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Há frases que ficam a pairar sobre certas figuras como as nuvens de trovoada sobre as personagens de cinema de animação, seguindo-as para onde quer que vão e atormentando-as com aguaceiros e relâmpagos. É o que acontece com a proclamação atribuída a Igor Stravinsky sobre Vivaldi: “Não escreveu 400 concertos, escreveu 400 vezes o mesmo concerto”. Na verdade, o que Stravinsky terá dito, em conversa com o seu assistente Robert Craft, que depois a reproduziu em Conversations with Igor Stravinsky (1958), foi diferente (na forma, não no conteúdo): “Vivaldi é extraordinariamente sobrestimado – um fulano chato que era capaz de compor da mesma forma vezes sem conta”. Não estava só nesta opinião nem era o primeiro a emiti-la, pois o dramaturgo e libretista Carlo Goldoni, contemporâneo e conterrâneo de Vivaldi, também o definira como “brilhante violinista e medíocre compositor”.
Stravinsky foi um compositor genial mas as suas opiniões sobre outros compositores estão longe de serem justas ou iluminadoras. Stravinsky esquece-se de que Antonio Vivaldi (1678-1741) viveu numa época em que os compositores tinham um estatuto mais próximo do “artesão” do que do “artista” (como este passou a ser entendido no século XX) e que o que se esperava deles é que fornecessem um caudal regular de música descartável e conforme aos cânones vigentes para cerimónias religiosas e entretenimento. Os compositores não se viam a si mesmo como criadores inflamados por uma centelha divina e as obras não eram concebidas a pensar no julgamento da posteridade mas em dar resposta pragmática a solicitações do momento. As entidades para quem compunham – a Igreja ou a aristocracia – eram conservadoras e não queriam obras revolucionárias, que rompessem com a tradição ou deixassem o público perplexo ou perturbado.
Não havia pressão para que um artista se renovasse constantemente, ao contrário do que se tornou obrigatório no século XX, em que a “novidade” passou a prevalecer sobre todos os critérios de apreciação estética e proliferaram obras grotescas e asininas cuja única qualidade é “nunca ninguém ter feito algo assim antes” (sim, por excelentes razões!).
Ironicamente, o argumento de Stravinsky pode facilmente ser voltado contra si mesmo: a carreira do compositor russo foi invulgarmente longa, prolífica e diversa, mas em momento algum voltou a produzir obras tão intensas, revolucionárias e geniais como os seus primeiros bailados de inspiração russa – O pássaro de fogo (1910), Petrushka (1911) e A sagração da Primavera (1913), a que pode juntar-se Les Noces (1913-17, estreado em 1923) – e que na sua obstinação em não se repetir acabou talvez por descartar aquilo que nele era mais genuíno (ver “A Primavera é a mais cruel das estações“).
Mas o melhor desmentido para a afirmação de que Vivaldi repetiu 400 vezes o mesmo concerto está na caixa Concerti que a Erato agora faz chegar ao mercado e que reúne nove CDs com 59 concertos pelo ensemble de instrumentos de época Europa Galante, liderado pelo violinista Fabio Biondi, anteriormente editados pela Virgin Classics. Não só as obras são uma cornucópia de invenção, como as interpretações são de nível estratosférico (embora possam não agradar a todos os palatos) e o registo sonoro alia pujança, transparência, detalhe e atmosfera. Para tornar a oferta irresistível, a caixa vende-se por um preço pouco superior ao que se pagaria por cada um dos CDs que a compõem.
A Revolução Italiana
Vivaldi só foi redescoberto após a II Guerra Mundial e, ainda assim, durante muitos anos apenas As quatro estações tiveram difusão, pelo que pode perguntar-se o que saberia Stravinsky sobre Vivaldi em 1958. De qualquer modo, o Vivaldi que Stravinsky ouviu no seu tempo era substancialmente diferente do que aquele que é hoje tocado pelos ensembles de música antiga. Nas décadas de 1950 e 1960, as interpretações dos concertos de Vivaldi foram dominadas pelos I Musici, I Solisti Veneti e a Academy of St. Martin-in-the-Fields, mas, ao longo das décadas de 1970 e 1980, a “interpretação historicamente informada” (HIP, na sigla inglesa) foi impondo-se nos concertos de Vivaldi, merecendo destaque neste domínio as gravações do The English Concert, dirigido por Trevor Pinnock e com Simon Standage como solista (lançada em 1982 pela Archiv), e da Academy of Ancient Music, dirigida por Christopher Hogwood, com vários solistas e uma abordagem mais rendilhada (1983, Oiseau-Lyre/Decca).
Embora os grupos da Europa Setentrional tivessem removido alguma da espessa pátina que se acumulara sobre os concertos de Vivaldi, foram os italianos que devolveram à música do veneziano um colorido vivíssimo e uma energia esfuziante – mas também poesia, refinamento e languidez, quando necessário. Os pioneiros dessa revolução foram Il Giardino Armonico, liderado pelo flautista Giovanni Antonini (fundado em Milão em 1985) e a Europa Galante, liderada pelo violinista Fabio Biondi (fundada em 1990), a que se seguiram os Sonatori de la Gioiosa Marca (de Treviso), a Orquestra Barroca de Veneza, L’Arte dell’Arco, L’Aura Soave (de Cremona), a Accademia Bizantina (de Ravenna) e, mais recentemente, Il Pomo d’Oro.
A brisa refrescante – que por vezes se transforma em vendaval – introduzida na interpretação dos concertos de Vivaldi pelos italianos acabou por contagiar os vizinhos de língua italiana (I Barocchisti, de Diego Fasolis, fundados em Lugano, na Suíça Italiana) e grupos HIP da Europa mais setentrional, como os Arte dei Suonatori (Poznan, Polónia), a Akademie für Alte Musik (Berlim), o Ensemble Matheus (Brest, França), Gli Incogniti (França) ou o Café Zimmermann (França).
Europa Galante
O ensemble Europa Galante, que pediu emprestado o nome a uma ópera-bailado de André Campra (L’Europe galante, de 1697), lançou o seu primeiro disco, com As quatro estações, em 1991, na Opus 111, editora para a qual gravaria em exclusividade, até se mudar em 1997 para a Virgin Classics, onde além dos nove CDs coligidos nesta caixa, registou várias óperas completas, música sacra e selecções de árias de Vivaldi (bem como discos consagrados a Bach, Boccherini, Caldara, Mozart, Pergolesi, Alessandro Scarlatti). Desde 2014 que a Europa Galante grava para a editora espanhola Glossa.
[Sessões de gravação da ópera Bajazet, de Vivaldi: o contratenor David Daniels canta a ária “Barbaro traditor”, com direcção de Fabio Biondi]
À data da fundação da Europa Galante, Fabio Biondi, que tinha então apenas 29 anos, acumulara uma invulgarmente rica experiência na música antiga, obtida como primeiro violino nos Les Musiciens du Louvre, de Marc Minkowski, em Il Seminario Musicale, de Gérard Lesne, e nos ensembles de Jordi Savall. Não tardaria a ser reconhecido como um dos grandes virtuosos do violino barroco – podium que partilha com Giuliano Carmignola, Amandine Beyer, Andrew Manze ou Enrico Onofri.
Paralelamente à Europa Galante, que dirige a partir do violino, como era uso na época barroca, Biondi tem vindo também a reger com a batuta orquestras “modernas” de primeiro plano (Orquestra de Santa Cecília, Mozarteum de Salzburgo, Mahler Chamber Orchestra) e é, desde 2005, o maestro de música antiga da Orquestra Sinfónica de Stavanger, que, apesar de usar instrumentos modernos, pôs a soar como uma orquestra HIP.
CD 1+2: L’estro armonico
Dos 414 concertos de Vivaldi que chegaram aos nossos dias (número sujeito a alteração, pois, de quando em vez, descobrem-se manuscritos inéditos e corrigem-se erros de atribuição de autoria), 324 destinam-se a instrumentos solistas, 46 a dois solistas e 44 a mais de dois solistas. Dos 324 para um instrumento solista, 214 são para violino, o que é natural, uma vez que Vivaldi era um virtuoso do instrumento (cujos rudimentos terá aprendido com o pai, Giovanni Battista Vivaldi, um barbeiro convertido em violinista) e foi durante muitos anos professor de violino no Ospedale della Pietà, em Veneza.
Johann Joachim Quantz (1697-1773), que reconheceu o papel relevante de Vivaldi na evolução do concerto, acabaria por prefigurar as críticas de Stravinsky ao escrever: “Como resultado do seu afã diário de composição, e especialmente a partir do momento em que começou a compor óperas, soçobrou na frivolidade e no capricho, quer como compositor quer como intérprete, de forma que os seus derradeiros concertos encontraram acolhimento menos favorável do que os primeiros”. É duvidoso que Quantz, um erudito e um compositor infatigável, ainda que de modesto talento, pudesse reclamar o conhecimento global de uma obra tão vasta, dispersa e multifacetada como a de Vivaldi para poder emitir tal juízo, até porque apenas um quinto dos concertos de Vivaldi foram publicados durante a sua vida. De qualquer modo, bastaria um disco para o desmentir: I concerti dell’addio, por Fabio Biondi e Europa Galante (2015, Glossa), preenchido com concertos para violino dos últimos tempos de vida do compositor, obras raramente gravadas e que atestam que Vivaldi estava no auge da sua capacidade criativa.
Por ironia, Quantz está mal colocado para fazer juízos severos sobre a produção de Vivaldi, pois também ele compôs copiosamente – 200 sonatas para flauta e 300 concertos para flauta – e, a julgar pelo pouco que foi gravado deste corpus, sem outra aspiração para lá do entretenimento do seu patão flautista, Frederico II da Prússia.
Porém, é verdade que no fim da vida, Vivaldi já não gozava da popularidade que tinha duas ou três décadas antes. A fama de Vivaldi tivera um início retumbante com a publicação em 1711, em Amesterdão, por Estienne Roger, da colecção L’estro armonico op. 3, contendo quatro concertos para violino, quatro concertos para dois violinos e quatro concertos para quatro violinos (alguns deles prevendo ainda uma parte solista para violoncelo). Não há melhor prova do apreço em que era tido pela Europa fora do que o facto de o sempre muito criterioso Johann Sebastian Bach ter transcrito cinco dos concertos para cravo ou órgão e ter convertido o op. 3 n.º 10, para quatro violinos, no Concerto para quatro cravos BWV 1065.
O “estro” do título, palavra hoje pouco usada, significa “riqueza de invenção” e, com efeito, é disso que Vivaldi dá prova nesta colecção de concertos.
[Concerto para violino RV 356, o n.º 6 do op. 3, por Biondi & Europa Galante]
A abordagem da Europa Galante ao op. 3 é de grande vigor e acutilância – mesmo pelos padrões dos anteriores discos da Europa Galante na Opus 111 – e suscitou, quando do seu lançamento (em 1998) algumas reacções adversas da imprensa musical britânica, que prezava um Vivaldi fleumático e comedido (não é de excluir que algum crítico mais conservador se tenha engasgado com um scone). Hoje já há menos críticos a reprovar a articulação muito incisiva, os tempos vertiginosos dos Allegros ou a fúria thrasher com que são atacadas as cordas de alaúdes e guitarras barrocas e a gravação de Biondi figura entre os discos de referência do op. 3.
[Allegro do Concerto para violino RV 230, o n.º 9 do op. 3, por Biondi & Europa Galante, ao vivo]
https://youtu.be/H1cGATxi0zc
CD 3: La stravaganza
Os 12 concertos de La Stravaganza op. 4, publicados em 1714 em Amesterdão, por Estienne Roger, e compostos provavelmente em 1712-13, também fazem justiça ao nome, dilatando ainda mais a gama de cores e soluções apresentada no op. 3. O op. 4 foi alvo de uma edição pirata realizada por John Walsh (o editor habitual de Handel) em 1728, em Londres, usando apenas metade dos concertos, julgados pelo editor mais adequados ao gosto britânico – o que levou a que colocasse de lado as obras mais “extravagantes”, em favor das mais próximas do Concerto Grosso, de sonoridade mais homogénea. Foi a esta edição de 1728, que até então não fora registada em disco, que Biondi recorreu, descartando um concerto (gravou os n.º 1, 2, 4, 9 e 11) e somando dois concertos “avulsos”, o RV 291 (para violino) e o RV 544 (para violino e violoncelo, conhecido como Il Proteo o sia Il mondo al rovescio). E uma vez que usou a edição Walsh, a abordagem de Biondi tenta reconstituir as práticas instrumentais na Londres de então, nomeadamente empregando no contínuo a cittern (ou cistre, um parente da guitarra portuguesa), em vez da guitarra barroca.
[Sessões de gravação de La stravaganza por Biondi & Europa Galante, incluindo entrevista com o maestro]
A quem queira ter o op. 4 completo recomenda-se a excelente versão (distinguida com um Gramophone Award) por Rachel Podger (violino e direcção) com os Arte dei Suonatori, gravada em 2002 e publicada pela Channel Classics.
CD 4+5: Il cimento dell’armonia e dell’inventione
O título desta colecção de 12 concertos publicada em 1725 como op. 8 significa “o certame da harmonia e da invenção”, um título onde pode ler-se uma tensão entre a “harmonia”, ou seja, as regras da composição musical, e a “invenção”, o lado mais livre e espontâneo da criação. A dicotomia – se de uma dicotomia se trata e não apenas de um floreado retórico – é magistralmente superada pelo compositor, que volta a dar provas de uma invenção inesgotável. A parte mais célebre do op. 8 são os quatro concertos para violino conhecidos como As quatro estações (Le quattro stagioni), que Biondi gravara em 1991 para a Opus 111, na “versão de Manchester”, isto é usando um manuscrito conservado na Biblioteca Central de Manchester. A gravação de 2000 é ainda mais arrebatadora, sobretudo no ciclónico Allegro que encerra o Verão.
[Verão, o concerto n.º 2 de Il cimento dell’armonia e dell’inventione, por Biondi & Europa Galante, ao vivo]
A fama de As quatro estações tem feito ofuscar os restantes concertos do op. 8, mas a gravação de Biondi mostra que estes não lhes são inferiores.
CD 6: Concerti per viola d’amore
A viola d’amore é um instrumento da família do violino cujas seis cordas são complementadas por seis cordas metálicas simpáticas (que não são tocadas, apenas vibram em simpatia) dispostas num plano inferior. O instrumento teve difusão limitada e apenas compositores hoje esquecidos – Attilio Ariosti, Christoph Graupner – lhe deram alguma atenção (embora a viola d’amore tenha aparição pontual em obras de outros compositores, como Bach).
Vivaldi, que se sabe ter sido executante do instrumento e o ensinou Anna Maria, uma das suas mais talentosas alunas no Ospedalle della Pietà, consagrou-lhe seis concertos (RV 392-397) e um duplo concerto para viola d’amore e alaúde (RV 540, de que se falará quando se abordar o CD 9), e concedeu-lhe algum protagonismo na ópera Tito Manlio e num concerto da camera, o RV 97, que também foi incluído neste disco.
Possuindo a viola d’amore uma sonoridade doce e plangente, Vivaldi prescinde do virtuosismo acrobático que emprega na escrita para violino solista e investe no lirismo e na expressividade. Os concertos para viola d’amore raramente são registados na íntegra, mas mesmo que houvesse concorrência mais cerrada, dificilmente faria sombra a esta versão, em que e Biondi revela perfeito à-vontade na viola d’amore.
[Concerto para viola d’amore RV 393, composto para “Anna Maria della Pietà”, por Biondi & Europa Galante]
CD 7: Concerti con titoli
O CD reúne obras de natureza diversa e destinadas a diferentes formações, que apenas têm em comum serem identificadas por um título, a que está por vezes associado um programa.
A selecção inclui o Concerto para violino RV 234, L’inquietudine, cujo Allegro inicial exprime, com efeito, desassossego e ansiedade, em contraste com o Concerto para violino RV 270, Il riposo (destinado a ser tocado na noite de Natal), diáfano como gaze e de uma doçura realçada pelas cordas dotadas de surdinas.
O concerto RV 552 prevê um violino solista em primeiro plano e outro que lhe serve de eco distante (“per eco in lontano”, especificou Vivaldi) e é de uma originalidade sem par (o que não impede que seja também de um extraordinário lirismo).
[Concerto para dois violinos RV 552, “per eco in lontano”, por Biondi & Europa Galante]
https://youtu.be/yx6fmZvuJPM
O Concerto para flauta RV 439 La notte (uma reformulação do Concerto para cordas RV 104) tanto engendra climas inquietantes (os “fantasmi” do II andamento) como mergulha na letargia (o IV andamento, “Il sonno”, a evocar o sono dos bêbedos no andamento central do Outono).
O Concerto para flauta de bisel, oboé e fagote RV 570, intitulado La tempesta di mare, não tem relação com o Concerto para violino RV 253 com o mesmo título (o n.º 5 de Il cimento dell’armonia e dell’inventione), embora sejam igualmente borrascosos. Trata-se antes de uma reorquestração, timbricamente enriquecida, do Concerto para flauta RV 433 (o n.º 1 da colecção op.10).
O Concerto Funebre RV 579 faz parte dessa galeria de quimeras que Vivaldi designou como “concerti con molti stromenti” (ver abaixo): além das cordas e do baixo contínuo, alinha uma equipa solista com violino, oboé, salmoe (chalumeau, um antepassado do clarinete) e três viole all’inglese (violas da gamba dotadas de cordas simpáticas em metal), e possui atmosfera dominantemente sombria. O IV andamento, pela gravitas e pela escrita fugada, faz pensar mais em Bach do que em Vivaldi.
[Concerto Funebre RV 579, por Biondi & Europa Galante]
https://youtu.be/qDkWBDCFOxU
O CD fecha com o Concerto para dois violoncelos RV 531, que não tem título, mas atendendo ao seu Allegro inicial, de grande dramatismo, ao seu Largo, que soa como uma pungente ária operática de despedida entre dois amantes, e ao Allegro final, de uma vitalidade e frescura incomparáveis, não passará pela cabeça de ninguém reclamar da “incoerência”.
[Concerto para dois violoncelos RV 531, por Biondi & Europa Galante, com Maurizio Naddeo e Antonio Fantinuoli como solistas]
O CD Concerti con titoli bastaria, por si só, para fazer desmoronar a ideia do compositor que compôs 400 vezes o mesmo concerto, mais ainda na versão da Europa Galante, que acentua as particularidades e coloridos de cada um destes sete concertos.
CD 8: Concerti per mandolini & Concerti con molti stromenti
Vivaldi não só escreveu grande número de concertos para instrumentos “convencionais”, como violino, violoncelo, oboé e fagote, como deu atenção a instrumentos que todos os compositores de primeiro plano negligenciaram. Entre eles está o humilde bandolim, a que destinou dois concertos: o RV 425 para um bandolim (e as cordas em pizzicato, para abrir espaço para a delicada sonoridade do solista) e o RV 532 para dois bandolins.
[Andante do Concerto para dois bandolins RV 532, por Biondi & Europa Galante, com Giovanni Scaramuzzino e Sonia Maurer como solistas]
Deu ainda ao bandolim um papel no Concerto RV 558, uma deliciosa bizarria que tem como solistas dois violinos “in tromba marina”, duas flautas de bisel, dois bandolins, dois salmoe, duas tiorbas e violoncelo e que, apesar da sua brevidade, consegue conceder breves espaços na ribalta aos vários instrumentos, que se apresentam aos pares.
[Allegro inicial do Concerto para dois violinos “in tromba marina”, duas flautas de bisel, dois bandolins, dois salmoe, duas tiorbas e violoncelo RV 558, por Biondi & Europa Galante]
O RV 558 faz parte dos “concerti con molti stromenti”, que Vivaldi compôs para três destinos diversos: um deles eram os concertos do Ospedalle della Pietà, cuja orquestra de raparigas não só era de elevado nível técnico como dominava um instrumentário vasto, onde se incluíam “animais raros” como os salmoe, as viole all’inglese, os bandolins, os alaúdes e os violinos “in tromba marina” (um violino dotado de uma ponte não fixa, que vibrava livremente e cuja sonoridade evocava um antigo instrumento de uma só corda chamado tromba marina). Outra finalidade eram os teatros de ópera, onde a sua espectacularidade se prestava a servir de abertura ou de interlúdio entre actos. Outro destino destes concertos de extravagante instrumentação era a sumptuosa orquestra da corte de Dresden, que tinha uma quarentena de músicos, em que se incluíam exímios executantes de trompa, flauta, oboé e fagote e em que era primeiro violino o seu discípulo e amigo Johann Georg Pisendel. Os títulos de alguns “concerti con molti stromenti” fazem alusões explícitas à relação privilegiada de Vivaldi com a orquestra de Dresden: é o caso de dois incluídos neste CD, o RV 576, para violino, duas flautas de bisel, três oboés e fagote, “dedicato a Sua Altezza Reale di Sassonia” (Frederico Augusto II, que, passara mais de um ano em Veneza, em 1716-17), e o RV 319, para violino, dois oboés e fagote, “dedicato a S. Pisendel”.
[Concerto para violino, duas flautas de bisel, três oboés e fagote RV 576, “dedicato a Sua Altezza Reale di Sassonia”, por Biondi & Europa Galante]
CD 9: Concerti con molti stromenti vol. 2
O CD 9 prossegue a oferta de mirabolantes combinações de solistas: o RV 562a, por exemplo, prevê como solistas violino, dois oboés, duas trompas de caça e timbales e terá sido encomendado para a estreia do Teatro Schowburg, de Amesterdão, em 1738. É uma versão revista do concerto RV 562, composto em 1710-17 e que tem por título “Concerto per la solennità di San Lorenzo”. Qualquer dos eventos terá certamente beneficiado de música de natureza tão imponente e festiva.
[I andamento (Andante-Allegro) do Concerto grosso a 10 stromenti RV 562a, por Biondi & Europa Galante]
Mais ortodoxo na instrumentação é o Concerto para violoncelo RV 413 (Vivaldi compôs 27 para este instrumento), uma obra muito vigorosa e incisiva, em que o solista Maurizio Naddeo tem notável desempenho.
O Concerto para viola d’amore e alaúde RV 540, que foi estreado a 20 Março de 1740, num concerto no Ospedalle della Pietà, em Veneza, em homenagem a Frederico Augusto II, eleitor da Saxónia e rei da Polónia, é mais uma prova da leviandade do juízo de Quantz sobre o declínio da arte de Vivaldi nos seus últimos anos. Embora sendo uma obra tardia, exibe uma subtileza e uma profundidade que estão nos antípodas da “frivolidade e capricho” apontados por Quantz: as cordas equipadas com surdina tecem uma atmosfera velada e extra-terrena, sobre a qual a viola d’amore e o alaúde traçam delicadas filigranas. Nunca se produziu música assim, nem antes nem depois.
[Allegro inicial do Concerto para viola d’amore e alaúde RV 540 por Biondi & Europa Galante]