Numa altura em que a crise pandémica ameaça parar novamente o país, Francisca Van Dunem quer fazer avançar o combate à corrupção com uma aposta na prevenção e em medidas cirúrgicas que permitam uma maior colaboração entre a Justiça e os arguidos — além de uma aceleração dos tempos dos julgamentos, sempre morosos, dos processos de crime económico-financeiro.
[O essencial da entrevista a Francisca Van Dunem]
Numa manhã soalheira e com o rio Tejo ao fundo, a ministra da Justiça explicou ao Observador as medidas centrais da sua Estratégia Nacional Contra a Corrupção e não fugiu aos temas da atualidade. Comentou de forma original o apoio polémico do primeiro-ministro António Costa à candidatura de Luís Filipe Vieira ao Benfica em vésperas de o dirigente desportivo ser acusado na Operação Lex e defendeu que a lei atual pode permitir uma atenuação especial da pena para Rui Pinto. Mais: a propósito do caso do ex-hacker, a ministra da Justiça defende que os conceitos de prova proibida (que impedem que a informação recolhida ilicitamente por Rui Pinto possa ser utilizada em processo penal) devem evoluir para que seja possível encontrar um equilíbrio entre a privacidade e o acesso à prova. Pelo meio, avaliou como muito positiva a experiência do Tribunal Central de Instrução Criminal, recusando mexer no tribunal onde trabalham Carlos Alexandre e Ivo Rosa, mas defendendo medidas que melhorem o funcionamento daquela instância. Sobre as eleições presidenciais, segue o conselho de recato dado pelo primeiro-ministro: “O meu voto nem às paredes confesso”
Temos connosco a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, no programa “Sob Escuta” da Rádio Observador, para analisar a Estratégia Nacional Contra a Corrupção proposta pelo Governo. A grande aposta passa pela prevenção, com enfoque nas escolas e em ações de formação dos dirigentes e dos funcionários públicos. Em que medida a prevenção pode ser eficaz no combate a esta grande corrupção?
Nunca imaginei estar “Sob Escuta”, mas já que me coloca nesse contexto terei de agir em conformidade… (risos). Se formos capazes de formar cidadãos responsáveis, conscientes dos seus deveres e, sobretudo, ligados a uma lógica de integridade e de interesse pelo bem comum, seguramente que faremos um bom caminho no que diz respeito à prevenção da corrupção. Sei que há muitas pessoas que entendem o contrário, nomeadamente que a estratégia devia partir da repressão e não da prevenção.
A questão é que a prevenção só tem resultados a longo prazo. Os resultados educativos não são imediatos.
É verdade. Mas estamos a ir à raiz do problema — que tem uma origem histórica, sociológica e cultural. Nós vivemos durante muitos anos numa lógica de que passar à frente de alguém era simplesmente ser mais esperto. Pedir uma cunha ou favor a alguém que conhecíamos — tudo isso era um comportamento normalizado. Portanto, precisamos de fazer uma inflexão nessa lógica cultural.
Considera que há a ideia de uma normalização da corrupção instalada na sociedade portuguesa?
Sim, diria que sim. Em muitas circunstâncias, há agentes que podem não ter noção de que o seu comportamento é impróprio. Por isso mesmo, temos uma grande preocupação com a formação de dirigentes e de funcionários públicos ao nível da compreensão de determinados comportamentos que, apesar de não serem explícitos, podem significar uma aproximação de tentativas de práticas corruptivas.
No entanto, a repressão passa uma mensagem social mais imediata e forte. Até porque os cidadãos têm uma perceção de que o sistema de justiça tem dois pesos e duas medidas, consoante o poder económico dos arguidos.
A repressão é indispensável como modelo de prevenção geral. Seja no crime de corrupção, seja noutros. É óbvio que só teremos uma prevenção geral efetiva se tivermos a capacidade de aplicar o Direito em tempo útil para termos sanções dissuasoras. Não tenho dúvidas sobre o valor central da repressão. O que digo, por outro lado, é que a repressão, por mais meios que tenha, nunca terá a capacidade suficiente para acompanhar a evolução destes fenómenos que envolvem cadeias de poder com práticas extremamente opacas que impedem a descoberta da infração e da verdade material.
O que propõe é que a prevenção e a repressão sejam complementares numa estratégia global.
Sim, uma estratégia complementar e integrada.
“O combate à corrupção pode ser financiado com a repressão e a perda de bens”
Estado e privados vão ser obrigados a ter em igual medida planos de prevenção contra a corrupção. Os planos de prevenção já existem no setor público há alguns anos. Fez alguma avaliação da eficácia desses planos?
É verdade que os planos de prevenção já estão em vigor há algum tempo, sobretudo por impulso do Conselho de Prevenção Contra a Corrupção, sendo que os diferentes organismos públicos têm lidado de forma distinta com essa matéria. Não queremos que os planos de prevenção, os códigos de conduta ou os mapas de risco existam só por existir. Ou seja, temos procurado fazer com que as inspeções-gerais dos diferentes ministérios trabalhem, por exemplo, os mapas de risco e inscrevam nos seus planos anuais de atividade essas áreas de risco para serem escrutinadas. Isso permite-nos operacionalizar as medidas de prevenção e faz com que o Conselho de Prevenção Contra a Corrupção possa acompanhar essa matéria.
Estado e privados também vão ser obrigados a ter canais formais de denúncia de alegadas situações ilícitas. Espera que isso leve a um aumento de queixas de corrupção no setor privado?
Admito que sim. Nós falamos muito da corrupção no setor público mas esquecemo-nos com frequência da corrupção no setor privado. Estamos a falar de anos e anos de práticas comerciais tidas como regulares que deixaram de o ser a partir do momento em que o crime de corrupção no setor privado foi instituído em 2008. Por isso, equiparamos o setor privado ao setor público em termos de obrigações e sanções. Essa é a lógica central do regime geral de prevenção contra a corrupção.
Esta estratégia não devia ter um envelope financeiro que permitisse reforçar os meios do Ministério Público e da PJ? Por exemplo, só no caso BES estamos a falar de várias centenas de milhões de euros de bens que foram apreendidos. Por outro lado, a Justiça tem recuperado muita receita fiscal para o Estado. É possível que uma parte dessas receitas (venda de bens apreendidos e receita fiscal recuperada) sirva para financiar o MP e a PJ?
Essa é uma boa pergunta. Penso que sim, que o combate à corrupção pode e deve ir buscar fontes de financiamento associadas à repressão e à perda alargada de bens. Temos a noção de que para os agentes corruptivos é mais grave perder os bens, do que propriamente a sanção penal privativa da liberdade.
Temos um enquadramento jurídico de apreensão e perda alargada de bens muito avançado.
Temos um mecanismo excelente criado em 2002, quando o ministro da Justiça era o dr. António Costa. O que temos é uma intervenção muito díspar em termos territoriais. Temos áreas em que o Ministério Público investiga o património dos arguidos e requer a perda alargada de bens mas outras zonas em que isso não acontece. É preciso combater essa assimetria.
Tenciona propor alguma medida concreta para que o MP e a PJ sejam efetivamente financiados com uma parte das receitas provenientes da perda alargada de bens?
Uma parte desses bens já financiam a intervenção da Justiça.
As viaturas apreendidas costumam ser usadas pela PJ e por outros órgãos do Estado.
Sim. A questão dos meios é importante e não a podemos descurar. Temos é que nos entender sobre que meios queremos. Pergunta-me: esta estratégia tem um envelope? Eu digo: esta estratégia tem um envelope como pressuposto. Como? Nos últimos quatro anos, o Centro de Estudos Judiciários teve um reforço de efetivos, voltou a admitir magistrados e no Ministério Público entraram mais 250 procuradores. Relativamente à PJ, temos reforçado igualmente os efetivos, nomeadamente em termos de peritos financeiros e informáticos — que é uma área que estava muito fragilizada e que permitirá à PJ dar uma nova resposta aos crimes na área digital.
“A designação ‘delação premiada’ envenena o debate”
Passemos às medidas de repressão. A grande aposta passa pelo aprofundamento de figuras do direito premial que já existem na nossa lei há muito tempo. De forma resumida, será possível ao Ministério Público fazer um acordo com um arguido, recebendo prova documental com base na confissão livre e sem reservas do arguido e, em troca, propõe uma dispensa ou atenuação especial da pena ao juiz de julgamento. A Ordem dos Advogados diz que isto é um sistema de delação premiada. A sra. ministra diz que não. Porquê?
Não podemos jogar com as palavras. Essa designação [delação premiada] acaba por envenenar o debate. O que interessa aqui é a dispensa da pena. Desde 1999 que se prevê na nossa legislação que o corruptor ativo possa beneficiar da dispensa de pena desde que, no prazo de 30 dias após a prática do crime, denuncie o mesmo e retire a oferta que fez ao agente público. Entre 1999 e 2015, a regra era: quem o fizer, é dispensado da pena. A partir de 2015 passou a ser: pode ser dispensado da pena. O que é que nós estamos a fazer? Estamos a retirar o prazo de 30 dias — que é um prazo burocrático e tem a ver a com a ‘frescura’ da confissão.
Tem conhecimento de alguém que tenha recorrido a essa norma para confessar o crime no prazo de 30 dias?
Não creio que exista algum caso. Por outro lado, deixamos de colocar nas mãos do juiz a decisão de “sim” ou “não” sobre o acordo que é feito. O juiz apenas vai verificar os requisitos exigidos pela lei: confissão integral e sem reservas, retração do arguido e prova que comprove a confissão. Ou seja, não basta que o arguido faça uma confissão. É preciso produzir prova e o Ministério Público terá de fazer a sua investigação. Portanto, se a confissão bater certo com a prova produzida, se o agente tiver solicitado a devolução da promessa ou retirar a promessa, a pena é dispensada.
Não há nenhuma negociação concreta sobre o que é alvo de confissão. “Tu denuncias isto e eu dou-te aquilo”.
Não há propriamente uma negociação entre o Ministério Público e o arguido. Há apenas uma aplicação de uma série de pressupostos de um instituto que será criado.
A dispensa de pena só poderá ser proposta em casos em que o arguido ou o suspeito tenha denunciado os factos antes de ter praticado o crime. Já para os arguidos que tenham praticado efetivamente o crime que denunciam, a lei só deverá permitir a atenuação especial da pena. Quais as razões para essa distinção?
A denúncia deve ser feita antes de ser iniciado o procedimento criminal. Excluímos dessa situação o agente que, num contexto de um processo em que é arguido ou suspeito, se sinta constrangido a fazer uma confissão. Essa situação não está incluída na dispensa da pena. Por outro lado, o suspeito do crime de corrupção para acto ilícito só está abrangido pela dispensa de pena se não tiver praticado o acto. Queria chamar a atenção para outra norma: a dispensa da pena não inibe o Ministério Público de requerer a perda de todos os bens que não sejam conforme a declaração de rendimentos.
Tenho falado com procuradores e inspetores da PJ que duvidam que, na prática, estas regras funcionem porque os incentivos para quem praticou o crime não são suficientes, já que não terão direito a dispensa de pena. Acredita que haverá uma maior colaboração entre o MP e os arguidos na descoberta da verdade?
Penso que sim. O nosso objetivo é melhorar o sistema penal mas preservando sempre o Estado de Direito. Não queremos que os cidadãos pensem que ‘subitamente no verão passado’ ficaram completamente desprotegidos. Pergunta-me: “É suficiente?” Pode não ser mas neste momento é a nossa proposta. Mas é uma proposta aberta, sujeita a discussão pública que queremos que seja intensa e que envolva todas as pessoas que tenham competência, conhecimento e que se interessem por estas matérias.
O Governo pretende também que fique claro que o juiz de julgamento não poderá apreciar o conteúdo do acordo feito entre o Ministério Público e os arguidos. Apenas poderá verificar se os requisitos impostos pela lei são cumpridos. Os juízes dizem que esta medida pode ser inconstitucional, já que quem decide a pena é o MP. Está segura da constitucionalidade da proposta?
Estou. Para percebermos se é inconstitucional temos de perceber o parâmetro — e eu não ainda não percebi que parâmetro é esse na crítica que é feita. A lei em vigor entre 1999 e 2015 era rigorosamente assim. Há outras situações no Código Penal em que se prevê a dispensa de pena sem intervenção do juiz. Mas eu não faço dessa questão um ponto de honra. Podemos discutir a ideia. Repare, se o MP estivesse a negociar a pena, perceberia a crítica. Mas o MP vai apenas aplicar o que a lei diz e fará o mesmo que o juiz de julgamento fará numa fase mais adiantada do processo: verifica os pressupostos e aplica a lei.
Caso Rui Pinto. “Não excluo que seja beneficiado por uma lei já existente”
Já deixou claro que a transposição da diretiva europeia dos whistleblowers para a lei nacional permitirá a sua aplicação aos crimes económico-financeiros e que Rui Pinto não pode ser abrangido por essa lei — por não pertencer a nenhuma das estruturas que tem denunciado, não entra na definição de whistleblower. Admite que Rui Pinto venha a ser seja beneficiado por outro regime legal em preparação pelo Governo?
Não excluo que ele seja abrangido por um regime legal já existente. Esse caso vai levantar questões muito interessantes. Nomeadamente, a questão de saber em que medida o auxílio na descoberta da verdade material noutros processos (não naquele em que está a ser julgado) pode relevar para uma decisão do tribunal e, sobretudo, vai obrigar-nos a ver a questão da legalidade da prova e dos meios de obtenção da prova. Temos de fazer esse trabalho sem preconceitos.
O nosso conceito atual de prova proibida deve evoluir e ter um novo enquadramento?
Tem de evoluir com um novo enquadramento. Mas temos de fazer uma evolução cautelosa. Provavelmente, o futuro vai ser um pouco isto. A transformação digital traz estes desafios, nomeadamente os desafios em relação à privacidade e à defesa dos dados pessoais mas também o acesso à informação por este tipo de vias. Podemos banalizar este tipo de acesso? Não, não podemos. Mas penso que há outra ponderação a fazer porque vivemos em sociedades que também estão em risco pela perceção que existe da incapacidade de combater certo tipo de fenómenos de corrupção e que colocam em causa não só as estruturas do Estado, como também a confiança que os cidadãos deveriam ter no Estado — e que, por via disso, alimentam muito forças populistas.
O que está a dizer é que a Justiça não pode ignorar determinada informação quando a mesma cai no espaço público, em nome da verdade material.
Toda a evolução do processo penal se fez nessa lógica. Quando é que o Ministério Público passou a utilizar meios especiais de investigação? Quando apareceu o flagelo da droga. Por isso, fomos obrigados a rever os princípios legais que tínhamos na altura. Acho que este tipo de fenómenos [como o caso Rui Pinto] convoca-nos novamente para refletir sobre a realidade que temos e perceber como é que avançamos em segurança, sem obviamente permitir que seja possível devassar tudo.
Temos de encontrar um equilíbrio.
Sim, temos de encontrar um equilíbrio.
Pensa avançar no seu mandato com alguma medida concreta que permita esclarecer o conceito da prova proibida, por exemplo?
Na discussão que estamos agora a fazer [sobre a Estratégia Nacional Contra a Corrupção] não temos previsto nenhuma medida. Apesar de tudo, penso que já temos alguns mecanismos no processo penal atual que podem ser utilizados nesta situação [de Rui Pinto].
Por exemplo, confessar integralmente e sem reservas um crime mas alegando que o praticou em nome de um bem maior e isso deve ser valorado pelos tribunais no contexto de uma atenuação especial da pena?
Sim, sim, isso pode ser valorado pelos tribunais.
Os megaprocessos? “Temos de acelerar o tempo dos julgamentos”
Outra questão desta estratégia é o combate que quer fazer aos megaprocessos. O Governo quer fazer cessar a conexão de processos que permite ao MP promover a fusão de diversos inquéritos num só. Dando um exemplo prático para os leitores perceberem: isso significa que, por exemplo, José Sócrates poderia ser acusado em três processos diferentes pelos três crimes de corrupção que lhe são imputados e Ricardo Salgado poderia ser acusado em seis ou sete processos diferentes. Isso não fará com que os arguidos se queixem de uma perseguição penal por parte do Estado?
Não diria isso. Mais penoso, mesmo em termos sociais, para os arguidos é o tempo de tramitação dos processos. O arguido ficará mais descansado se vir a sua situação principal resolvida com celeridade. Do ponto de vista social, esta solução é muito mais tranquilizadora porque se vê chegar qualquer coisa ao final. O grande drama é que é insuportável para a opinião pública que existam processos com um determinado conjunto de factos que extravasam rapidamente para outros processos. Chega-se a uma altura em que não se consegue distinguir a verdade processual da verdade comunicacional — mas em que a verdade comunicacional impera. Depois as pessoas perguntam: “porque é que temos estes factos e não há um julgamento?”. E comparam com outros países, como os Estados Unidos da América, e dizem que a nossa justiça é diferente para pobres e para ricos.
A ideia da celeridade é uma ideia muito importante.
Sim, é uma ideia que me é muito cara. Uma justiça que demora não é justiça. Não me adianta muito que os factos que aconteceram hoje só tenham uma conclusão daqui a 20 anos. Se calhar, daqui a 20 anos até os próprios arguidos poderão ter mudado.
Mas não existe mesmo uma justiça para ricos e outra para pobres?
Diria que temos tido uma justiça para a pequena criminalidade e outra justiça para o crime organizado. Aqui diria que os tribunais portugueses têm conseguido julgar depressa nos crimes ligados ao tráfico de droga. Mas também porque há mais facilidade na obtenção da prova em função da grande articulação que hoje existe entre as polícias dos diferentes países que acompanham esse fenómeno.
Por via da legislação contra o terrorismo e branqueamento de capitais, o Ministério Público tem acesso a muito mais informação do sistema financeiro, por exemplo.
Indiscutivelmente. O Ministério Público de hoje não tem nada a ver com o do do meu tempo. É muito mais avançado, tem muita gente formada e capacitada tecnicamente e tecnologicamente que lhe permitem fazer muito mais do que fazia antes e, mais importante, chegar à verdade material.
Mas nos casos de corrupção precisamos de acelerar o tempo dos julgamentos.
Sim. Como sabe, o julgamento consiste em apreciar a prova que foi recolhida na fase de inquérito. Se tivermos de fazer a reprodução da prova em julgamento, isso pode fazer com que o julgamento dure o mesmo tempo ou até mais tempo do que o inquérito. Isso já aconteceu e por isso é que apresentamos medidas nesta estratégia para acelerar esse tempo do julgamento.
“É possível melhorar o funcionamento do Tribunal Central de Instrução Criminal”
Foi analisada a possibilidade de se criar um juízo especializado para julgamento dos casos mais complexos. Os especialistas confirmaram-lhe o que suspeitava: é inconstitucional. Defende a alteração da Constituição para que esses tribunais possam existir?
Não. Temos recursos suficientes em termos de justiça especializada que nos permite não avançar, para já, para tribunais especializados. Esta é uma matéria que divide a sociedade portuguesa porque uma parte de nós ainda tem a memória dos tribunais plenários da ditadura.
Nós temos um tribunal de competência especializada que é o Tribunal Central de Instrução Criminal. Uma parte da comunidade jurídica é a favor da extinção deste tribunal e até o seu atual secretário de Estado já defendeu a sua fusão com o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa. É a favor dessa extinção? Ou admite o reforço do quadro de juízes para se ultrapassar as críticas que têm vindo a ser feitas?
O Tribunal Central de Instrução Criminal foi criado em 1999 e responde ao modelo de especialização e aos crimes que o Departamento Central de Investigação e Ação Penal investiga. Em termos práticos, o tribunal tem dois juízes e isso tem suscitado debate na opinião pública, nomeadamente de uma falsa questão que é a questão do juiz natural. Haverá mais uma questão sobre os dois juízes que estão neste momento no tribunal, ligada às suas idiossincracias…
São dois juízes muito diferentes, Carlos Alexandre e Ivo Rosa. Metaforicamente falando, um representará o dia e outro a noite, tão diferente é o seu pensamento…
Os juízes podem pensar como entenderem. Penso que é possível encontrar mecanismos que melhorem o funcionamento do tribunal. Mas é preciso pensar com um pouco de mais calma. Nesta estratégia não é feita nenhuma proposta. Têm surgido, contudo, várias ideias no debate na opinião pública: uma que consiste no reforço do estatuto do tribunal central, outra que passa pela fusão do tribunal central com o tribunal de instrução criminal de Lisboa e uma outra de especialização e criação de tribunais centrais deslocalizados. Temos de parar para pensar e ponderar.
A estabilidade do sistema também é importante.
Sabe que eu fui sempre contra a ideia de legislar por legislar. O sistema precisa de estabilidade e as pessoas precisam de sentir que ‘estão bem sentadas’. O sistema não pode estar em permanente mudança.
Vê como positiva a experiência de mais de 20 anos do Tribunal Central de Instrução Criminal?
Sim, sim. Claramente. A existência deste tribunal resulta de uma aposta na especialização. Atualmente temos bastante mais casos, logo temos muito mais magistrados a lidar com processos relacionados com o crime económico. Já não é nenhum dogma para os magistrados. Penso que temos de continuar a apostar nesse tipo de especialização, criando quadros e carreiras associadas.
Tal como o Ministério Público começou a fazer nos anos 90 do século passado.
Exato. Foi isso que o Ministério Público fez.
Aliás, acompanhou muito de perto esse processo porque estava no gabinete do procurador-geral Cunha Rodrigues, o homem que idealizou esse sistema de especialização.
É verdade. Acompanhei a criação das secções especializadas e do Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa.
A arquitetura do sistema judicial não tem de ser igual mas pode retirar lições do sistema implementado no Ministério Público?
Nós já temos muito tempo de aprendizagem e podemos retirar algumas ilações do modelo implementado no Ministério Público. Podemos trabalhar com calma sobre isso.
Apoio de Costa a Vieira. “Em matéria de paixões, cada um tem direito à sua contradição íntima”
Não sei se é adepta de algum clube futebol, mas entende que o Código de Conduta do Governo lhe permitiria apoiar algum dirigente desportivo que seja arguido num processo penal?
Eu sei que a pergunta que quer fazer não é para mim. Sabe, por um lado, que eu não percebo nada de futebol, presumo… (risos) e sabe que não tenho nenhuma paixão clubística. Há uma coisa que registo com grande clareza: as paixões clubísticas acabam por ser tão ou mais intensas do que as paixões que têm por objeto outros seres humanos.
A Justiça tem tido muito preocupação com essas paixões clubísticas e tem imposto uma separação higiénica aos juízes e aos procuradores.
Podia acontecer eu ser uma tiffosi [nome italiano dado a um adepto de futebol]… (risos). Edwy Plenel, diretor do Le Monde, esteve há uns anos em Lisboa para participar numa conferência da Procuradoria-Geral da República e discutiu-se uma questão que tinha a ver com o antigo Presidente François Mitterrand — que se tinha descoberto que tinha uma filha fora do casamento. Perguntava-se: um Chefe de Estado não estava obrigado à verdade e à transparência? E o Plenel disse: essa é uma matéria de paixões e nessa matéria cada um tem direito à sua contradição íntima. Essa é a minha resposta à sua pergunta.
Foi criticada recentemente por ter contratado para o seu gabinete o conselheiro Lopes da Mota que, enquanto procurador-geral adjunto, foi sancionado disciplinarmente por ter pressionado dois procuradores do caso Freeport a pedido de José Sócrates. Pode explicar por que razão o nomeou?
Explico porque temos de ter a capacidade de falar sobre as coisas de forma aberta. Ora bem, o dr. Lopes da Mota foi sancionado pelo Conselho Superior do Ministério Público por ter dito a dois colegas que estavam a investigar um caso que envolvia o eng. José Sócrates que, naquele caso, entendia que haveria suspeitas não para um crime de corrupção para ato ilícito mas sim para ato lícito — o que faria com que os crimes já tivessem prescrito. O sr. Lopes da Mota foi sancionado, depois foi reabilitado e candidatou-se ao Supremo Tribunal de Justiça. O Supremo entendeu que tinha integridade para fazer parte do mais alto tribunal do país e é conselheiro. O dr. Lopes da Mota é indiscutivelmente uma das pessoas que mais sabe no país sobre direito europeu e das que mais tempo trabalhou em instituições comunitárias, nomeadamente na liderança do Eurojust. Cometeu um erro pelo qual já foi sancionado e a sua nomeação é uma questão de justiça.
Há uma segunda decisão sua que causou polémica. Refiro-me ao facto de não ter nomeado uma magistrada do DCIAP que ficou em primeiro lugar no concurso de admissão para a Procuradoria europeia, preferindo escolher o segundo classificado, o procurador José Guerra. Porque razão tomou esta decisão polémica?
O Governo quis, desde a primeira hora, realizar um processo transparente para a indicação de um magistrado para a Procuradoria europeia. O Ministério da Justiça poderia ter indicado diretamente um nome mas não o fez. Preferimos pedir ao Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) que organizasse um concurso. E porquê? Porque o procurador europeu é também um procurador nacional. Por isso mesmo, entendi que o CSMP deveria ter um papel fulcral nesse processo. O Conselho fez um concurso e colocou o procurador José Guerra em primeiro lugar e a senhora magistrada do DCIAP, que está agora a recorrer dessa decisão, em terceiro lugar. O processo prosseguiu e o painel internacional fez a seleção que referiu mas a escolha é do Estado nacional. Porque razão tomei esta decisão? Por respeito ao CSMP — que é um órgão constitucional. Tínhamos dois magistrados que tinham a mesma categoria profissional e as mesmas classificações, sendo que um estava em 21.º lugar e o outro em 221.º lugar. Limitei-me a seguir e a respeitar a avaliação do CMSP. Não podia escolher o procurador com menor antiguidade. O procurador José Guerra está 200 lugares acima da senhora procuradora do DCIAP.
A porta-voz do PSD para a área da Justiça admitiu em dezembro de 2019 negociar o seu apoio a esta estratégia, nomeadamente às medidas de justiça negociada. É possível tal apoio, tendo em conta as posições críticas que Rui Rio tem tido sobre a Justiça portuguesa? Pensa que existe algum preconceito de Rui Rio sobre o Ministério Público e os tribunais?
Não tenho ideia que o dr. Rui Rio tenha algum preconceito sobre o Ministério Público ou a forma como os tribunais funcionam. Parece-me que as suas posições críticas têm mais a ver com o funcionamento dos conselhos superiores das magistraturas. Esta estratégia é suposto ser um documento nacional e para durar muitos anos. Tudo o que seja possível consensualizar é bem-vindo. É para isso que estamos trabalhar e é isso que os cidadãos esperam de nós: que trabalhemos em conjunto para o bem comum. É frustrante quando não somos capazes de nos juntar e de irmos até ao fim e dizer: “Podemos ceder aqui e ali mas este é o caminho que temos de fazer pelo bem comum”.
É reconhecidamente uma mulher moderada, da área do centro-esquerda, com um passado pessoal de luta contra o colonialismo e de recusa de totalitarismos. Já decidiu em quem vai votar nas próximas presidenciais, em Marcelo Rebelo de Sousa, Ana Gomes, Marisa Matias ou João Ferreira? Ou vai cumprir o recato aconselhado pelo primeiro-ministro e não vai apoiar publicamente nenhum dos candidatos?
O meu voto nem às paredes confesso (risos).
[A entrevista à ministra da Justiça na íntegra]