“Se for necessário não olhem para o retrato. O que importa é que façam a cruzinha”. A frase de Álvaro Cunhal ficou na história pelo insólito que representava: o PCP apoiaria o rival Mário Soares — que diabolizara até então — na segunda volta das presidenciais. O que ficou perdido no tempo desta memória foi o papel de Jorge Sampaio também neste primeiro assomo de “geringonça” no país. O outro foi mais evidente, na Câmara de Lisboa. Mas em 1986, num momento ultra discreto daquela campanha histriónica, já ficava clara a boa relação dos comunistas com o socialista.
O papel que teve no pós Revolução, como advogado de alguns presos políticos no Tribunal Plenário, como Domingos Abrantes e também de José Bernardino (ambos militantes comunistas, este último antecessor de Sampaio como secretário-geral da Reunião Inter-Associações, no movimento estudantil de 62), foi decisivo para que as pontes se firmassem. Sampaio alimentou-as sempre. Visitou-os em Peniche e escreveu-lhes nesses tempos de cárcere. Domingos Abrantes contou a José Pedro Castanheira, no primeiro volume da biografia de Jorge Sampaio, a sua memória daquele tempo e como Sampaio se “dispôs a acompanhar” o seu caso: “Foi uma pessoa muito prestável disposta a ajudar os presos”.
Esses laços haviam de dar frutos políticos, tendo o primeiro e mais significativo sido colhido por Mário Soares. No dia seguinte à primeira volta das Presidenciais de 1986, reuniu a comissão política do MASP (Movimento de Apoio Soares à Presidência) e decidiu pedir apoio ao PCP. Mas tinha de ser uma abordagem discreta, coisa que sabia poder ser garantida por Sampaio, que levou consigo Gomes Mota, diretor dessa campanha de Soares.
O terreno estava favorável, com a reunião do Comité Central que leu esses resultados eleitorais a ter já vozes conformadas com a necessidade de apoiar Soares na segunda volta, mas o PCP teria de dar uma cambalhota total. Até ali tinham sido meses de campanha contra Mário Soares, que os dirigentes do partido classificavam de anti-democrata. E Álvaro Cunhal tinha deixado “completamente excluído”, logo no congresso comunista do final de 83, “qualquer apoio à recandidatura de Mário Soares às Presidenciais ou qualquer indicação de voto nesse sentido”. Era este o tamanho do sapo que os comunistas tinham para engolir.
O encontro discreto entre MASP e PCP, com Carlos Brito e Otávio Pato à mesa, decorreu no Hotel Altis, no centro de Lisboa. “Não se podia saber do encontro — e não se soube. O sigilo é muito importante para discutir certas coisas na política. Falei várias vezes com Cunhal e nunca se soube”, relatou Sampaio a Castanheira. A lição da importância de manter a total discrição nas conversas com os comunistas seria aprendida uns anos depois pelo seu estagiário no escritório que tinha com Vera Jardim, António Costa — e aproveitada ainda mais anos depois.
O PCP tem especial apreço pela confiança e pela palavra dada. E ali, com aquele socialista concreto, havia raízes. Carlos Brito conhecera Sampaio ainda antes do 25 de Abril: “Eu era funcionário do partido, membro da direção central e responsável pela organização de Lisboa, e tivemos encontros sobre a situação no movimento democrático”, conta ao Observador. Já depois da Revolução, os encontros continuariam a acontecer muito “amiúde”, nas comissões unitárias da esquerda: “Eu geralmente representava o PCP, e ele o MES [Movimento de Esquerda Socialista] e depois também o PS”.
Os contactos pré e pós Revolução acabariam por resultar numa “grande amizade” — “enquanto Presidente da República foi ao casamento das minhas duas filhas” — que ajudaria no arranque de várias conversas entre PS e PCP, funcionando como uma espécie de ponte informal antes de os assuntos serem tratados por Álvaro Cunhal. Foi isso mesmo que aconteceria, por exemplo, naquele momento no Altis.
Depois da reunião a quatro onde pediram o apoio comunista a Soares, Gomes Mota e Sampaio voltaram à sede do MASP com um relato que animou o candidato socialista. O PCP “queria reentrar na maioria presidencial” e acima de tudo “não queriam Freitas. Como sempre, foram pragmáticos: entre dois males escolheram o menos mau”, relatou então Sampaio. E, numa segunda conversa, foi isto mesmo que Brito foi dizer a Sampaio, num encontro a dois na casa do socialista, dias depois. O PCP entrava no barco e engolia o sapo Soares. E Jorge Sampaio saía a garantir: “Não demos nada ao PCP. Como dizia Mário Soares não havia nada a negociar nem tínhamos nada para dar”.
Ficava à vista a capacidade de argumentação de Sampaio junto dos comunistas e com especial recetividade por parte do líder Cunhal. O namoro do PCP vinha de longe: durante a revolta estudantil de 62, Jorge Sampaio foi por diversas vezes assediado pelos comunistas para se juntar à luta. Declinou sempre, de forma diplomática, alegando não querer contagiar o movimento estudantil com a política. “Devo ter sido convidado para o PCP umas 20 vezes”, disse a José Pedro Castanheira: “Sempre fui avesso a disciplinas e a aventais”. Já menos diplomata aqui.
A verdade é que no PCP foi-se sedimentando a confiança em Sampaio e mesmo no final da década de 80, estas relações voltaram a dar frutos. Mas desta vez foi o próprio Sampaio que os colheu. É um capítulo da história de má memória para Marcelo Rebelo de Sousa, que não o esquece, aliás referiu esse mesmo momento na declaração a propósito da morte do antigo Presidente da República esta sexta-feira quando referiu a “formação da primeira e mais vasta coligação pré-eleitoral de esquerda da nossa História democrática”. Foi nas eleições para a Câmara de Lisboa, em 1989, em que Jorge Sampaio anunciou candidatura surpreendendo todos (à esquerda — o seu PS incluído — e à direita) tendo depois conhecido como seu adversário nessa corrida o agora Presidente Marcelo Rebelo de Sousa.
O ponto de partida do PS em Lisboa era curto, com um resultado eleitoral quatro anos antes (de Helena Torres Marques) de 17,98%. Desde cedo, Sampaio convenceu-se que tinha de se entender com o PCP — que já tinha um candidato anunciado, o engenheiro Rui Godinho (entretanto também se afastou do PCP) que, na versão de Brito, “compreendeu a importância de dar esse passo em frente” e apresentar uma candidatura “muito forte”, pelo que acabou por ser um dos principais negociadores com o PCP. Recuou para abrir a história que se segue.
Os encontros secretos com Cunhal para a coligação em Lisboa
Foi depois da sua apresentação como candidato — fintando as aspirações de João Soares — que Jorge Sampaio decidiu contactar Carlos Brito, dizendo que estava a pensar candidatar-se à CML e que “gostava de o fazer com o apoio ou uma coligação com o PCP”: “Uma modalidade que fosse ajustada aos dois partidos, com o objetivo de ganhar”.
O PCP — a que se juntariam outras forças nesta frente de esquerda, como a UDP e o PSR (ambas na origem do Bloco de Esquerda) ou o PEV — era um parceiro apetecível: nas eleições autárquicas de 1985, a APU (coligação que o PCP integrava) conquistara 27,5% dos votos em Lisboa, bem à frente do PS, com os tais 17,98%. “No PCP fui a primeira pessoa a quem ele falou da sua intenção”, contou o comunista no segundo volume da biografia de Sampaio escrita pelo jornalista José Pedro Castanheira. Não disse logo aos socialista, mas ficou desde logo convencido de que aquilo teria pernas para andar.
“O PCP fazia constantes apelos para a unidade da esquerda. A grande novidade foi aparecer o candidato do PS a tomar a iniciativa e dizer que queria uma coligação”, recorda ao Observador Brito, que era então líder parlamentar do PCP. As conversas prosseguiram com “os camaradas envolvidos na frente autárquica” e depois com Cunhal, enquanto Sampaio geria as “dificuldades e exigências feitas pela parte do PCP”. As resistências acabariam por ser vencidas num encontro final com o líder máximo dos comunistas.
“Foi uma aliança extraordinária e inovadora. O passo certo que nunca ninguém tinha tomado”, e que na altura permitiu encontrar a “base comum para um programa para a cidade de Lisboa”, recordava esta sexta-feira Francisco Louçã, que foi dirigente do PSR, recorrendo a uma fórmula que hoje faz lembrar os motivos que justificaram a criação da ‘geringonça’, décadas mais tarde.
Brito funcionou, durante este processo, como emissário de Cunhal, como era a prática. Mas Sampaio queria que o acordo fosse tratado ao mais alto nível e chegou a enviar um recado ao líder comunista para um encontro a dois que foi organizado por Carlos Brito. Na biografia de Sampaio, o dissidente comunista conta que as várias reuniões que organizou entre os dois aconteceram “numa casa entre as avenidas Estados Unidos da América e do Aeroporto” que pertencia ao médico Joaquim Seabra Dinis, tio de Zita Seabra. A opinião de Cunhal sobre Sampaio era importante para que estas conversações acontecessem, costumava referir-se a ele como “um homem sério”. Meio caminho andado para o sucesso de casamento político com os comunistas.
Castanheira conta até que num momento de maior tensão, Sampaio e Cunhal chegaram a encontrar-se a sós, sem outros presentes na sala (o que não acontecia desde os tempos de Paris), na casa do candidato do PS. Foi a mulher de Sampaio, Maria José Ritta, que o relatou: “O Álvaro Cunhal veio aqui a casa na negociação para a Câmara. Estiveram os dois sozinhos, à noite depois do jantar. A casa era um espaço mais discreto”. Foi nas semanas seguintes que se alcançou o acordo.
O acordo final estabelecia que Sampaio seria candidato à Câmara, com o “popular” Godinho no lugar de vice-presidente, e José Saramago seria indicado pelos comunistas para liderar a Assembleia Municipal de Lisboa. Uma solução inesperada, mas vencedora: “Era um traço de audácia que ele tinha. E, em política, isso é uma arma tremenda”.
No fogo dessas negociações, que nas suas memórias Carlos Brito conta que encontrou “dificuldades que não foram nada pequenas” nas reuniões do Comité Central, Cunhal atravessou-se por Sampaio por diversas vezes.
Toda a trama política fora entretanto acompanhada pelo jovem advogado e aspirante a político de primeira linha António Costa. Estava lá nessa altura, na equipa visível que era liderada por Ferro Rodrigues e Lopes Cardoso, que negociou formalmente o acordo para Lisboa. E daí guardou três lições: era possível negociar com o PCP; a confiança era uma arma de negociação central; e essa lavrava-se nas mais diversas conversas, por mais informais que parecessem, com dirigentes comunistas.
Costa foi o diretor dessa campanha de Sampaio e alguns dos comunistas com quem lidou de perto nessa altura, como Jorge Cordeiro, sentaram-se mais tarde à sua frente, em outubro de 2015, quando procurou os comunistas para formar a geringonça e elevar ao nível Executivo nacional uma safra que o PS já trazia debaixo do braço por via de Sampaio.
A segunda “surpresa” de Sampaio. A caminho de Belém
Se, para Carlos Brito, a abordagem de Jorge Sampaio sobre a candidatura conjunta à Câmara de Lisboa já constituíra uma “surpresa”, esta não seria a última, conta ao Observador. “Mais tarde, fez-me outra surpresa: convidou-me para jantar em casa dele e disse-me: vou candidatar-me à Presidência da República”. Já à mesa do jantar, e perante o “como?” espantado do histórico comunista, Sampaio lá explicou as suas “razões”. E deixou o recado crucial que seria, na verdade, o motivo do encontro e que acabaria por mudar a história dessas eleições:
– É livre de tratar esta minha declaração com qualquer pessoa do partido, mas eu tinha gosto que fosse com o doutor Álvaro Cunhal.
Brito estava de acordo: depois de jantar com Sampaio, conversou com o líder comunista e explicou-lhe as intenções do então autarca de Lisboa. A reação terá sido, nas palavras de Brito, imediatamente positiva: “Não pode haver um presidente mais à esquerda em Portugal. Vamos dar-lhe todo o apoio”.
Em janeiro de 1996, a dias das eleições presidenciais, o candidato Jerónimo de Sousa anunciava a desistência a favor de Sampaio, para ajudar à “clarificação entre o campo da direita”, representado por Cavaco Silva, “e o campo democrático”, e prometendo não “cobrar a fatura” desse apoio ao PS. O resultado seria, menos de uma semana depois, mais uma vitória da aliança entre socialistas e comunistas: Sampaio chegava a Belém, onde ficaria por dez anos. A direita voltava, mais uma vez — que não seria a última –, a ser o motivo para a esquerda se manter unida.