços e área comercial, e o estacionamento exigiriam um investimento de 1.150 milhões de euros; e outros elementos diversos representariam mais 120 milhões de euros. Os responsáveis pela solução referem que numa primeira fase este novo polo poderia começar a operar com um investimento mais reduzido de 300 milhões de euros associado à construção da pista e de um terminal de baixo custo para operações low-cost, como o que está projetado para o Montijo.
A solução Montijo tem um custo estimado de 1.300 milhões de euros, dos quais apenas 560 milhões de euros têm como destino a base militar. O investimento mais avultado está previsto para a Portela, mais de 600 milhões de euros. Só que a opção Montijo é totalmente financiada pela concessionária ANA, que é detida pelos franceses da Vinci, sem recurso a fundos públicos. Foram aliás os privados que a propuseram ao Estado, nos termos do contrato de concessão, que a aceitou. Na solução Alverca mais Portela, poderiam ser necessários fundos do Estado.
Como chegar
E o comboio automático? Não entra nesta conta. Será um investimento da ordem dos 800 a 900 milhões de euros, com um valor inicial de 500 milhões de euros, que, acredita José Furtado, irá gerar receitas para se financiar. Para além do tráfego de passageiros entre os dois aeroportos que não seria cobrado, a ideia é usar este novo transporte para transportar outros tráfegos (que não os passageiros do aeroporto), esses sim cobrados. Os promotores defendem uma concessão e exploração autónoma da do aeroporto até 2062, por concurso público a lançar pelo Estado. Este novo meio de transporte partiria da Portela e seria construído ao longo do corredor ferroviário onde já passa a Linha do Norte à beira do rio, e no qual existe espaço disponível atualmente ocupado por instalações industriais e armazéns. Só é preciso chegar lá vindo da Portela.
É no capítulo das acessibilidades, apresentado pelo professor do Técnico Nunes da Silva, que a solução Alverca apresenta mais vantagens. Como sublinhou Nunes da Silva, o maior peso na fatura de um aeroporto pode mesmo ser construir as infraestruturas de acesso e no caso de Alverca essas já lá estão, só é preciso ligar ao novo aeroporto.
Para além da saída direta para a A1, e sem portagens, também a rede ferroviária já passa em Alverca e entre Lisboa e este local a Linha do Norte tem quatro vias, o que dá margem para reforçar a oferta de ligações suburbanas à capital, além de permitir aos passageiros seguirem diretos para o centro histórico, Santa Apolónia. Está ainda prevista a construção de um parque de estacionamento entre Alverca e Portela, mas o principal meio de chegada dos passageiros e trabalhadores seria o comboio. Aqui há uma diferença assinalável face ao Montijo. A solução admite ainda num futuro mais ambicioso uma ligação a uma futura estação central da rede de alta velocidade se ela vier a ser feita.
Menos ruído para as pessoas. Mas e o rio e as aves?
O antigo presidente da APA reconhece que o projeto está previsto para uma área sensível do estuário do rio Tejo, mas considera que é conciliável com restrições ambientais porque evita as zonas mais sensíveis do estuário do rio, a zona de proteção especial para aves, que se localiza na margem Sul, precisamente mais perto do aeroporto complementar do Montijo, e a reserva natural do estuário do Tejo.
Na sua apresentação, Gonçalves Henrique refere que o principal “conflito” seria na própria ilha mouchão, mas assinala também que a vegetação existente é mais vocacionada para aves de pequena dimensão e defende que se deve tirar partido da janela de oportunidade de se concertar com a reabilitação do Mouchão que o Estado se prepara fazer.
Gonçalves Henriques assegurou ainda que seria preservada a hidro-dinâmica fluvio-estuarina, sem aprofundar o tema. Mas é na redução do ruído sobre a população de Lisboa, diretamente afetada pela Portela, que são apontados os impactos mais positivos em termos ambientais. Esta solução propõe-se a reduzir o tráfego aéreo que vai para Lisboa, ao contrário do que está previsto com o projeto complementar do Montijo que, segundo os números apresentados, afectará mais de 400 mil pessoas. Haveria menos voos sobretudo à noite. E admitiu ainda uma ligação por pipeline para abastecimento a partir do parque de Aveiras, a poucos quilómetros de Alverca.
As Ogma podem ficar?
Segundo o esclarecimento de José Furtado, que chegou já algumas horas depois da publicação deste artigo, o hub Alverca-Portela “não só mantém como desenvolve a Ogma”. Isto porque este projeto poderá dar resposta ao défice de placas de estacionamento de aviões de grande dimensão para manutenção nas oficinas. Isto porque a Embraer, dona das Ogma, está a em vias de ser adquirida pela americana Boeing, o que poderá trazer contratos de maior dimensão para as oficinas de Alverca. Considerando até a pista de maior dimensão que está previsto construir.
E quanto tempo demora
Para os promotores, é possível um calendário de execução compatível com o que está apontado para o Montijo. A construção de uma pista demoraria cerca de dois anos, referiu José Furtado, e Alverca poderia começar logo a funcionar apenas com um terminal low-cost como o que está previsto para o Montijo até ao final de 2023. O plano apresentado prevê que a partir de 2025 começa o processo de downsizing (redução) da Portela com Alverca a ganhar importância como polo principal, mas isso exige já um terminal de passageiros full service (que ofereça todos os serviços).
Considerando que a solução Montijo, cuja principal vantagem apontada é a rapidez de execução, está há vários anos para ser desenvolvida, este calendário parece pouco compatível com o processo de decisão política e até administrativa de um investimento com esta dimensão e implicações. Ainda para mais, se não existir o acordo da concessionária. O Estado tem a opção de resgatar a concessão no caso de divergências sobre o futuro aeroporto de Lisboa, mas já se comprometeu com um memorando na opção Montijo. E um outro projeto iria sempre exigir muitas negociações ou talvez mais. Alverca poderia ganhar força como alternativa, caso o Montijo caísse na avaliação de impacte ambiental, mas este não é o cenário mais plausível.