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Sergei Skripal passou anos suficientes no meio dos serviços secretos e da espionagem para saber que o facto de, em 2010, a Rússia ter acordado em libertá-lo, num programa de troca de espiões com a Grã-Bretanha, de ter sido formalmente perdoado pelo presidente russo Dmitry Medvedev e de ter iniciado nova vida na Grã-Bretanha não significava que as contas estavam saldadas e que poderia viver pacatamente em Salisbury até morrer de velhice (ver Quem é o agente duplo Sergei Skripal e porque foi envenenado?).

A espionagem sempre foi uma profissão de alto risco e tem uma longa lista de “acidentes de trabalho”. A selecção de nomes que se segue respeita apenas aos séculos XX e XXI e mistura gente famosa e menos conhecida, abnegada ou oportunista, destemida ou tíbia, movida pela cobiça ou por ideais; uns foram astutos, manipuladores e calculistas, outros foram apenas peças numa engrenagem, uns mudaram o curso da história, outros foram completamente irrelevantes. Com uma excepção, todos pagaram com a vida.

Mata Hari

Mata Hari é a mais célebre espia de todos os tempos, mas a sua fama está muito longe de corresponder à sua real importância na marcha dos acontecimentos – o que não impede que a sua história pessoal seja das mais apelativas do mundo da espionagem.

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Mata Hari, 1906

Margaretha Zelle nasceu em Leeuwarden, na Holanda, em 1876, e teve uma juventude marcada pela falência do pai, pelo divórcio dos pais, pela morte da mãe e por tentativas de abuso sexual por um professor da escola onde estudava para ser educadora de infância, que levaram a que o padrinho, que assumira o papel de tutor, a retirasse da escola. Aos 18 anos e sem perspectivas de futuro, Zelle sentiu-se arriscou um salto no escuro: respondeu a um anúncio de jornal do capitão Rudolf McLeod, oficial do exército colonial holandês nas Índias Orientais, que buscava uma esposa. O casamento teve lugar em Amesterdão em 1895 e o casal instalou-se em Java, mas à mudança de cenário não correspondeu um melhoramento na vida de Margaretha Zelle (agora McLeod): o marido, alcoólico e 20 anos mais velho do que ela, espancava-a regularmente e mantinha uma amante às claras.

O casal regressou à Holanda em 1902 e separou-se quatro anos depois e Margaretha McLeod tornou-se artista de circo em Paris. Em 1905 percebeu que os meses gastos na aprendizagem de danças tradicionais javanesas poderiam ter utilidade prática numa Europa fascinada por tudo o que era oriental e reorientou a sua carreira, passando a apresentar-se como dançarina exótica, sob o nome artístico de Mata Hari e fazendo-se passar por princesa javanesa e iniciada em danças sagradas hindus.

Mata Hari, 1905

A fragilidade e inverosimilhança dos seus supostos vínculos orientais era mais que compensada pela ousadia do guarda-roupa e da performance, pela personalidade exuberante, pela atitude desempoeirada e pela habilidade em promover-se, pelo que rapidamente se tornou numa estrela do show business e granjeou uma sucessão de amantes e parceiros ocasionais entre milionários, banqueiros e industriais. Se as suas actuações eram bem pagas e os seus amantes a cumulavam de presentes, o perdulário trem de vida de Mata Hari acabava por exceder frequentemente os seus rendimentos, pelo que muitas vezes se viu enredada em dívidas e foi forçada a, temporariamente, mudar-se para habitações mais modestas.

Com a eclosão da I Guerra Mundial, a sua sempre periclitante situação financeira, aliada à liberdade de movimentos decorrente da sua nacionalidade holandesa (a Holanda era um país neutral), ao seu poliglotismo e à vasta rede de conhecimentos na alta sociedade europeia – militares, aristocratas, empresários, banqueiros – que estabelecera na carreira de dançarina, tornaram-na, aos olhos dos serviços secretos europeus, numa espia em potencial. Restava saber para que lado.

Em 1916, Mata Hari tornou-se amante do jovem capitão Vadim Maslov, um piloto do Corpo Expedicionário Russo que combatia ao lado dos franceses na Frente Oriental. Quando, no Verão de 1916, Maslov foi abatido num combate aéreo, perdendo a vista em resultado dos ferimentos, Mata Hari empreendeu diligências para o visitar no hospital militar alemão em que estava internado. Os serviços secretos franceses lembraram-se de que, antes da guerra, Mata Hari tinha dançado várias vezes para Guilherme, o príncipe herdeiro do trono alemão, que se tinha tornado numa figura proeminente na guerra em curso, nomeadamente pelo facto de ser o comandante do V Exército e do Grupo de Exércitos do Príncipe Herdeiro, uma formidável máquina de guerra que chegou a englobar sete exércitos.

O príncipe herdeiro Guilherme, 1914

Os franceses propuseram a Mata Hari conceder-lhe autorização para visitar Maslov, na condição de tentar obter segredos militares alemães e Hari, sempre afligida por dívidas, acedeu mas exigiu um milhão de francos pelo serviço. O acordo foi firmado (mas os franceses nunca pagaram o combinado) e Mata Hari rumou à Bélgica para tentar apoderar-se dos segredos militares alemães. A empresa tinha muito de lunático e leviano, já que os serviços de informação franceses estavam, como é habitual, muito mal informados: mesmo que, contra todas as probabilidades, Hari conseguisse insinuar-se junto do príncipe herdeiro Guilherme, os dotes militares deste eram, essencialmente, uma invenção dos serviços de propaganda alemães: o príncipe era um bon vivant com mais interesse em festas, mulheres e bebida do que em obuses, fortificações e arame farpado e a sua chefia militar era meramente nominal, pois quem decidia tudo era o chefe de Estado-Maior do V Exército, Konstantin Schmid von Knobelsdorf.

O príncipe herdeiro Guilherme (segundo a contar da esquerda) estava mais longe da imagem difundida pela propaganda alemão do que da propaganda francesa, que o apodava de “megalómano microcéfalo” – e, com efeito, a sua cabeça era invulgarmente pequena

Seja como for, a ida de Mata Hari à Bélgica não lhe proporcionou nenhum ensejo de se encontrar com o príncipe herdeiro. E quando, no final de 1916, abordou o adido militar alemão em Madrid, o major Arnold Kalle, com o pretexto de tentar marcar um encontro com Guilherme, acabou antes por propor a Kalle a venda de segredos militares franceses.

Quando Kalle comunicou por rádio com Berlim, ufanando-se dos elementos relevantes obtidos através do “agente H-21”, os serviços secretos franceses interceptaram a mensagem e não precisaram de muitas investigações para descobrir que o agente H-21 era Mata Hari. Na verdade, o chefe de informações do Exército Alemão ficara profundamente desiludido com a inutilidade das informações fornecidas por Mata Hari e é possível que a mensagem de Kalle, transmitida num código que os alemães sabiam já ter sido decifrado pelos franceses, pode ter sido uma manobra deliberada para punir a espia, entregando-a ao inimigo.

Em Dezembro de 1916, os serviços de informação franceses montaram uma armadilha a Mata Hari – passaram-lhe informação verdadeira mas inútil, que desencadeou nos alemães a reacção previsível. Ficou assim confirmado, ainda que circunstancialmente, que Mata Hari estava a passar informação aos alemães, o que levou a que fosse detida a 13 de Fevereiro.

Mata Hari quando da sua detenção, a 13 de Fevereiro de 1917

No julgamento, iniciado a 24 de Julho de 1917, a “princesa javanesa” começou por repudiar as acusações de espionagem – “Prostituta sim, mas traidora, nunca!” – e acabou por admitir que espiara, mas que toda a informação que fornecera aos alemães era irrelevante – o que parece ter sido verdade. A acusação tinha outro entendimento e atribuía-lhe a culpa na morte de 50.000 soldados franceses. Todas as semanas morriam na Frente Ocidental dezenas de milhares de soldados, franceses, britânicos ou alemães, sobretudo devido à incompetência e obtusidade dos seus generais, mas a França precisava de uma justificação publicamente apresentável para os fiascos militares na Primavera de 1917 e Mata Hari era o bode expiatório ideal – não só era estrangeira como, tal como argumentou o capitão Pierre Bouchardon, o responsável pela acusação, era “destituída de escrúpulos, estava habituada a usar os homens para os seus fins – enfim, o tipo de mulher que nasceu para ser espia”.

[Excerto do filme Mata Hari (1931), com Greta Garbo no papel principal e realização de George Fitzmaurice. Após a entrada em vigor do Código Hays, que impunha aos estúdios a auto-censura, a cena de dança erótica junto da estátua de Shiva foi severamente cortada, sobretudo na parte final em que Garbo surgia quase semi-nua]

https://youtu.be/jN4v88F1dNs

Mata Hari foi condenada à morte e executada, a 15 de Outubro de 1917, por um pelotão de 12 oficiais franceses, que a espia terá enfrentado destemidamente: reza a lenda que recusou ser amarrada e vendada e como último gesto soprou um beijo para os seus executores.

Andrée Borrel

Quando a II Guerra Mundial rebentou, Andrée Borrel tinha atrás de si uma adolescência como maria-rapaz no subúrbio de Paris onde nascera (em 1919) e uma vã incursão a Espanha para tentar dar apoio à moribunda causa republicana. Em Outubro de 1939 fez um curso-relâmpago de enfermagem que teve oportunidade de pôr em prática quando os exércitos nazis invadiram a França e desbarataram os exércitos aliados. A rendição, assinada a 22 de Junho de 1940, dividiu a França em duas: o Norte fica sob ocupação alemã, o Sul fica confiado ao governo ultra-conservador de Vichy. Borrel estabeleceu-se, com o seu companheiro Maurice Dufour, numa casa com vista para o Mediterrâneo, perto de Perpignan, na França de Vichy e perto de Espanha, que era um nó numa rede de evasão, que fazia sair pela fronteira espanhola os soldados aliados que não tinham sido evacuados em Dunquerque e pilotos abatidos pelos alemães e pretendiam prosseguir a luta contra o III Reich.

Em Dezembro de 1941, os alemães romperam a rede e Borrel e Dufour escaparam por um triz, fugindo para a Grã-Bretanha através de Espanha e Portugal – Borrel passou alguns meses em Lisboa, trabalhando para o gabinete de propaganda da França Livre.

Borrel em 1942, com o uniforme da FANY (um corpo de enfermagem)

Ingressou no SOE (Special Operations Executive), responsável pelas acções de espionagem e sabotagem na Europa ocupada, e em Setembro de 1942, foi largada de pára-quedas em França, para desempenhar funções de correio na rede de evasão Prosper-Physician, dirigida por Francis Suttill, onde desenvolveu uma acção tão meritória que ascendeu a n.º 2 da hierarquia. Mas a Gestapo andava em cima da rede Prosper-Physician e em Junho de 1943 prendeu Borrel, Suttill e outros elementos.

Em Maio de 1944, Borrel foi transferida, com outras mulheres do SOE, para uma prisão em Karlsruhe, na Alemanha. O tratamento era melhor que nos campos de concentração, mas a máquina nazi não adormecera: em Julho, Borrel e três companheiras do SOE foram levadas de volta para território francês, mas desta vez para um campo de concentração, perto da aldeia de Natzwiler (Natzweiler, para os alemães), na Alsácia. No próprio dia da chegada ao campo, Borrel e as suas três camaradas foram executadas com uma injecção de fenol.

Campo de concentração de Natzweiler-Struthof

Richard Sorge

Em contraste com os incontáveis espiões amadores, de uma indiscrição, petulância e inépcia dignas de uns irmãos Dupondt, que proliferaram durante a II Guerra Mundial, Richard Sorge era um profissional compenetrado e focado.

Sorge nasceu em 1895 nos arredores de Baku (hoje no Azerbaijão e então parte do Império Russo), de pai alemão (um engenheiro da indústria petrolífera) e mãe russa. A família mudou-se passado pouco tempo para a Alemanha e foi aí que Richard Sorge foi educado. Combateu no exército alemão na I Guerra Mundial, na qual entrou com convicções políticas de extrema direita e saiu marxista – a “conversão” ocorreu durante a convalescença de ferimentos graves sofridos em combate, que o deixaram a coxear ligeiramente para o resto da vida.

Richard Sorge no hospital, 1915

Após a guerra emigrou para a URSS e foi prontamente recrutado pelos serviços secretos bolcheviques, que o enviaram sucessivamente para a Grã-Bretanha, Alemanha – onde se fez membro do Partido Nazi – e China. A experiência adquirida no Extremo Oriente valeu-lhe ser encarregue, em 1933, de montar uma rede de espionagem no Japão, país que a URSS encarava com grande apreensão, dadas as claras ambições expansionistas nipónicas na Ásia continental – em 1931, as tropas japonesas do Exército de Cantão tinham arrebatado a Manchúria à China e fundado o estado-fantoche de Manchukuo – e a memória ainda fresca das derrotas esmagadoras sofridas pelos russos durante a Guerra Russo-Japonesa de 1904-05.

Sorge preparou-se cuidadosamente para a sua missão: voltou à Alemanha para se insinuar nos meios nazis (e a tal ponto ganhou a confiança deles que Joseph Goebbels fez questão de estar presente no seu jantar de despedida), conseguiu tornar-se correspondente no Japão dos jornais Berliner Börsen Zeitung e Tägliche Rundschau, a que somaria depois o mais prestigiado periódico alemão, o Frankfurter Zeitung, e muniu-se de cartas de recomendação para a embaixada alemã em Tóquio. A sua verdadeira missão era apurar as se o Japão estaria a planear um ataque à URSS, mas, se este alguma vez foi seriamente considerado, os desenvolvimentos ocorridos em Verão de 1939 fizeram dissipar este perigo. As escaramuças fronteiriças entre o Exército de Cantão e o Exército Vermelho escalaram e na batalha de Khalkhin Gol, na Mongólia, o general Zhukov infligiu uma pesada derrota aos japoneses, o que fez com que Tóquio redireccionasse as suas ambições territoriais para o Sudeste Asiático. Ao mesmo tempo, a Alemanha e a URSS anunciaram, para pasmo de todo o mundo, a assinatura de um pacto de não-agressão, o que afastava o perigo de a URSS se ver entalada entre dois inimigos.

O cartão de correspondente do Frankfurter Zeitung de Richard Sorge

Apesar do aliviar da tensão, Sorge continuou o seu trabalho. Ganhara a confiança dos nazis em Tóquio mas as suas informações mais preciosas provinham de um colaborador muito bem colocado: Hotsumi Ozaki, jornalista e especialista em relações sino-nipónicas que se tornara conselheiro do primeiro-ministro japonês, o príncipe Konoe. Ozaki não só tinha acesso a informação privilegiada como, enquanto conselheiro, tinha o poder de influir nas decisões do governo japonês.

Hotsumi Ozaki

Em Abril de 1941, as fontes de Sorge na embaixada alemã deram-lhe conta de que os preparativos para a invasão da URSS pela Alemanha estavam em marcha, mas Stalin, que se convencera de que Hitler tinha demasiado a perder com o rompimento do pacto de não-agressão, obstinou-se em ignorar os avisos de Sorge, desvalorizando-o como “um mentiroso de merda que se estabeleceu no Japão graças a algumas pequenas fábricas e bordéis” (ver Sabotadores e tinta invisível: Os segredos que decidiram a II Guerra Mundial).

Mas as informações vindas de Sorge (e de muitas outras fontes que Stalin também escolheu ignorar) sobre a Operação Barbarossa eram fidedignas, como se percebeu a 22 de Junho de 1941. A rápida progressão das forças alemãs até perto de Moscovo deixou Stalin hesitante em chamar as tropas estacionadas no Extremo Oriente, pois continuava a recear um ataque japonês, apesar do Pacto de Neutralidade Soviético-Japonês assinado em Abril de 1941 (em resultado da arrogância de Hitler, que nunca informara o aliado japonês das suas reais intenções quanto à URSS).

Richard Sorge, 1941

Desta vez Stalin deu crédito ao “mentiroso de merda” quando, em Setembro e Outubro de 1941, Sorge lhe garantiu que os japoneses não iriam atender o pedido de Hitler para atacar a URSS por Leste – a informação proveio de Ozaki, que, aliás, pugnara por essa decisão nas reuniões dos conselheiros do primeiro-ministro.

Stalin convocou apressadamente as forças na Sibéria e Extremo Oriente – 18 divisões, 1700 tanques, 1500 aviões – que chegaram mesmo a tempo de suster o avanço das exaustas e enregeladas tropas alemãs sobre Moscovo. Foi talvez o momento da II Guerra Mundial em que a espionagem teve o papel mais decisivo no curso dos acontecimentos.

Mas os seus protagonistas tinham os dias contados: a Kempeitai, a polícia secreta japonesa, estava conscientes de uma actividade de transmissões radiofónicas a partir de Tóquio, que associaram a actividades de espionagem, embora não lograssem determinar a sua origem nem quebrar a sua cifra. No Verão de 1941, os serviços secretos nazis, preocupados com fugas de informação cuja origem fora rastreada até à embaixada em Tóquio, decidiram investigar Sorge, missão que foi confiada a Josef Meisinger, o oficial da Gestapo da embaixada. Sorge apercebeu-se da manobra e estabeleceu laços de amizade com Meisinger, que acabou por fazer um relatório em que confirmava a fidelidade de Sorge ao III Reich. Porém, Meisinger cometeu, perante um oficial da Kempeitai, a inconfidência de que estivera a investigar Sorge, o que os japoneses, equivocamente, perceberam como sendo sinal de que os alemães tinham fortes motivos para suspeitar de Sorge. Investigaram o círculo de relações de Sorge e tropeçaram em Miyagi Yotoku, que era o responsável da rede pelas traduções do japonês. Sob tortura, Miyagi denunciou os outros elementos da rede: o operador de rádio Max Clausen foi condenado a prisão perpétua e Sorge e Ozaki foram condenados à forca. O Japão propôs por três vezes à URSS a troca de Sorge por espiões japoneses, mas a URSS recusou sempre e nunca admitiu que Sorge era um agente soviético. Sorge e Ozaki foram enforcados a 7 de Novembro de 1944; as últimas palavras de Sorge foram “Viva o Exército Vermelho! Viva a União Soviética!”.

Apesar desta demonstração de patriotismo, a URSS continuou a ignorar Sorge até ao 20.º aniversário da execução, altura em que surgiram, subitamente, vários artigos celebrando-o como herói nacional, o que, segundo algumas fontes, terá sido iniciativa de Nikita Khrushchev, que nada sabia sobre ele até ver um filme estrangeiro que tinha Sorge como personagem.

Richard Sorge num selo postal soviético, 1965

Richard Sorge foi imortalizado em vários monumentos, numa “ópera patriótica” homónima estreada em 1975 e em selos postais.

“Richard Sorge, herói da União Soviética”, selo postal da RDA, 1976

George John Dasch

Pouco passava da meia-noite de 26 de Maio de 1942 quando um submarino alemão desembarcou George John Dasch e três outros espiões alemães numa praia de Long Island. Tinham uma missão ambiciosa, mas acabaram por ser absolutamente irrelevantes no curso da II Guerra Mundial – o que não quer dizer que a sua história não seja reveladora.

Dasch nasceu em Speyer, na Alemanha, em 1903 e, mentindo sobre a sua idade real – 15 anos –, logrou alistar-se no exército alemão e combater na Bélgica. As penosas condições de vida na Alemanha do pós-guerra fizeram-no embarcar como clandestino num navio rumo a Nova Iorque. Trabalhou em restaurantes, alistou-se na Força Aérea, obteve a cidadania americana e regressou à Alemanha em 1941, alguns meses antes do ataque japonês a Pearl Harbor e da subsequente (e algo desvairada) declaração de guerra de Hitler aos EUA.

Quando o almirante Wilhelm Canaris, chefe da Abwehr, os serviços secretos do Ministério da Defesa alemão, concebeu a Operação Pastorius, que visava empreender acções de sabotagem no território americano, recrutou oito alemães com experiência de vida nos EUA: Dasch, que seria o líder da operação, Ernst Peter Burger, Herbert Hans Haupt, Heinrich Harm Heink, Edward John Kerling, Hermann Otto Neubauer, Richard Quirin e Werner Thiel.

O almirante Wilhelm Canaris, chefe da Abwehr entre 1935 e 1944

Os espiões receberam instrução no fabrico e uso de explosivos e dispositivos incendiários e foram-lhes distribuídos documentos falsos e uma quantia generosa e atribuída uma ampla lista de alvos que incluía centrais eléctricas nas cataratas do Niagara, fábricas de alumínio no Illinois e Tennessee, comportas no Rio Ohio, um viaduto ferroviário e uma oficina de reparação ferroviária na Pennsylvania, uma fábrica de explosivos em Filadélfia e pontes e estações de caminho de ferro em Nova Iorque, para lá de colocação de bombas em espaços públicos, de forma a instaurar um ambiente de terror entre a população civil. Os oito homens foram separados em dois grupos: o de Dasch desembarcou em Long Island, o outro numa praia de Ponte Vedra, na Florida, e reuniram-se em Cincinatti, Ohio, para coordenar as suas acções.

Hell Gate Bridge, uma ponte ferroviária em Nova Iorque, era um dos alvos dos sabotadores liderados por Dasch (foto de 1917, pouco depois da conclusão da ponte)

Mas a Operação Pastorius começou a correr mal desde o princípio: assim que chegou a terra, Dasch foi abordado por um elemento da Polícia Marítima e embora tenha conseguido escapar subornando este, o polícia acabou por comunicar o evento aos superiores e as autoridades não tardaram a dar com os explosivos, detonadores e uniformes alemães que a equipa de Dasch tinha enterrado na areia. Entretanto, Dasch perdeu a coragem e decidiu entregar-se às autoridades americanas e denunciar o plano e conseguiu convencer Ernst Peter Burger a colaborar com ele. A 15 de Junho, Dasch dirigiu-se ao quartel-general do FBI em Washington e contou a sua história ao director-adjunto do FBI, indicando onde podiam ser encontrados os outros sete sabotadores e despejando o “fundo de maneio” da operação (um milhão de dólares a preços actuais) sobre a mesa para corroborar as suas palavras. O FBI, que andava alvoraçado em busca de espiões alemães desde a descoberta do material na praia de Long Island mas não tinha pista alguma, ficou encantado – mas não se mostrou tão generoso para com Dasch quanto este calculara.

Os oito espiões após serem detidos pelo FBI: Dasch é o primeiro a contar da esquerda na fila de cima, Burger está à sua direita

J. Edgar Hoover, o director do FBI, decidiu recolher na íntegra o crédito pela captura dos espiões alemães e omitiu que estes tinham sido entregues pelo seu líder. O país ficou alarmado ao saber da prisão dos oito espiões e começou a olhar com suspeição os alemães e seus descendentes que residiam no país. Perante o clima de nervosismo geral, o presidente Roosevelt decidiu atropelar os procedimentos legais formais e deliberou que o julgamento dos espiões decorresse em segredo e fosse conduzido por uma comissão militar.

Os espiões foram todos condenados à cadeira eléctrica, mas a “delação” de Dasch valeu-lhe a comutação da pena em 30 anos de prisão e a cumplicidade de Burger resultou numa pena de prisão perpétua; os outros seis espiões foram executados a 8 de Agosto de 1942.

O fiasco da Operação Pastorius custou a Canaris um raspanete de Hitler e pôs, praticamente, termo à ideia de realizar operações de sabotagem nos EUA (o desembarque por submarino de mais dois espiões em 1944, no Maine, foi outro fiasco).

Dasch e Burger só cumpriram parte das penas, que o presidente Truman converteu, em 1948, em deportação para a Alemanha

A história teria terminado por aqui se, algures nas décadas de 60 ou 70, o National Socialist White People’s Party (NSWPP), uma organização defensora da supremacia branca que antes se denominara American Nazi Party, não tivesse decidido homenagear os seis espiões executados erguendo, clandestinamente, uma lápide num bosque perto de Washington D.C. A lápide, que só foi descoberta décadas depois, acabou por ser removida pelas autoridades. Mas o American Nazi Party/NSWPP continua vivo, agora (e desde 1983) sob o nome de New Order.

Julius e Ethel Rosenberg

No final da II Guerra Mundial, os EUA tinham graças ao seu arsenal nuclear, uma posição de superioridade militar incontestável. O desenvolvimento da bomba atómica – o Projecto Manhattan – tinha sido um feito tecnológico e logístico excepcional, que contara com o contributo de cientistas de várias nacionalidades – muitos deles alemães, italianos e húngaros, uma amarga ironia para o Eixo –  e que nenhum país estava em condições de replicar.

O sentimento de segurança e superioridade dos EUA sofreu, pois, um rude abalo quando, no início de Setembro de 1949, os peritos nucleares americanos apuraram que os soviéticos tinham detonado uma bomba atómica a 29 de Agosto em Semipalatinsk, no que é hoje o Cazaquistão.

Detonação do primeiro engenho nuclear soviético, o RDS-1

Os serviços secretos ocidentais estavam conscientes de que os soviéticos tinham em curso um programa de produção de armas nucleares, não esperavam é que estivesse tão avançado – as estimativas mais breves para os primeiros testes apontavam para 1953-54. A única explicação que os especialistas em segurança e os governantes e políticos americanos encontraram para a antecipação do primeiro ensaio nuclear soviético foi que a espionagem soviética tinha conseguido subtrair aos EUA os segredos para a construção da bomba atómica.

Os EUA viviam desde 1947 num ambiente de “Red Scare”, ou seja, o receio de que os comunistas estivessem determinados a governar o planeta e tivessem em curso programas de sabotagem e desestabilização dos EUA. A consolidação do domínio soviético na Europa de Leste, o bloqueio a Berlim e a vitória de Mao Tse-Tung na China eram inquietações que o senador McCarthy e a sua Comissão de Actividades Anti-Americanas souberam soube converter em angústia, alarme e paranóia, sentimentos que se exacerbaram quando, a 23 de Setembro, o ainda incrédulo presidente Truman comunicou aos americanos que teria ocorrido uma “explosão atómica” na URSS. O congressista Richard Nixon juntou lenha à fogueira com um artigo no semanário de Washington Journal-American em que exigia explicações a Truman sobre a impunidade da actuação da espionagem soviética e a inoperância das autoridades americanas. Quem ficou mais embaraçado foi J. Edgar Hoover, que se apressou a pôr em campo o seu FBI para identificar e desmantelar a rede de espionagem nuclear soviética.

Detonação do terceiro engenho nuclear soviético, o RDS-3, o primeiro a ser lançado de um avião, a 18 de Outubro de 1951

Quando a pressão para encontrar culpados é muito forte, os culpados aparecem sempre e a 19 de Junho de 1953 o casal Julius e Ethel Rosenberg foi executado na prisão de Sing Sing (Nova Iorque) por ter transmitido à URSS segredos sobre a construção de armas nucleares – foram os primeiros cidadãos americanos a ser executados por espionagem em tempo de paz.

Os Rosenberg eram judeus nova-iorquinos (Julius nascera em 1918, Ethel em 1915) e tinham sido membros de organizações comunistas de juventude, filiando-se depois no Partido Comunista Americano. Julius, que era engenheiro electrotécnico, liderava uma rede de espionagem que obteve informação sobre material bélico norte-americano e tinha como informador no Projecto Manhattan  o irmão de Ethel, David Greenglass.

Um dos diagramas sobre a bomba atómica transmitidos por David Greenglass aos Rosenberg

Phillip Knightley oferece, em The second oldest profession: Spies and spying in the Twentieth Century, uma visão bem diversa do caso Rosenberg: o programa nuclear soviético nunca estivera tão atrasado quanto o Ocidente supusera e a explosão de Hiroshima fizera com que Stalin convocasse ao Kremlin os responsáveis pelo desenvolvimento de material bélico – nomeadamente o Comissário das Munições – e dera-lhes instruções inequívocas: “Tenho apenas um pedido a fazer-vos, camaradas. Dêem-nos armas nucleares no mais curto prazo possível. Hiroshima abalou o mundo. O equilíbrio foi destruído. Dêem-nos a bomba”.

Os soviéticos tiveram, com efeito, acesso a informação secreta proveniente dos EUA e Grã-Bretanha que lhes permitiram acelerar o desenvolvimento da sua bomba, mas as investigações de Knightley levaram-no a concluir que a fonte crucial não foram os Rosenberg mas antes Klaus Fuchs.

Klaus Fuchs, c. 1940

Fuchs era um físico alemão de convicções comunistas que se refugiara na Grã-Bretanha quando Hitler subiu ao poder em 1933 e que, após trabalhar em pesquisa nuclear na Universidade de Birmingham, acabou em Los Alamos, a sede do Projecto Manhattan. Foi aqui que obteve informação sobre a construção de bombas atómicas que transmitiu aos soviéticos, antes de regressar à Grã-Bretanha em 1946. A CIA só se apercebeu das actividades de Fuchs retrospectivamente, em 1949, ao decifrar e examinar antigos registos de transmissões realizadas a partir das instalações de uma delegação soviética em Nova Iorque. A CIA transmitiu esta informação ao MI5 britânico, que interrogou Fuchs em Dezembro de 1949. Este começou por negar as acusações, mas quando foi novamente abordado em Janeiro de 1950 confessou os seus actos de espionagem e indicou que o seu correio tinha sido Harry Gold.

Quando o FBI deteve Gold, em Maio de 1950, este confessou ter agido como correio para Fuchs e também para Greenglass, que foi detido em Junho. Não tardou que o FBI chegasse aos Rosenberg.

Harry Gold, após ter sido detido pelo FBI

O julgamento da rede de espionagem começou em Março de 1951 e Greenglass desempenhou nele o papel de principal testemunha de acusação contra os Rosenberg – o seu testemunho contra Ethel foi particularmente decisivo, ao atribuir-lhe a dactilografia de muitos documentos.

Décadas mais tarde, Greenglass admitiria que o fizera em troca de uma redução da sua pena e de imunidade para a sua esposa, Ruth, que também fazia parte da rede e que fora quem realmente se ocupara da dactilografia. Ruth Greenglass escapou incólume – no julgamento confirmou o testemunho do marido e incriminou os Rosenberg – e David Greenglass, que fora quem efectivamente, obtivera a informação nuclear secreta, foi condenado a 15 anos de prisão, acabando por ser libertado após cumprir dez. Gold, o correio, foi condenado a 30 anos de prisão, dos quais cumpriu 15. Entretanto, na Grã-Bretanha, Fuchs já fora julgado, em Março de 1950, e condenado a 14 anos de prisão, a pena máxima por espionagem, mas não foi acusado de traição porque, à data dos factos, a URSS era aliada da Grã-Bretanha. Seria libertado após cumprir nove anos.

A justiça foi menos benigna com os Rosenberg: a 5 de Abril de 1951, foram condenados à morte.

Os Rosenberg não confessaram os crimes de que eram acusados e muitos americanos criam que eles eram inocentes e que o julgamento fora manipulado – logo a começar na nomeação do juiz – e tivera várias irregularidades processuais. Houve sucessivos apelos para o Supremo Tribunal de Justiça – sete, todos rejeitados – e uma campanha pedindo clemência para os Rosenberg, alegando que, mesmo que fossem culpados, a pena era demasiado pesada para os seus actos. O caso assumiu proporções internacionais, com figuras de conhecida simpatias comunistas – Pablo Picasso, Bertolt Brecht, Frida Kahlo, Diego Rivera – e não comunistas – Albert Einstein, Fritz Lang, o papa Pio XII – a juntarem-se ao pedido de clemência e com  Jean-Paul Sartre classificou o julgamento como “um linchamento legal que mancha de sangue toda a nação”. O presidente Eisenhower não atendeu os pedidos e os Rosenberg foram electrocutados a 19 de Junho de 1953.

Julius Rosenberg

Os filhos dos Rosenberg continuaram durante anos a defender a inocência dos pais, que teriam sido meros bodes expiatórios – vítimas do clima paranóico do “Red Scare” – mas o desmembramento da URSS e a subsequente desclassificação de parte dos arquivos sobre o período da Guerra Fria confirmou que Julius e Ethel Rosenberg efectivamente tinham desenvolvido acções de espionagem em favor da URSS. Porém, conclui Knightley, nem os Rosenberg nem Fuchs podem ser considerados responsáveis por ter “entregado a bomba atómica aos soviéticos. Os espiões poderão ter contribuído para antecipar a data da primeira bomba soviética, mas até isto é duvidoso e terá sido mais uma questão de meses do que de anos. Em última análise, as suas acções apenas aceleraram o fim de um processo tão fútil quanto tentar manter secreta a descoberta da roda”.

A analogia entre a roda e a bomba atómica é uma falácia colossal e a verdade é que, apesar dos colossais progressos científicos e tecnológicos ocorridos desde o Projecto Manhattan, nenhum país conseguiu desenvolver bombas nucleares sem transferência – voluntária ou mediante espionagem – de conhecimentos e tecnologia, como realça Matthew Kroening em Exporting the bomb: Technology transfer and the spread of nuclear weapons. Foram os EUA que forneceram à Grã-Bretanha e França os conhecimentos necessários e suspeita-se de que foi a França que “vendeu a bomba” a Israel, à Índia e à África do Sul; foi a URSS que habilitou a China a fabricar armamento nuclear e foi a China que transferiu esse conhecimento para o Paquistão, de forma a ter um contrapeso ao facto de a sua eterna rival Índia se ter tornado também numa potência nuclear; e foi o Paquistão, sobretudo através do físico nuclear A.Q. Khan, que ajudou a Coreia do Norte a juntar-se ao clube nuclear.

Oleg Penkovsky

O coronel Oleg Penkovsky é uma figura incontornável da história da espionagem: foi, no seu tempo, o oficial soviético de mais alta patente a providenciar informação secreta ao Ocidente, “o mais importante espião da Guerra Fria, o elemento preponderante no triunfo do presidente Kennedy sobre Khrushchev durante a crise dos mísseis de Cuba […] e um homem bravo e honrado que desempenhou papel capital no evitar de uma guerra nuclear” (Knightley). Ou poderá não ter sido nada disto.

Foto obtida por um avião de reconhecimento americano U2 que revela a instalação de mísseis soviéticos em Cuba, 1962

Foi em 1955 que os serviços secretos ocidentais repararam pela primeira vez em Penkovsky, que era, à data, adido militar na embaixada soviética em Istambul, e descortinaram no seu comportamento vagos indícios de que poderia ser aliciado a trair o seu país. O primeiro contacto partiu de Penkovsky e só teve lugar em 1960 em Moscovo, quando Penkovsky trabalhava para o GRU, o departamento de informações do Exército Vermelho. Após Penkovsky ter oferecido, sem sucesso, os seus serviços à CIA, foi abordado por Greville Wynne, um homem de negócios que trabalhava para os serviços secretos britânicos e que se tornou no principal canal para o abundante caudal de informação fornecido por Penkovsky a partir de 1961: para além de informação resultante da sua experiência pessoal nas Forças Armadas soviéticas, Penkovsky pôs à disposição do Ocidente um total de “5.000 documentos sobre mísseis, política soviética, operações do KGB e estratégia militar” (Knightley).

O presidente Kennedy (à direita) reunido com os pilotos dos U-2 que sobrevoaram Cuba e o general da Força Aérea Curtis Le May, na Casa Branca

Entre os elementos de maior relevância estavam os que davam conta de que as dimensões reais do arsenal soviético eram menores do que tinha sido estimado e que os sistemas de combustível e orientação dos mísseis soviéticos tinham sérias limitações. Acontece que uma das promessas de Kennedy na campanha eleitoral de 1960 tinha sido a anulação do “missile gap” com a URSS, isto é, do desfasamento existente entre as capacidades de ataque nuclear dos dois países. Ora, após Kennedy ter tomado posse em Janeiro de 1961, a CIA informou-o de que não havia “missile gap” e de que os dois países estavam empatados nesse domínio. Porém, a confrangedora inépcia demonstrada pela CIA na fracassada tentativa de invasão de Cuba em Abril de 1961 – o ridículo episódio da “Baía dos Porcos” – fez com que Kennedy passasse a encarar com suspeição todas as informações provenientes da CIA, incluindo as que diziam respeito ao relativo atraso do programa balístico soviético. Mas quando um espião credível deu informação coincidente com a CIA, Kennedy acreditou e sentiu-se à vontade para fazer voz grossa com Khrushchev, em Outubro de 1962, forçando a URSS a retirar os mísseis de médio alcance que começara a instalar em Cuba.

Um avião de reconhecimento americano Lockheed SP-2 Neptune sobrevoa um cargueiro soviético que zarpou de Cuba com material bélico de retorno à URSS; Dezembro de 1962

A 22 de Outubro, algumas horas antes de Kennedy anunciar na televisão a descoberta de que os soviéticos estavam a instalar mísseis em Cuba, Penkovsky foi preso pelas autoridades soviéticas. O seu “intermediário” Wynne foi capturado em Budapeste alguns dias depois e enviado para Moscovo, a fim de ser julgado conjuntamente com Penkovsky. Wynne foi condenado a oito anos de prisão, de que cumpriu apenas um, pois foi trocado em 1964 por Konon Molody, um agente soviético que, sob o nome de Gordon Lonsdale, liderara uma rede de espionagem na Grã-Bretanha. Penkovsky foi condenado à morte e executado a 16 de Maio de 1963.

Porém, o mundo da espionagem é dúbio e nebuloso por natureza e coexistem versões bem diversas da actuação e motivações de Penkovsky. Há quem sugira que foram os serviços secretos soviéticos a usar Penkovsky como uma fonte de desinformação, fazendo crer ao Ocidente que o programa nuclear e balístico da URSS estava bem mais atrasado do que na realidade, induzindo assim um sentimento de falsa segurança nos seus rivais. Há quem avente que Penkovsky foi “empurrado” para os braços dos serviços secretos ocidentais por uma facção anti-Khrushchev no Kremlin, que tinha receio de que a linha dura seguida pelo Premier soviético tivesse consequências catastróficas – a informação sobre o programa nuclear e balístico da URSS providenciada por Penkovsky teria por fito incutir confiança em Kennedy, permitindo-lhe fazer frente ao plano de Khrushchev em Cuba e levando o dirigente soviético a, daí em diante, adoptar uma linha mais moderada na condução da política externa.

Outros ainda sugerem que a informação transmitida por Penkovsky era essencialmente irrelevante e que a sua “traição” terá sido uma armadilha para atrair e incriminar Wynne, pois precisavam de ter nas suas mãos um espião ocidental para trocar por Konon Molody, que tinha sido preso em 1961 (é uma teoria rebuscada, mas os serviços secretos movem-se quase sempre por vias absurdamente tortuosas).

Aleksandr Litvinenko

A Rússia de Putin não tem nada contra os oligarcas – na verdade, alguns deles até foram colegas de Putin no FSB (Serviço Federal de Segurança), os serviços secretos criados em 1995 para suceder ao FSK, que por sua vez era herdeiro do KGB – desde que se ocupem dos seus negócios, mesmo que recorrendo a práticas menos limpas ou transparentes, e não apoiem a oposição ou exprimam posições críticas sobre o governo.

Os oligarcas Mikhail Khodorkovsky e Boris Berezovsky desrespeitaram esta regra e pagaram caro por isso. A 13 de Novembro de 1998, Berezovsky escreveu uma carta aberta a Vladimir Putin, que era uma estrela em ascensão na Rússia de Yeltsin e fora recentemente nomeado director do FSB, em que acusava altos funcionários do Departamento de Análise e Combate ao Crime Organizado do FSB de ter ordenado o seu assassinato. Se esta acusação era de extrema gravidade – até porque Berezovsky tinha sido um dos mais importantes apoiantes da eleição de Yeltsin – o caso assumiu contornos ainda mais escandalosos quando, quatro dias depois, Aleksandr Litvinenko e quatro colegas seus no Departamento de Análise e Combate ao Crime Organizado deram uma conferência de imprensa em que corroboraram a acusação de Berezovsky e divulgaram que tinham recebido instruções para matar outras figuras do meio económico russo, ou para raptar familiares seus ou para forjar situações comprometedoras para eles.

Putin, que já não ficara agradado com Litvinenko quando, pouco depois da sua tomada de posse à frente do FSB, este o abordara para denunciar a corrupção que grassava no FSB e o conluio desta e de outras agências estatais russas com o crime organizado, nomeadamente dando protecção a barões da droga uzbeques, demitiu imediatamente Litvinenko. Este foi em seguida alvo de um processo por ter excedido as suas competências ao convocar a conferência de imprensa, mas acabou por ser absolvido.

Em Agosto de 1999, Yeltsin nomeou Putin primeiro-ministro e quatro meses depois demitiu-se, inesperadamente, da presidência da Rússia, passando este cargo, por inerência da Constituição Russa, a ser desempenhado por Putin. Com Putin a concentrar poder nas suas mãos, Litvinenko presumiu que a sua vida estaria em risco, pelo que, em 2000, fugiu com a família para Londres, onde obteve asilo político.

Litvinenko em Londres, 2004

A partir de Londres, Litvinenko passou a denunciar sistematicamente os abusos de poder e o fomento de acções terroristas pelo KGB e pelos organismos que lhe sucederam, realçando as ligações do FSB ao crime organizado e, em particular à Mafia Russa. O mesmo fez Boris Berezovsky, que, após uma escalada nas suas divergências com Putin, trocou Moscovo por Londres no mesmo ano que Litvinenko e acabou por alienar progressivamente todos os seus negócios na Rússia. Entre as muitas acusações que lançou contra Putin e a máquina estatal russa, Berezovsky alegou ter sido alvo de pelo menos mais duas tentativas de assassinato em 2003 e 2007

Em Outubro de 2006, uma semana após o assassinato em Moscovo de Anna Politovskaya, jornalista, activista dos direitos humanos e crítica implacável de Putin, Litvinenko atribui o homicídio ao presidente russo. A 1 de Novembro, Litvinenko sentiu-se mal subitamente e deu entrada num hospital londrino; apesar dos cuidados médicos de que foi rodeado, o seu estado de saúde foi declinando e acabou por falecer a 23 de Novembro.

Foi possível apurar que a sua misteriosa enfermidade resultara da ingestão de polónio-210, uma substância radioactiva rara. As investigações policiais concluíram que este fora administrado a Litvinenko num chá que lhe foi servido durante um encontro, nesse mesmo dia, com Andrey Lugovoy e Smitry Kovtun, dois antigos agentes do KGB. A polícia britânica reuniu elementos que a levaram a concluir que Lugovoy e Kovtun já tinham tentado envenenar Litvinenko em duas ocasiões anteriores.

É relevante mencionar, em jeito de remate, que a 23 de Março de 2013, Boris Berezovsky, foi encontrado morto na sua mansão perto de Ascot, no Berkshire. A causa de morte foi apurada como estrangulamento, não sendo claro se se tratou de suicídio ou de homicídio.

E é quase inevitável estabelecer conexão entre Aleksandr Litvinenko e o recente caso de Sergei Skripal: dois antigos agentes dos serviços secretos russos (Litvinenko do FSB, Skripal do GRU) que, ao denunciar o Estado russo como uma espécie de Mafia (Litvinenko) ou ao passar informação secreta para o Ocidente (Skripal), se tornaram em pessoas “indesejáveis” para a Rússia de Putin e que, apesar de refugiados na Grã-Bretanha, foram envenenados com substâncias tão letais quanto inusitadas – polónio-210 (Litvinenko) e o gás de nervos Novichok (Skripal).

Os elementos recolhidos pela polícia sobre o envenenamento de Skripal e da sua fila Yulia foram considerados suficientemente esclarecedores pelo Governo britânico para acusar a Rússia do crime e impor represálias. O governo russo rejeitou liminarmente as acusações e, em tom sarcástico, realçou os aspectos inverosímeis daquelas. Com efeito, admitindo que o Estado russo – ou Putin, ou o FSB, ou o GRU – pretendesse punir Aleksandr Litvinenko e Sergei Skripal, seria mais lógico que tivesse usado um método discreto: uma fuga de gás em casa, um empurrão oportuno do alto de uma varanda à chegada de uma composição de metro, uma falha nos travões numa estrada sinuosa. Porquê recorrer a substâncias extravagantes – polónio-210 e Novichok não são coisas que se comprem na drogaria ou que possam ser encomendadas através da Amazon – que não só garantem que não se tratou de uma morte acidental como indicam que os homicidas pertencem a uma entidade com imenso poder e recursos sofisticados?

Talvez a ideia seja precisamente essa: o “trabalho” é feito de forma profissional, de forma a não deixar indícios factuais e concretos que possam conduzir até ao Kremlin ou resultar numa acusação fundamentada susceptível de ser aceite em tribunal, mas o tenebroso e sofisticado modus operandi, evocativo da Guerra Fria e dos filmes de espionagem, deixa claro que se tratou de uma execução e deixa implícita a identidade do mandante. É uma forma de lembrar a outros candidatos a espiões, traidores e dissidentes que o Kremlin não perdoa e tem um braço longo.