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O conceito pode ainda ser estranho para a maioria dos portugueses, mas a verdade é que, em certas zonas do país, o modelo de Unidade Local de Saúde (ULS) está implementado há mais de duas décadas, sobretudo em zonas menos povoadas. Agora, a Direção Executiva (DE) do SNS quer generalizar as ULS, alargando o modelo a todo o país e substituindo os atuais centros hospitalares.
Mas a decisão está a gerar críticas: tanto Ordem dos Médicos (OM) como a Associação de Unidades de Saúde Familiares (USF-AN) dizem que o modelo está longe de ser eficiente e “que não resolveu nenhum problema” do sistema de saúde até agora. Também a Federação Nacional dos Médicos lança críticas às ULS e defende até um modelo alternativo.
Mas comecemos por explicar o que é uma ULS. Trata-se de um modelo que junta hospitais/centros hospitalares e Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES), e que pretende garantir a prestação de cuidados de saúde primários, hospitalares e continuados, de forma integrada, à população.
Agilidade na gestão e respostas mais integradas: as vantagens das ULS, segundo a Direção Executiva
Ao Observador, a DE do SNS sublinha que o modelo permite “organizar os serviços de uma forma integrada e centralizada no utente, conseguindo que as populações beneficiem de cuidados cada vez mais próximos, diferenciados e diferenciadores”. Ou seja, o objetivo é “colocar as unidades de saúde a funcionar em rede e os profissionais a pensar de forma global”.
“Não podemos pensar numa população só para cuidados primários ou só para os cuidados hospitalares”. O organismo, liderado por Fernando Araújo, enumera quatro grandes vantagens que o modelo pode trazer: a resposta integrada às necessidades da população (com uma maior aproximação entre profissionais, com respostas clínicas integradas para cada pessoa), a agilidade de gestão (ao nível da coordenação e operacionalização de projetos clínicos integrados entre centros de saúde e hospitais), os ganhos de eficiência (evitando, por exemplo, a duplicação de atos clínicos) e as economias de escala (com ganhos na gestão de recursos humanos e na gestão financeira).
Atualmente, existem 8 ULS em Portugal, que servem cerca de um milhão de utentes. A mais antiga, a ULS de Matosinhos, foi criada ainda antes da viragem do milénio (em 1999). A outras sete situam-se em região de baixa densidade populacional: Norte Alentejano, Guarda, Baixo Alentejo, Litoral Altentejano, Castelo Branco, Alto Minho e Nordeste.
Como estas unidades vão “dominar” o país já no final de 2023
A estas ULS, a direção executiva do SNS quer juntar mais 25 até ao final deste ano. A concretizar-se este objetivo, 80% da população ficará na área de influência de uma ULS. Segundo a DE, até final de junho, serão criadas as ULS de São João; de Vila Nova de Gaia/Espinho; de Barcelos; de Dão Lafões (Tondela e Viseu); do Baixo Mondego (Figueira da Foz); do Tejo (Vila Franca de Xira); e do Médio Tejo.
Já concluíram planos de negócios (a documentação necessária a criação de uma ULS) outras 12: Guimarães; Aveiro; Entre o Douro e Vouga; Região de Leiria; Alentejo Central; Arrábida; Almada – Seixal; Lezíria; Arco Ribeirinho; Póvoa de Varzim/Vila do Conde; Médio Ave e Braga. Em fase adiantada de elaboração da documentação estão as ULS de Santo António (que vai integrar o Hospital de Santo António, no Porto); Tâmega e Sousa; Cova da Beira; Loures/Odivelas e Lisboa Norte (que vai incluir o Hospital de Santa Maria, o maior do país).
Mas este modelo de Unidade Local de Saúde será mesmo eficiente, a ponto de justificar uma mudança tão profunda na organização dos cuidados de saúde? Há pelo menos três entidades (Ordem dos Médicos, Associação das Unidades de Saúde Familiar e a Federação Nacional dos Médicos) que questionam as ULS e pedem mudanças na orgânica e na composição da direções das ULS.
“As ULS existem há 20 anos e não resolveram problema nenhum”
“As ULS existem há 20 anos e não resolveram problema nenhum”, garante, ao Observador, o presidente da Associação Nacional das Unidades de Saúde Familiar (USF-AN), um tipo de centro de saúde que representa 40% das unidades a nível nacional. “Foi com preocupação que soubemos que era intenção da DE-SNS abrir mais”, diz André Biscaia.
Já a posição da Ordem dos Médicos (OM) vai no mesmo sentido. “A criação das novas ULS não é, necessariamente, uma boa notícia”, afirmou o bastonário, Carlos Cortes, em abril, à agência Lusa. “Não é um modelo que tenha dado provas de ser eficiente“, sublinhou ainda o responsável, acrescentando que “a esmagadora maioria das ULS, neste momento, não está a funcionar”.
Já a FNAM, a Federação Nacional dos Médicos, um dos dois maiores sindicatos médicos do país, diz mesmo que “repudia” a criação de novas ULS que, realça, “são ineficientes e não constituem resposta aos problemas basilares do SNS”.
Um dos pontos que mais críticas gera entre os médicos é o da falta de integração dos centros de saúde neste modelo. A OM garante que, nas ULS já existentes, se tem verificado uma “fraca integração dos cuidados de saúde primários”. Há “um desequilíbrio” e o papel da Medicina Geral e Familiar é desvalorizado, sublinha o bastonário. Carlos Cortes pede à direção do SNS que “corrija a trajetória que tem vindo a tomar” e propõe que conselhos de administração das ULS passem a integrar um médico da Medicina Geral e Familiar, bem como um médico de Saúde Pública.
A ULS têm um único conselho de administração e uma única direção clínica, que gerem tanto os hospitais como os centros de saúde. O problema, diz André Biscaia, é que “os hospitais não conhecem a cultura dos cuidados de saúde primários”. “O que é que se pretende com esta medida? Instituir uma cultura hierárquica, de comando e controlo, dos hospitais sobre os Cuidados de Saúde Primários?”, questiona.
Por isso, o médico afirma que, sob o ‘chapéu’ de um conselho de administração comum, “deveriam existir várias direções clínicas, conhecedoras da cultura de cada instituição”. “Tem de haver uma revisão do modelo de funcionamento”, reforça o médico.
O presidente da USF-AN diz também que a generalização das ULS pode fazer com que a “capacidade financeira dos centros de saúde seja desviada para os hospitais, para os internamentos e serviços de urgência”, aumentando ainda a mais a centralidade dos hospitais no sistema de saúde. Aliás, segundo a FNAM, nas ULS existentes verificou-se um aumento da recorrência ao serviço de urgência (um aparente contra-senso numa altura em o governo aposta na promoção dos recurso aos centros de saúde como a porta de entrada do SNS para situações de doença aguda pouco grave).
Regulador da Saúde ‘arrasou’ ULS, mas Direção Executiva desvaloriza as conclusões
Em 2015, a ERS (Entidade Reguladora da Saúde) realizou um estudo sobre o desempenho das ULS, entre 2011 e 2013, e as conclusões não favorecem estas unidades. “Está a trabalhar-se numa premissa errada”, garante André Biscaia.
Segundo a ERS, o tempo médio de internamento até à alta, nos utentes das ULS foi superior ao dos hospitais não integrados em ULS; o número de cirurgias em ambulatório em percentagem do total de cirurgias foi mais baixo nos hospitais pertencentes às ULS versus hospitais não ULS; em quase todos os hospitais das ULS não existiram ganhos ao nível da coordenação entre Cuidados de Saúde Primários e Hospital, nomeadamente com redução de hospitalizações desnecessárias; os tempos máximos de resposta garantida não foi cumpridos nas ULS; os hospitais das ULS têm menos recursos do que os hospitais não integrados; ou os atrasos para atendimentos agendados são maiores nas ULS.”
No entanto, a direção executiva desvaloriza o estudo do regulador da saúde, que diz ao Observador, “tem falhas técnicas” e “usa indicadores cujo rationale é pouco habitual na avaliação de processos de integração ou de resultados de unidades de saúde”. Em vez disso, prefere basear-se numa dissertação de mestrado que garante ter encontrado “ganhos de perceção de integração de cuidados por parte dos colaboradores nas ULS”. O organismo liderado por Fernando Araújo admite, “contudo, que os ganhos de integração podem não implicar per se melhor nível de resultados em saúde”.
Nas respostas enviadas ao Observador, a entidade diz ainda que “a reorganização em curso no SNS português justifica-se pela transição epidemiológica e envelhecimento da população, características às quais o modelo tradicional de resposta, onde coexistem ACeS, hospitais e outros prestadores individuais, já não consegue dar uma resposta adequada”.
“Portanto, não há estudos que suportem a decisão agora tomada”, insiste André Biscaia, que é bastante crítico do alargamento das ULS. O responsável diz tratar-se de uma decisão meramente política e não baseada em critérios técnicos, tomada para evitar atribuir mais autonomia aos ACES. “As finanças nunca aceitarão que os ACES tenham autonomia financeira e autonomia na contratação de recursos humanos”, afirma.
Já a FNAM também salienta que o modelo “coarta a importante autonomia financeira dos diferentes modelos de organização, e fica à margem da real integração de cuidados, centrados em pessoas”. Como alternativa, o sindicato defende um outro modelo de organização dos cuidados: os Sistemas Locais de Saúde — que diz, “integram a promoção da saúde, permitindo majorar a utilização dos recursos, evitando o desperdício e colocando os meios onde eles são efetivamente mais necessários”.