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ILUSTRAÇÃO: Ana Martingo/OBSERVADOR
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Ana Martingo

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Ana Martingo

Vem aí o euro digital. O vírus vai matar as moedas e notas (e ameaçar os bancos)?

BCE está prestes a lançar o que pode ser uma revolução do sistema financeiro como o conhecemos. Economista Ricardo Reis fala sobre o que está em cima da mesa e que pode fazer das notas peças de museu.

O académico subiu ao palco, frente a uma plateia onde estavam uma mão-cheia de banqueiros, os líderes das principais instituições financeiras do país. O académico, professor de Economia na London School of Economics (LSE), começou a discursar sobre um tema em relação ao qual, “de um modo geral, a banca portuguesa parecia estar um pouco a leste…”, recorda em conversa com o Observador. Isso foi surpreendente, diz, porque aquilo de que se falava era algo com potencial para abalar todo o modelo de negócio dos bancos – dos seus bancos. E, agora, está prestes a tornar-se realidade: o BCE prepara-se para lançar um euro digital que, além de ser uma ameaça existencial para os bancos, irá acelerar a morte do dinheiro físico (e anónimo), transformando as notas e moedas em pouco mais do que peças de museu.

Este professor chama-se Ricardo Reis e o episódio passou-se no final de janeiro, na Fundação Champalimaud em Lisboa, num evento organizado pela Associação Portuguesa de Bancos (APB) para falar sobre o futuro da banca. Foi em janeiro, antes de a pandemia tomar de assalto toda a atenção política e mediática – mas as tendências de que falava Ricardo Reis e a palestra que deu até acabaram por ser um prenúncio de um algo que o próprio vírus acabaria por acelerar: o fim do dinheiro físico. Será um dos temas em discussão, estas quarta e quinta-feira, no Fórum anual do Banco Central Europeu que costuma acontecer em Sintra mas que este ano será online.

“É expectável que, na próxima década, seja possível que o dinheiro em espécie venha mesmo a desaparecer”, concorda a gestora de ativos lisboeta Sixty Degrees, que em agosto fez um relatório aprofundado sobre este tema. Mas a questão das notas e moedas é apenas uma pequena parte daquilo que está em causa: conforme aquilo que acabar por ser decidido, o lançamento de uma moeda digital pode ameaçar o papel de intermediário que os bancos há vários séculos desempenham na sociedade, fazendo a ponte entre o banco central (emissor de moeda) e o cidadão. Para uns é uma inevitabilidade, para outros é um gigantesco risco para a estabilidade financeira que tem de ser gerido com pinças.

Christine Lagarde, presidente do BCE, garantiu que o euro não irá eliminar o dinheiro físico, mas "complementá-lo".

dpa/picture alliance via Getty I

O BCE lançou este mês uma consulta pública para receber contributos sobre as vantagens e riscos de se lançar um euro digital – o que, em última análise, pode significar que cada cidadão pode ter uma conta aberta no banco central, prescindindo dos bancos comerciais. Mas já lá vamos, àquilo que isto pode significar na prática. Para já, o que é publicamente dito, pela própria presidente do BCE, Christine Lagarde, é que o objetivo do banco central é “garantir que a nossa moeda é adaptada à era digital”.

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“Quando vemos a rapidez com que os pagamentos digitais se estão a generalizar, especialmente entre os jovens, é importante que correspondamos a esta procura”, afirmou Christine Lagarde, numa entrevista publicada a 19 de outubro. A presidente do BCE garantiu que, “se o euro digital chegar a ver a luz do dia, não irá substituir ao dinheiro físico – será um complemento a ele“.

Mas é claro, salientou, que “se pudermos ter um meio de pagamento que seja mais eficiente, que envolva menos custos, que cause menos poluição, que possa ser usado tão facilmente como o dinheiro físico, que proteja a privacidade ao mesmo tempo que assegura a rastreabilidade, que reduza os custos de transferir dinheiro entre países e fortaleça o papel internacional do euro, então estaríamos a falhar caso não estudássemos essa possibilidade!“.

A questão coloca-se, então: se o BCE conseguir criar esse meio de pagamento com todas estas virtudes, alguém acredita que isso não seria o início do fim do dinheiro físico? Ainda mais quando a propagação do novo coronavírus impulsionou os pagamentos digitais e redobrou os receios em relação ao contacto com meios de pagamento tradicionais: uma pesquisa recente feita na Austrália demonstrou, por exemplo, que o novo coronavírus é capaz de sobreviver até 28 dias numa superfície de papel como uma nota bancária.

Coronavírus pode viver quase um mês em notas de papel, revela pesquisa australiana

Não é claro até que ponto é que essa sobrevivência do vírus (em laboratório) será equivalente a potencial transmissibilidade da doença, mas os dados nacionais e internacionais suportam a perceção de que as pessoas preferem cada vez mais os pagamentos com cartão contactless (30% das compras) e estão a usar menos as caixas multibanco – segundo o Banco de Portugal, nos meses do estado de emergência o recurso aos ATM baixou na ordem dos 30% em comparação com o ano passado.

“Atualmente, a utilização de dinheiro físico tem ainda um elevado peso nos pagamentos diários dos consumidores individuais europeus (78,8% do número de transações e 53,8% do valor). No entanto, essa preponderância tem vindo a diminuir”, comenta a gestora de ativos Sixty Degrees, em comentários feitos ao Observador com base em dados do BCE. Países como a Alemanha e a Áustria são aqueles onde é mais frequente a utilização de notas bancárias, ao passo que noutros como a Suécia e a Dinamarca a opção já vai maioritariamente – e cada vez mais – para o dinheiro digital.

Na Suécia, aliás, existe uma grande “tradição” de assaltos a bancos – o famoso “síndrome de Estocolmo” adveio de um desses assaltos, que durou seis dias em 1973. Nesse país, hoje os bancos privados já começam a recusar-se a ter dinheiro físico nos seus edifícios, pelos custos e riscos que isso acarreta. Os riscos associados à pandemia e ao contacto físico podem dar mais um impulso decisivo na adoção dos meios de pagamento digitais, em todos os países de um modo geral.

A gestora de ativos Sixty Degrees, sediada em Lisboa, comenta que “muitas pessoas ainda valorizam a utilização de dinheiro físico por permitir o anonimato nas transações (ausência de registos), não necessitar de infraestrutura própria (custos) e permitir uma salvaguarda ao risco de ter o dinheiro guardado no banco (risco do sistema financeiro/risco de falência do banco)”. Porém, a evolução tecnológica e o surgimento de criptomoedas digitais como a bitcoin (e similares) arriscam colocar os bancos centrais na posição de dinossauros a olhar para o céu estrelado, à espera de um meteorito. E mais: esta é, também, uma questão geopolítica, desde logo porque o banco central chinês está bem avançado com o seu yuan digital.

"Se pudermos ter um meio de pagamento que seja mais eficiente, que envolva menos custos, que cause menos poluição, que possa ser usado tão facilmente como o dinheiro físico, que proteja a privacidade ao mesmo tempo que assegura a rastreabilidade, que reduza os custos de transferir dinheiro entre países e fortaleça o papel internacional do euro, então estaríamos a falhar caso não estudássemos essa possibilidade!"
Christine Lagarde em entrevista ao Le Monde, 19 de outubro

Mas o que é que, na prática, poderá mudar? Em entrevista ao Observador, esta sexta-feira, Ricardo Reis começa por recordar que “nós já temos um euro digital, até já tínhamos um escudo digital. Isto porque no nosso sistema monetário há duas formas de moeda emitidas pelo banco central – uma baseia-se nas moedas e as notas físicas e a outra nos depósitos dos bancos comerciais junto dos bancos centrais (as chamadas reservas). A pessoa consegue pagar à pessoa com moedas e notas ou, então, faz um pagamento ou transferência em que o banco da pessoa A acerta contas com o banco da pessoa B, sem que tenha havido necessidade de envolver o suporte simbólico das notas de papel.

“Todos nós já usamos mais moeda digital do que moeda física. Já é a moeda prevalente”, diz Ricardo Reis. Quando pagamos a renda ou a prestação da casa ao banco, quando pagamos as compras no hipermercado – e até no pequeno comércio, cada vez mais –, “normalmente vamos recorrer aos cartões ou às transferências”, nota o economista, lembrando os estudos de Kenneth Rogoff, professor de Harvard, que concluiu que mais de 80% do dinheiro físico em circulação acaba por fazer um caminho até ser, a dada altura, utilizado para fins ilegais, no narcotráfico ou na corrupção. Rogoff recebeu ameaças de morte devido à sua luta por uma cashless society (uma sociedade sem dinheiro físico, ou muito pouco), o que é um indicador de que talvez tenha alguma razão.

Kenneth Rogoff, professor de Harvard que recebeu ameaças de morte por causa da sua luta por uma "cashless society".

HENRIQUE CASINHAS/OBSERVADOR

Mas aqui fala-se de mais do que apenas me tornar o dinheiro físico uma peça de museu, “para um dia ir com o netinho a um balcão do Banco de Portugal para ver como eram as notas e as moedas”, brinca Ricardo Reis. O que está em causa na emissão do euro digital é a possibilidade de ter uma relação direta – ou, pelo menos, mais direta – entre o cidadão e o banco central emissor de moeda, sem ter os bancos como intermediário.

Em última análise – e num cenário que Ricardo Reis considera, apesar de tudo, pouco provável nesta fase – cada cidadão poderá ter uma conta aberta no próprio banco central, além (ou em vez) de contas em bancos comerciais. Os serviços financeiros e o crédito poderiam continuar a ser coutada dos bancos comerciais mas todas as pessoas poderiam ter uma conta no banco central, receber lá o salário e usar aquela conta para fazer pagamentos e transferências digitais, usando o telemóvel. “Seria necessário os bancos centrais dotarem-se de uma estrutura tecnológica grande, mas não seria nada proibitivo”, diz o economista.

O problema, assinala o economista, é que “há uma preocupação legítima” de que ao fazer isso estaríamos a descapitalizar os bancos, a retirar-lhes os depósitos que servem, depois, como “reservas” no banco central que permitem ao banco originar crédito à economia. Mesmo que se definisse um limite para o valor que cada cidadão podia depositar no banco central, essa questão poderia colocar-se. E pior: em momentos de crise, ter uma conta no banco central tornaria muito mais arriscado que pudesse haver uma súbita descapitalização de uma ou mais instituições financeiras – uma espécie de “corrida aos bancos sem sair do sofá, só com apenas dois ou três cliques“, diz Ricardo Reis.

Mas também poderia haver uma enorme vantagem, caso a ideia fosse levada ao limite e até incluísse crédito dado pelo banco central. Como assinala a Sixty Degrees, “com esta relação direta aos utilizadores individuais os bancos centrais teriam uma melhor capacidade de implementação de programas de estímulos futuros”. Isto é, “em vez de os bancos centrais controlarem as taxas de juro e comprarem ativos aos bancos comerciais, numa tentativa de os fazer conceder crédito à economia, poderiam atuar diretamente junto dos consumidores, através de empréstimos diretos ou do pagamento de um rendimento básico universal, tentando assim estimular o surgimento da tradicional inflação nos preços dos bens e serviços”.

Poderá parecer demasiado arrojado – e provavelmente é, pelo menos agora – mas não fazer nada também não é opção, sobretudo, recorda Ricardo Reis, depois de o Facebook ter feito o anúncio da moeda Libra, uma ideia que acabou por ser suspensa mas que nada indica que tenha sido abandonada. A Libra nasceria com a criação de uma arquitetura privada, independente dos bancos centrais, em que as pessoas poderiam encontrar no “dinheiro do Facebook” uma alternativa viável ao dinheiro público. Apesar de ter tido uma apresentação desastrada, “a Libra teve imenso impacto porque alertou a população e sobretudo os políticos de que é preciso acelerar isto. Passou-se de uma discussão académica, tida em conferências e protagonizada por académicos, para temos de fazer isto, rapidamente“.

Nesta fase, “o caminho mais óbvio parece ser a emissão de moeda digital por parte dos bancos centrais”, diz a Sixty Degrees numa nota de análise publicada sobre este tema em agosto. “Este avanço será absolutamente necessário para garantir que os governos retêm o seu poder sobre a moeda, algo que se tornou ainda mais premente no atual cenário de crise soberana, dada a necessidade de cobrança de impostos”, afirma a equipa da gestora de ativos, acrescentando que “o Fundo Monetário Internacional (FMI) já deu sinais explícitos de que este poderá ser o caminho a seguir“.

"A Bitcoin nunca foi uma viragem. A Bitcoin é uma coisa gira para algumas pessoas se entreterem a especular e a comprar drogas. A Libra sim, porque levou os políticos a telefonar aos bancos centrais e dizer que era preciso fazer alguma coisa sobre isto."
Ricardo Reis, professor na London School of Economics

É fácil imaginar que o BCE poderia criar uma arquitetura própria para gerir “contas bancárias” e transações recorrendo a tecnologias como o blockchain, a mesma que suporta as criptomoedas que cresceram em popularidade na última década mas que servem, ainda hoje, como ativo para especulação ou como mecanismo para contornar leis (compra de produtos ilegais) ou saltar controlos de capitais (como a dificuldade de retirar dinheiro de alguns países). Mais difícil para o BCE, porém, seria assumir a responsabilidade (que hoje é dos bancos) que é cumprir regulações cruciais como o know your customer (KYC, o conhecimento de cada cliente) ou a prevenção do financiamento de terrorismo e branqueamento de capitais.

“O banco central não tem capacidade para entrevistar as pessoas antes de lhes abrir uma conta, tratar de toda a papelada e aquele acompanhamento do cliente – esse é o trabalho que é feito pelos bancos comerciais”, diz Ricardo Reis. Por essa razão, mais do que por questões tecnológicas, é que “em termos práticos não é tão exequível” pensar que poderemos ter grandes fortunas depositadas no banco central – a menos que haja uma mudança profundíssima de paradigma na ideia de sistema financeiro.

Uma alternativa mais provável, na análise de Ricardo Reis, é uma espécie de meio-termo. Isto é, o economista não acredita que esteja ao virar da esquina a possibilidade de qualquer pessoa fazer depósitos – significativos, pelo menos – em contas do banco central. Mas é provável, diz, que o BCE se prepare para abrir a porta a que mais empresas consigam aceder ao sistema financeiro, com modelos inovadores e com regulação adequada à sua dimensão. Basta pensar em algumas fintechs inovadoras, que se impuseram nos últimos anos, como a TransferWise ou a Revolut. Ou seja, mesmo que não se preveja para já que cada cidadão possa abrir uma conta no banco central, o que pode haver é um enorme aumento do tipo de empresas – supervisionadas – que podem aceder a algumas das funções que hoje em dia são um exclusivo dos bancos, usando para isso uma figura de moeda digital, diz Ricardo Reis.

China bem lançada na moeda digital. EUA estão a preparar caminho

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Na China, os avanços no sentido de criar uma moeda digital “parecem prosseguir a bom ritmo”, diz a Sixty Degrees. Em 2014, o Banco Popular da China (PBC) anunciou oficialmente o desenvolvimento de uma moeda digital, o e-RMB, no âmbito do projeto designado Digital Currency/Electronic Payments Project.

Em agosto de 2019, o PBC divulgou um plano para começar a difundir a moeda no espaço de três anos. E já em abril deste ano foram iniciados testes em várias cidades incluindo Shenzhen, Suzhou e Chengdu. O e-RMB foi formalmente adotado nestas cidades, com alguns funcionários públicos a receber
salários na moeda digital. “O e-RMB poderá ser assim a primeira moeda digital oficialmente criada por uma grande potência”, diz a gestora de ativos.

Já nos EUA, em entrevista recente à Bloomberg, Lael Brainard, governadora de um dos bancos da Reserva Federal, confirmou que a Fed tem vindo a desenvolver testes no sentido da potencial criação de um dólar digital. Ao mesmo tempo, deu a conhecer a parceria entre a Fed de Boston e o MIT para o desenvolvimento e construção de uma moeda digital de uso exclusivo para Bancos Centrais.

Por outro lado, salienta a Sixty Degrees, “uma moeda digital de um banco central acarreta riscos de segurança muito distintos das criptomoedas privadas”. Ou seja, “ataques cibernéticos por parte de outros estados serão um risco efetivo e a infra-estrutura de uma moeda digital de um banco central será uma questão de segurança nacional”, salienta a gestora de ativos lisboeta.

Quanto ao dinheiro físico – as notas e moedas – no caderno de encargos de Christine Lagarde está uma referência a uma moeda “que proteja a privacidade ao mesmo tempo que assegura a rastreabilidade”. Esse é o binómio que será, à primeira vista, mais difícil de obter, porque “qualquer moeda digital deixa um rasto”, diz Ricardo Reis. “Este acesso direto dos cidadãos ao banco central levaria, por outro lado, a uma partilha de dados pessoais com o regulador que passaria a ter o repositório de toda a vida financeira dos cidadãos”, lembra a Sixty Degrees, o que “levanta questões sobre a forma como esses dados poderão ser utilizados, quer para efeitos fiscais/legais, quer para efeitos comerciais”.

Pode-se pensar em modelos como tokens aleatórios e encriptados que possam assegurar que não é possível – ou, pelo menos, que não é tão fácil – associar uma dada transação a uma pessoa. Mas a realidade é que “a moeda física é a única moeda verdadeiramente anónima”. E “há uma corrente de pessoas que diz que tem de manter a moeda física porque é que o último reduto da nossa liberdade e contra a opressão do estado sobre a nossa capacidade de sermos verdadeiramente livres“, lembra o economista.

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