É melhor termos medo, avisa-nos Kendrick Lamar, voz soturna, palavras ditas com gravidade, logo no arranque de Mr. Morale & The Big Steppers. É que ele tem “andado a passar” por “alguma coisa”, a viver algumas coisas, desde que nos apareceu pela última vez com um disco novo há “mil oitocentos e cinquenta e cinco dias”: DAMN.
É assim que arranca o novo álbum do sr. Lamar Duckworth, disco pelo qual boa parte do planeta Terra andou a salivar durante muitos desses 1855 dias, pensando “será desta?”, “é este ano?”, “nunca mais”. Correção: não é exatamente assim. Antes do rapper e cantor de Compton dar o mote, ainda ouvimos uma voz cantar um desejo: “Espero que encontres alguma paz de espírito neste teu tempo de vida”. E ouvimos outra voz pedir, presume-se que à estrela mais consensual do rap atual: “Conta-lhes… conta-lhes a verdade”.
Foram cinco os anos passados desde DAMN., o álbum de “HUMBLE.”, “DNA.”, “ELEMENT.” e “FEAR”, esse disco de (eficientíssimos) “singles” de um músico de caneta bem cuidada que, antes, fizera o hip-hop entrar num novo patamar de sofisticação, simultaneamente lírico-narrativo e melódico, com duas obras-primas chamadas good kid, m.A.A.d city (2012) e To Pimp A Butterfly (2015).
Lamar entrou em 2022 com um estatuto único no hip-hop e raro na música popular contemporânea, que não se explica só pelo sucesso comercial e pela fortuna (outros também têm) ou pelo prémio Pulitzer que já tem em casa — e que nos mais de 70 anos anteriores, nenhum músico fora dos domínios do jazz e música clássica recebera.
Esse estatuto era o de membro do clube restrito de artistas praticamente consensuais: gente que apesar de todo o sucesso, apesar de todo o dinheiro, apesar de toda a popularidade, é vista como realmente original, verdadeiramente inovadora, com um lugar garantido na historiografia futura da evolução da música popular.
Mais ninguém no hip-hop americano — que se propaga por todo o mundo como nenhum outro — tem a mesma credibilidade, o mesmo gravitas e a mesma capacidade de fazer equilibrismo sem tropeçar na linha fina por onde caminham hoje as estrelas da música de quem os críticos não desconfiam. Aliar sucesso, notoriedade e mediatismo à reverência e ao reconhecimento artístico, desde logo daqueles que ainda se julgam fazedores de opiniões (mesmo que já não o sejam, pelo menos com a influência de outrora): eis a glória suprema.
Dito por outras palavras, aliás recuperando as que aqui eram escritas há cinco anos, a 14 de abril de 2017: Kendrick é hoje visto como “o melhor rapper vivo”, a alguma distância de todos os outros, porque concilia a complexidade e profundidade lírica de alguns rappers, poucos (Earl Sweatshirt, Ka, Benny The Butcher, não muitos mais), ao mediatismo e impacto no mundo de algumas outras estrelas de hip-hop, também elas poucas (Drake à cabeça), ainda juntando ao cozinhado uma capacidade de sugerir ao mundo e ao género novos rumos musicais, novas fórmulas rítmicas.
Não é só pela música que o trono do hip-hop é dele. A discografia imaculada (a solo) é decisiva, é certo. A originalidade, que faz com que não passemos o tempo a alimentar a chatíssima discussão trap vs hip-hop clássico, também ajuda. E distingue-o a preocupação de ainda criar discos (e não apenas singles) que possam ser ouvidos futuramente como clássicos, ao invés de os atolar de canções e mais canções indistintas que possam aumentar o número de plays nas plataformas digitais.
A criatividade na utilização da voz (sua e de convidados), que se desdobra em mil e uma entoações distintas — sempre consoante o que a canção e o ritmo estão a pedir —, também é absolutamente única. O flow labiríntico, sempre claro até quando Kendrick carrega no acelerador, é hipnótico. E a noção de música, de composição musical, de enquadramento de rimas em novos ritmos e novos embrulhos instrumentais, permitem-nos descrevê-lo como um grande escritor de canções da contemporaneidade.
Sem todos os seus trunfos musicais nunca Kendrick Lamar seria a estrela do hip-hop que é hoje, mas no seu percurso há uma contenção no modo de estar que lhe dá uma aura mística, quase sagrada, de velho sábio que se move num plano paralelo (para não dizer superior) a todos os outros artistas.
Enquanto outros vão alimentando a sua persona pública, nas redes sociais e no espaço mediático, Lamar é discreto e silencioso. É por isso que cada entrevista é um acontecimento, cada atuação em grandes eventos (como algumas, poucas, galas de prémios) é preparada ao detalhe e marca a diferença, cada álbum é o momento em que percebemos em que fase da vida está, o que anda a pensar, o que quer dizer ao mundo. Recusando a comunicação permanente, dá espaço às canções, aos discos e às suas palavras para respirarem e perdurarem. Parecendo que não, também isto foi ajudando a alimentar a expectativa para este regresso.
Um cronista de génio contraditório
Dividido em duas partes, mais longo do que DAMN. e com uma duração mais próxima à de To Pimp a Butterfly, Mr. Morale & The Big Steppers é, nas letras, Kendrick Lamar no estado mais puro.
É certo que, sobretudo para o público de massa mundial que o ouve e não tem na língua inglesa o primeiro idioma, os versos — ainda por cima disparados à velocidade da luz — não serão tão importantes quanto o modo de rimar, a entoação da voz, a musicalidade das palavras e as batidas de luxo garantidas por produtores como Pharrel Williams, the Alchemist, Boi-1da e muitos mais.
Mas voltemos às letras, ainda assim: em Mr. Morale & The Big Steppers não deixam de estar as referências a Deus e à religião, a gabarolice de mandachuva — colocada ainda assim muitas vezes em contraponto com a comunidade e com a pobreza de Compton em que cresceu —, as críticas ao que o rodeia mas também a si mesmo e aos seus, as chagas e traumas familiares, os vícios e defeitos próprios, as bicadas à “cultura” mas também a sua defesa.
Não é propriamente uma novidade que Kendrick Lamar soe paradoxal ao longo de um disco. Talvez seja por isso que não estranhemos que em “United In Grief”, logo o primeiro tema, tanto pergunte “what is a bitch in a miniskirt?” como nos confesse ao ouvido: “I went and got me a therapist (…) I woke up in the morning, another appointment / I hope the psychologist listenin‘”. Isto tudo para depois nos dar conta da sua fortuna: “Tinha 28 anos, 28 milhões em impostos / comprei um par de mansões, só para praticar [a compra] / 500 [mil] em joias (…) 50 mil para os primos…”.
[“United in Grief”:]
Num tema em que a percussão se destaca, em que Kendrick rima a velocidade alucinante exceto quando o piano entra e quando canta “sofro de forma diferente”, ouvimo-lo gabar-se de ter comprado um Rolex que só usou uma vez e “piscinas infinitas” em que nunca nadou. Do mesmo modo que o ouvimos falar de gente com 21 anos que viu morta quando tinha apenas nove, sobre o “Chad” que “abandonou o seu corpo depois de termos feito FaceTime”. E acaba com versos que são todo um manual para percebermos o fascínio de rappers com o dinheiro, as jóias e os grandes carros:
Poverty was the case [a pobreza era a realidade]
but money wipin’ the tears away [mas o dinheiro está a limpar as lágrimas]
Avança-se por “N95”, canção aparentemente cética da Covid-19 e onde Kendrick enumera também uma série de coisas que acha que são de atirar fora, pelo menos aqui e ali: gente que se aproxima de quem tem fama e dinheiro só para estar na fotografia, o wi-fi, o empréstimo do carro, os “falsos profundos”, os “fake wokes”, os ‘streams’ fabricados e os memes aquecidos a micro-ondas, as “decisões” que ele, Kendrick, deveria tomar e não toma…
Em alguns temas, o disco assume tons de diário em rimas. É isso que se sente em “Worldwide Steppers”, onde, rimando num beat denso e nervoso, Kendrick tanto faz referência a ouvir “Baby Shark” com a filha como confessa “um bloqueio de escrita” que durou dois anos, para logo a seguir recordar experiências sexuais antigas com mulheres brancas (“Whitney asked did I have a problem / I said: I might be racist / Ancestors watchin’ me fuck was like retaliation“) e lamentar que tenham “matado a liberdade de expressão, toda a gente está sensível”.
[“Worldwide Steppers”:]
O tema seguinte, “Die Hard”, aproxima-se do hip-hop cantado e do R&B, valendo mais pela melodia e pelo groove da voz quente de Kendrick, aqui menos acelerada, do que por rimas memoráveis: é uma canção que se imagina como possível single, mais radiofónica e menos polarizadora. O mesmo não acontece com “Father Time”, em que apesar do bom contributo do cantor e compositor Sampha a adoçar o tema, Kendrick volta ao seu passado, aos daddy issues e à relação pouco afetuosa com o pai com o turbo ligado. Não é um single radiofónico, mas é candidato a um dos melhores temas rap do ano.
‘Cause if I cried about it, he’d surely tell me not to be weak
Daddy issues, hid my emotions, never expressed myself
Men should never show feelings, being sensitive never helped
His momma died, I asked him why he goin’ back to work so soon?
His first reply was: “Son, that’s life, the bills got no silver spoon”
Daddy issues, fuck everybody, go get your money, son
[“Die Hard”:]
Para voltarmos a um ponto alto do disco avançamos por “Rich – Interlude”, “Rich Spirit” e “We Cry Together” (esta última com Kendrick Lamar e Taylour Paige a encarnarem um casal a discutir sem freio, bitch’s e fuck you’s arremessados até à exaustão) e chegamos ao final da primeira parte do álbum, com “Purple Hearts”, que valeria destaque nem que fosse apenas pelo arranque da batida e pelos versos finais de Ghostface Killah, histórico rapper dos Wu-Tang Clan.
No lado B, a impressão sai reforçada. Seja em temas que exploram mais a melodia, o canto e uma batida mais festiva, como “Count Me Out”, seja nas rimas de arranque de “Savior” que aludem a J. Cole, Future e Lebron James (eles, tal como o próprio Kendrick, “não são os teus salvadores”, diz o rapper ao ouvinte), Lamar vai mantendo os fãs impressionados com a ligação das batidas à palavra e com a convicção com que as rimas são proferidas, sempre no tempo certo.
Muito haverá ainda de se escrever e descobrir sobre o novo álbum do rapper e cantor que, diz quem o conhece, tem uma serenidade de Gandhi, uma calma imperturbável e uma dedicação à música sem desvios ou vícios — a não ser aquele que confessa neste Mr. Morale & The Big Steppers, no tema “Mother I Sober”: uma adição ao sexo que o fez pôr em risco a relação com a mulher dos seus filhos.
[ouça aqui “Mr. Morale & The Big Steppers” na íntegra através do Spotify:]
Falar-se-á ainda, futuramente, de outros temas e outras letras. Os de “Auntie Diaries”, canção defensora dos direitos trans em que Kendrick Lamar diz “a minha tia tornou-se um homem e tive orgulho nisso” e em que se desculpa por ter usado palavras pejorativas sobre homossexuais no passado (“We ain’t know no better“). Os de “Mr. Morale”. E os da poderosíssima “Mother I Sober”, em que rima em tom soturno dividindo o microfone com o canto triste de Beth Gibbons (Portishead), narrando a história do momento em que a sua mãe foi violada por um familiar (“mother cried, put they hands on her, it was family ties / I heard it all, I should’ve grabbed a gun but I was only five“) e refletindo sobre o impacto disso na vida futura da família.
I never knew she was violated in Chicago, I’m sympathetic
(…)
Now I’m affected, twenty years later trauma has resurfaced
Amplified as I write this song, I shiver ’cause I’m nervous
I was five, questioning myself, ‘lone for many years
(…)
All those women gave me superpowers, what I thought I lacked
I pray our children don’t inherit me and feelings I attract
A conversation not bein’ addressed in Black families
The devastation, hauntin’ generations and humanity
They raped our mothers, then they raped our sisters
Then they made us watch, then made us rape each other
Psychotic torture between our lives we ain’t recovered
(…)
I know the secrets, every other rapper sexually abused
I see ’em daily buryin’ they pain in chains and tattoos
(…)
[“Mother I Sober”:]
Será preciso tempo, muito mais dias, para absorvermos todos o que Mr. Morale & The Big Steppers tem para oferecer, quão mudado está Kendrick Lamar e que efeito pode o seu regresso ter num hip-hop norte-americano que, nas suas ramificações mais populares e mainstream, tem-se revelado liricamente indulgente, poeticamente pobre e musicalmente excessivamente tipificado. O que sabemos já é que o novo rei do rap está de volta, cinco anos depois, e que não desilude no regresso. E daqui para a frente, Kendrick?