Conversas sobre o tempo, a ausência da parada da GNR, a cor da gravata ou cães zangados. Recuando às últimas cerimónias do 25 de Abril, é possível comprovar que a câmara que captou o vídeo polémico de Marcelo Rebelo de Sousa, Augusto Santos Silva e António Costa na sala das visitas do Parlamento está lá todos os anos. E com som. A diferença é que as conversas costumam ser mais mundanas e menos politizadas. O presidente da Assembleia da República disse ser ilegal e abriu uma investigação a uma gravação que os documentos oficiais mostram que estava autorizada pelos próprios serviços e que acontece todos os anos.

As declarações de Santos Silva, sabe o Observador, irritaram profundamente os serviços da Assembleia da República, com os funcionários ouvidos pelo Observador a considerarem “altamente injusta” a posição do presidente da AR, que “sabia perfeitamente” que “a câmara estava ali e captava som”. A resposta pedida pelo presidente da AR aos serviços, sabe o Observador, deve refletir isso mesmo: que aquela captação de imagens foi lícita e é usual.

As palavras de Santos Silva foram duras, já que o presidente da AR falou em “flagrante violação de direitos e liberdades mais fundamentais das personalidades que foram vítimas dessa operação”, mas a transmissão de imagem e som, não só sempre aconteceu durante a sessão solene das comemorações do 25 de Abril, como estava definido que a ARTV, o canal oficial do Parlamento, ia distribuir as imagens dessa sala aos canais de televisão.

A sessão solene das comemorações do 25 de Abril é, todos os anos, transmitida em direto por vários canais, sobretudo pelos de informação — desde a chegada ao Parlamento do Presidente da República até ao último discurso dos partidos com assento parlamentar. E este ano não foi exceção.

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Normalmente, duas estações têm autorização para filmar o que acontece dentro da Assembleia da República — por uma questão de facilidade e de organização — e, este ano, a transmissão estava dividida entre a RTP e a ARTV. De acordo com o mapa enviado às redações, a RTP tinha autorização para gravar no exterior do Parlamento, para acompanhar a chegada de Marcelo, de Santos Silva e de Costa, por exemplo. E, dentro do edifício, o espaço dividia-se entre a RTP e a ARTV. No caso específico da Sala das Visitas, onde este ano António Costa, Marcelo Rebelo de Sousa e Augusto Santos Silva estiveram com Lula da Silva, a transmissão estava autorizada às câmaras da ARTV.

O planeamento do posicionamento da câmara da AR, segundo o plano oficial

Aliás, o documento enviado à comunicação social sobre as normas para a sessão solene de boas-vindas ao Presidente do Brasil e para a sessão solene comemorativa do 49º aniversário da Revolução é bem claro e especifica o que acontece na Sala das Visitas: “Neste local, a ARTV fornece o sinal host e a Agência de Notícias Lusa fornece as imagens fotográficas”. “A ARTV fornece o sinal do Plenário (banda incluída), os Passos Perdidos, a Sala de Visitas e a câmara dos discursos”, lê-se no documento.

Como é que são distribuídas as imagens?

Santos Silva, António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa acabaram, apesar da experiência de anos anteriores, por serem apanhados pela câmara da ARTV, que estava a filmar dentro da Sala das Visitas, enquanto aguardavam pelo início da sessão solene das comemorações do 25 de Abril, já depois do discurso de Lula da Silva.

Aliás, o que aconteceu durante o discurso é precisamente um dos temas daquela conversa, já que Santos Silva recorda o momento em que repreendeu  o Chega, que interrompeu o discurso do Presidente brasileiro. E o presidente da Assembleia da República referiu, em comunicado, que pretende agora “averiguar em que condições foram recolhidas aquelas imagens, captado aquele som, e em que condições foi colocado ao conhecimento do público aquele vídeo, para que se saiba quem fez e quem autorizou”.

Ora, nesse momento, tal como aquela câmara estava a captar som e imagem, também as outras câmaras espalhadas pela Assembleia da República estavam a fazer precisamente o mesmo. Acontece que, antes de ser distribuída a imagem, é escolhida uma câmara — normalmente onde existe ação, de forma a evitar planos vazios. É por isso que, normalmente, as imagens que passam em todos os canais são semelhantes.

Isto significa também que, no momento em que os três representantes do Estado falavam sobre o comportamento do Chega e sobre a Iniciativa Liberal, as imagens estavam a ser transmitidas, quer pelo canal da ARTV (neste caso com o som em causa), quer por outros canais. Por exemplo, basta ver a repetição da transmissão da SIC Notícias. Às 11h24, a emissão estava a transmitir precisamente as imagens da conversa que gerou polémica nos últimos dias. As imagens na SIC só não tinham som porque, no mesmo momento, estava a ser comentada em estúdio a manifestação feita pelo Chega, também naquele dia, contra a presença de Lula da Silva no Parlamento.

Os “cães zangadíssimos” e o “campeão nacional de barbeiros”

A juntar ao facto de ter sido autorizada, a câmara que gravou a conversa alegadamente reservada entre as três principais figuras da Nação está presente todos os anos nas sessões comemorativas do 25 de Abril. O Observador foi consultar as emissões em direto de 2022, 2021, 2020, 2019 e 2018 e à exceção de 2020 (por causa da pandemia), em todas elas está essa câmara, com som, na sala de visitas, precisamente no momento em que Presidente da República, presidente da AR e primeiro-ministro aguardam pela hora de entrar no plenário.

As conversas de anos anteriores têm sido, pelo que é possível perceber nessas imagens mais sobre questões mundanas e não propriamente sobre política pura e dura. Em 2022, por exemplo, já com Santos Silva como presidente da AR, Marcelo Rebelo de Sousa comenta que está “um dia bonito”, ao contrário do fim-de-semana.

Nessa mesma sessão, a 25 de Abril de 2022, António Costa comenta que devia ter levado um pente enquanto acaricia o cabelo:

António Costa: “Devia ter trazido um pente”;

– Marcelo Rebelo de Sousa: “Vocês tinham um [cabeleireiro] muito bom…”;

António Costa: Era campeão nacional”;

– Marcelo Rebelo de Sousa: “De quê? De barbeiros?!”

– António Costa: “Sim, sim”.

Recuando a 2021, num período de pandemia, as conversas de bastidores são menos percetíveis por causa das máscaras. Ainda assim, assiste-se a Costa a questionar a vice-presidente da Assembleia da República Edite Estrela sobre o porquê de não haver parada da GNR em frente à escadaria. Nas imagens ouve-se ainda Costa a meter-se com Ferro Rodrigues por causa da cor da gravata (vermelha), por ser da cor à oposta da preferência clubística do anterior presidente da AR (que é do Sporting).

E se em 2020 não houve momentos na sala de visitas (porque a sessão foi muito limitada devido à pandemia de Covid-19), o Observador recuou a 2019 e mais uma vez ouve-se um queixume de António Costa. Primeiro, perante o olhar do ex-Presidente Ramalho Eanes, Costa e Ferro cumprimentam-se de forma descontraída. “Estás bem, pá?”, perguntava o então presidente da AR. E Costa respondeu: “Estou, pá”. Para logo acrescentar que os “cães é que andam zangadíssimos” com as suas ausências de casa.