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O vulcão dos Capelinhos esteve em erupção entre 21 de setembro de 1957 e 24 de outubro de 1958, na ponta oeste da ilha açoriana do Faial
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O vulcão dos Capelinhos esteve em erupção entre 21 de setembro de 1957 e 24 de outubro de 1958, na ponta oeste da ilha açoriana do Faial

Luís Decq Mota

O vulcão dos Capelinhos esteve em erupção entre 21 de setembro de 1957 e 24 de outubro de 1958, na ponta oeste da ilha açoriana do Faial

Luís Decq Mota

Vulcão dos Capelinhos. “A terra tremia e caía chuva miudinha. Só se ouviam os cães a ladrar e as vacas a mugir. Achei que não sobreviveria”

Esteve ativo 13 meses, obrigou a evacuações, destruiu casas, acrescentou terra à ilha e fê-la perder metade da população — mas não matou ninguém. A história do vulcão dos Capelinhos por quem o viveu.

O homem naquela manhã de plantão na vigia da baleia foi o primeiro a aperceber-se de que alguma coisa estranha estava a acontecer no mar, a poucos metros de distância dali, junto aos ilhéus dos Capelinhos, já a água borbulhava mas ainda não havia explosões de cinza nem nuvens de vapor a erguer-se no céu.

Manuel Vargas, o Manel da Ti’Ana, como sempre foi conhecido na freguesia faialense do Capelo, não lhe ficou muito atrás. Aliás, por pouco, não se lhe antecipava, que, naquela manhã, quando desceu da casa onde morava com os pais e os quatro irmãos para ir trabalhar na estrada que liga à Fajã e à Praia do Norte, juntamente com outros rapazes da terra, bem reparou numa mancha negra, que parecia alastrar no mar.

"Passou um senhor, que todos os dias ia buscar pão ao Capelo, e ele é que nos avisou: ‘Olhem, rebentou um vulcão ao pé dos Capelinhos’. Largámos tudo e fomos para baixo, nunca tinha visto vulcão nenhum"
Manuel da Ti'Ana, 84 anos

“Mas passavam aqui muitos navios que tinham a mania de lavar os depósitos, por isso não liguei e fomos trabalhar”, recorda ao Observador, por minutos de volta àquela manhã de 27 de setembro de 1957. “Entretanto passou um senhor, o senhor Onofre, que todos os dias ia buscar pão ao Capelo, e ele é que nos avisou: ‘Olhem, rebentou um vulcão ao pé dos Capelinhos’. Largámos tudo e fomos para baixo, nunca tinha visto vulcão nenhum.”

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Naquela sexta-feira tinha 18 anos, não faz ideia de quantos minutos demorou a subir a arriba do Costado da Nau, onde à época acabava a terra e começava o mar naquela zona do Faial, só consegue dizer que foram poucos, tal era a ânsia de ver o que estava do lado de lá. Agora, aos 82, Manuel da Ti’Ana sabe que a vista não vai trazer-lhe nada de novo, mas ainda assim faz questão de voltar a subir a encosta, noutro ritmo, devagar e com uma ou outra pausa pelo meio, para recuperar o fôlego.

No dia 21 de setembro de 1957, Manuel da Ti'Ana subiu o Costado da Nau a correr, para ver nascer o vulcão

Uma vez no topo do precipício, revigorado, aponta para o vulcão que ali viu começar a nascer e recorda o que testemunhou naquela manhã em que todas as atenções da ilha se viraram para a ponta oeste: “Havia relâmpagos, a água fervia, estava a ficar toda amarela e cheirava muito a enxofre. À tarde já fazia umas explosões, mas pequenas. No segundo dia começou a formar-se uma ilha. Este vulcão foi terrível, não matou ninguém mas tivemos de abandonar as nossas casas e fugir”, antecipa-se na história, que, além de sua, é a dos faialenses e, se não de todos os outros, pelo menos dos açorianos do Pico e de São Jorge, as outras duas ilhas do triângulo, que pela proximidade também foram afetadas. E do resto do mundo também: a do vulcão dos Capelinhos foi a primeira erupção submarina alguma vez diretamente observada, documentada e estudada, desde a manhã em que nasceu até ao dia em que finalmente se silenciou.

Se hoje não dá nome a todas as erupções do género, explicará no dia seguinte ao Observador Sara Alves, responsável pelo centro de interpretação que entretanto ali foi construído, debaixo de terra, para não macular a nova paisagem de estilo lunar, é só porque há 64 anos alguém se esqueceu de fazer o registo junto das entidades devidas, lapso que não se repetiu em 1963, quando o Surtsey emergiu, da mesma maneira e com as mesmas características, ao largo da Islândia. É só por isso que, hoje, os cientistas chamam “surtseianas”,  em vez de “capelinianas”, às erupções vulcânicas que ocorrem em lagos ou em zonas marítimas de pouca profundidade.

A mulher de calças que chegou para estudar o vulcão

Naquele momento em que subiu a correr o Costado da Nau, com outros rapazes do Capelo, com quem costumava jogar à bola no campo de futebol que havia mesmo ali, do lado esquerdo, Manel da Ti’Ana não poderia sequer imaginar que o vulcão que estava a surgir ia manter-se em atividade durante os 13 meses seguintes.

Em Lisboa, Raquel Soeiro de Brito, a primeira mulher em Portugal a concluir um doutoramento em Geografia e uma das primeiras a alcançar tal grau académico, também não tinha como sabê-lo. Aos 32 anos e com a tese escrita, apenas dois anos antes, sobre os vulcões adormecidos de São Miguel, nunca tinha visto uma erupção ao vivo — e essa era uma falha que queria muito colmatar.

“A primeira vez que sobrevoei o vulcão foi num bruto avião de guerra americano. Fiquei fascinada com o que vi: uma ilha pequenina, lindíssima, em forma de ferradura — o clássico de uma ilha vulcânica submarina —, que do meio deitava fumos e cinza e material vulcânico”
Raquel Soeiro de Brito, geógrafa

Quando o professor Orlando Ribeiro, com quem trabalhava, como assistente, lhe disse que não valia a pena porem-se a caminho do Faial, porque o mais certo era que tudo estivesse acabado antes de terem tempo para lá chegar, não aceitou o não como resposta. Insistiu tanto que Orlando Ribeiro, então com 46 anos e já considerado uma sumidade nacional na matéria, acabou por se render: “Um vulcão é um vulcão, não há dois exatamente iguais. Ele já tinha visto um, o do Fogo [na ilha cabo-verdiana, que entrou em erupção em 1951], e não queria ver este. Eu tinha estudado muitos ‘mortos’ mas nunca tinha visto nenhum ao natural, portanto queria ver este. Disse-me: ‘Ah, queres ir? Então tratas tu de tudo’”, recorda a professora, hoje com 96 anos, ao Observador.

Em poucos dias, as casas da aldeia baleeira do Porto Comprido ficaram soterradas. As freguesias próximas tiveram de ser evacuadas

Luís Decq Mota

A 5 de outubro, oito dias depois de o vulcão ter entrado em erupção, estavam ambos a desembarcar no Faial, para uma missão de estudo que foi sancionada por Baltasar Rebelo de Sousa, pai do atual presidente da República, então sub-secretário de Educação Nacional, e a que se juntou Salvador Fernandes, operador de cinema, que também tinha uma loja de material fotográfico e de filmar, e que seis anos antes tinha estado com Orlando Ribeiro na Ilha do Fogo. “Fui falar com ele, para lhe pedir o que precisava, e ele disse logo que também vinha”, conta a professora.

Ao longo das três semanas seguintes, fosse à janela da casa com vista privilegiada para o vulcão onde ficaram instalados, no Canto do Capelo, fosse no Costado da Nau, no cimo do farol, em navios ao largo da ilha ou até em aviões militares, Raquel Soeiro de Brito passou os dias e as noites a observar o vulcão; só parava para comer, chegou a ter de ser retirada em braços pelos bombeiros destacados para acompanhar a equipa, quando as explosões se intensificavam, as rochas que chegavam a pesar dois quilos começavam a cair vertiginosamente perto e ela continuava a suplicar por mais uns minutos no terreno. “Tinha 30 anos, era saudável e adorava vulcões, o que é que eu havia de fazer?”, ri-se hoje, 64 anos depois.

“O termómetro que arranjei só media até 400ºC, óbvio que ficou em Lisboa. Tinha um caderno, uma esferográfica, um relógio e um binóculo, que também só media até aos 2 quilómetros, quando as nuvens de vapor e de água subiam a mais de 5 ou 6 quilómetros. Os cálculos que fiz estão todos errados. Foi só para dizer que não íamos estudar o vulcão a olhómetro”
Raquel Soeiro de Brito, geógrafa

“A primeira vez que sobrevoei o vulcão foi num bruto avião de guerra americano. Fiquei fascinada com o que vi: uma ilha pequenina, lindíssima, em forma de ferradura — o clássico de uma ilha vulcânica submarina —, que do meio deitava fumos e cinza e material vulcânico”, continua a recordar. O primeiro vulcão — “filhote” é como lhe chama — não se esquece.

A única coisa que lamenta é não ter tido, nem nesta primeira viagem de estudo ao vulcão, nem na que se lhe seguiu em janeiro de 1958, equipamento mais sofisticado para trabalhar. “O termómetro que arranjei só media até 400ºC, óbvio que ficou em Lisboa. Tinha um caderno, uma esferográfica, um relógio e um binóculo, que também só media até aos 2 quilómetros, quando as nuvens de vapor e de água subiam a mais de 5 ou 6 quilómetros. Os cálculos que fiz estão todos errados. Foi só para dizer que não íamos estudar o vulcão a olhómetro”, explica a professora, que nos anos 50 causou sensação naquela ponta do Faial, por andar sempre de calças e de lenço na cabeça, para proteger os cabelos das cinzas e do vento. Uns iam ao Capelo para ver o vulcão, outros para a ver a ela.

O vício, os riscos e as fotografias: turismo em plena erupção

Entre 27 de setembro de 1957 e 24 de outubro de 1958, o dia em que finalmente parou, o vulcão dos Capelinhos passou por diversas fases e obrigou a duas evacuações das aldeias da zona — primeiro por conta da queda de cinzas tóxicas, que quando o vento virou cobriram campos e casas, destruíram colheitas e arruinaram os pastos; depois em consequência da crise sísmica que na noite de 12 para 13 de maio se fez sentir na ilha inteira.

Ao longo deste período, garantem ao Observador todos os que o viveram, o vulcão acabou por “entrar na rotina” dos faialenses — se bem que de formas muito diferentes. Depois de terem passado algumas semanas, em alguns casos, meses, longe de casa, os habitantes da zona foram regressando e começaram a trabalhar na recuperação: algumas casas tinham abatido, com o peso das cinzas nos telhados, outras estavam inacessíveis, tantos eram os detritos acumulados nas estradas.

O vulcão passou a ser atração turística. Algumas pessoas, como Maria Luna Ribeiro, iam até ao Capelo todos os dias

Luís Decq Mota

O pai de José Decq Mota era um dos sete únicos médicos na altura no Faial, cujas estradas percorria praticamente todos os dias, para ver doentes de freguesia em freguesia, ao volante do seu Morris Oxford preto, outra raridade, apenas ao alcance das famílias mais abastadas da Horta. No dia em que o vulcão acordou, o médico pôs-se a caminho do Capelo, com os dois filhos mais velhos, Luís Carlos, então com 9 anos, e José, de 8. “Às 9h já cá estávamos. Havia dois ilhéus, à frente do farol, e um bocadinho fora, no mar, havia umas borbulhas e umas fumarolas”, explica, enquanto vai folheando os 13 álbuns de fotografias que o pai tirou, com a sua máquina de fole, durante a erupção, um para cada mês de atividade do vulcão.

Terão sido poucos os dias em que Luís Decq Mota, uma espécie de fotógrafo oficioso do vulcão, não foi ao Canto do Capelo naquela altura. Quando o famoso vulcanólogo polaco Haroun Tazieff aportou na ilha, foi ele quem lhe serviu de tradutor; e quando finalmente a fase eruptiva terminou, foi no Varadouro, outro lugar do Capelo, que construiu a casa de veraneio da família. “Muitas pessoas diziam que ele era maluco por fazer a casa tão perto do vulcão”, recorda o filho José, sentado na sala de estar dessa mesma moradia, terminada em 1960 e com uma vista estonteante para o oceano. “O meu pai apaixonou-se um bocado pelo próprio vulcão. Foi fazendo fotografias, tirava anotações e quando registava qualquer coisa diferente comunicava aos vulcanólogos nacionais e estrangeiros que andavam por aí.”

José Decq Mota costumava acompanhar o pai nas visitas ao vulcão. No dia 20 de abril de 1958 brincou com os irmãos na areia: "De repente houve uma explosão de cinzas e tivemos de fugir"

Pelo meio, o médico Luís Decq Mota levava também a família a ver o vulcão. O filho perdeu a conta às vezes que lá foram, mas recorda que o que não faltava eram mais que, como eles, vinham da Horta para apreciar aquele raro espetáculo da natureza. E até das outras ilhas dos Açores: “O meu pai era natural de São Miguel, os meus dois irmãos mais velhos nasceram em Ponta Delgada. Com o passar do tempo a família de São Miguel foi vindo ver o vulcão, vieram os irmãos dos meus pais e os meus avós”.

“Antes da fase estromboliana não havia ainda o cone no meio, o sítio onde nós estamos hoje é mar profundo”, explica José Decq Mota, enquanto mostra uma fotografia, com o vulcão, diferente do que é hoje, ao fundo, em que se veem três crianças a brincar na areia  — ele próprio, em primeiro plano, e os irmãos Luís Carlos e Elisa, então com 4 anos, (João e António, os mais novos, só nasceriam depois do vulcão). “Foi a 20 de abril de 1958, um dia em que o vulcão estava parado. Não sei se era feriado ou domingo, mas houve muita gente que se aproximou, descemos uma canada e fomos brincar na areia. De repente houve uma explosão de cinzas e tivemos de fugir, lembro-me do meu pai a gritar: ‘Vamos embora! Todos para aqui!’. Percebe-se pela fotografia que o pouco vento que havia vinha do lado do mar, quando chegámos ao carro estava tudo negro de cinzas.”

Maria Luna Ribeiro, que tinha 31 anos quando tudo começou, assume hoje que aquilo que faziam era “uma inconsciência”, mas não tenta sequer conter as gargalhadas quando evoca as memórias daquele tempo. Filha de um banqueiro, nunca trabalhou um dia na vida, mas, durante aquele ano, terão sido muito raras as vezes que faltou ao vulcão, subitamente mais apelativo do que as noites de jogo na exclusiva Sociedade Amor da Pátria, onde só eram admitidas as pessoas da alta sociedade da Horta, ou até que os serões no Peter, onde à época estavam sempre a chegar novos iates, para onde chegou a ser convidada, com o marido e casais amigos, para jantares servidos com talheres de ouro.

“Quando estava o vento para cá, não nos aproximávamos, por causa das cinzas, mas quando estava ao contrário íamos quase até à beira, era uma inconsciência.”
Maria Luna Ribeiro, 95 anos

Logo no primeiro dia, 27 de setembro, recebeu em casa um marinheiro, que trazia um recado de Ruy César Chaby Lara, então comandante do porto da Horta, a perguntar se ela e o marido queriam juntar-se na viagem até ao Capelo. “Parece que há um vulcão rebentado, dizem eles. Mas eu, como capitão do porto, tenho de ir lá acima”, cita de cor Maria Luna Ribeiro, hoje com 95 anos, viúva há 22.

“O Carlos não podia ir, porque estava a trabalhar, mas eu fui, no jipe da capitania. E assim vi nascer o vulcão. Passámos a ir todos os dias, era um vício. Começámos a ver sair a cinza, depois as casas dos baleeiros desapareceram todas, e a seguir veio a lava. Às vezes vinham aquelas pedras enormes incandescentes e nós corríamos por cima dos telhados das casas que já tinham sido todas cobertas pelas cinzas”, recorda, entre risos, para voltar a admitir depois que podia ter corrido muito mal. “Quando estava o vento para cá, não nos aproximávamos, por causa das cinzas, mas quando estava ao contrário íamos quase até à beira, era uma inconsciência.”

Maria Luna Ribeiro foi ao vulcão no primeiro dia e em todos os outros depois: "Era um vício"

“O vulcão veio beneficiar mais do que prejudicar”

Se para muitos dos que moravam na Horta a erupção era essencialmente um fenómeno da natureza, bonito e fascinante, para os moradores das freguesias em torno dos Capelinhos a queda ininterrupta de cinzas tornou rapidamente o ar irrespirável e as ruas intransitáveis — “belo-horrível” é como os faialenses ainda hoje se referem ao vulcão.

“Foi aumentando sempre de intensidade, chegou a um ponto em que houve umas explosões muito fortes e ficou tudo negro, com a cinza. Não havia comida para o gado, os cabeços estavam todos negros. O meu pai levou as vacas e nós também tivemos de fugir, fomos para a Horta para casa de umas pessoas conhecidas, ficámos lá umas cinco semanas”, recorda Manel da Ti’Ana ao Observador.

“A casa dos nossos pais e dos nossos avós serviu para alojar durante dois meses uma família grande do Capelo. A zona que era o consultório do meu pai e o quarto de jantar ficou para eles e a gente apertou-se. Para a miudagem era uma animação”
José Decq Mota, 72 anos

Por instantes, regressa a outubro de 1957, mês em que acabou por trocar o trabalho na construção da estrada por um lugar na camioneta da Legião Portuguesa, requisitada para apoiar as populações das terras mais afetadas, que então viviam quase exclusivamente da agricultura, da pesca ou da caça à baleia e foram obrigadas a parar de trabalhar, primeiro, e, depois, a abandonar as próprias casas, por ordem do governador Freitas Pimentel, aconselhado pelo professor e geógrafo Orlando Ribeiro.

Muitas foram alojadas por conhecidos e familiares, outras foram instaladas em casas desocupadas ou até em partes de casas de famílias, que aceitaram receber os “sinistrados” do vulcão. “A casa dos nossos pais e dos nossos avós serviu para alojar durante dois meses uma família grande do Capelo”, recorda José Decq Mota. “A zona que era o consultório do meu pai e o quarto de jantar ficou para eles e a gente apertou-se. Para a miudagem era uma animação.”

As cinzas soterraram as culturas de milho, batata e vinha, as temperaturas mataram o peixe e a atividade do vulcão afugentou as baleias e os cachalotes, que tinham naquele um dos principais pontos de passagem. Poucas semanas depois, as casas da aldeia baleeira do Porto do Comprido acabaram mesmo por desaparecer sob as cinzas, e a seguir foi o farol que teve de ser desativado, chegando os detritos a acumular-se até à altura da primeira janela, vários metros acima do solo. Tomás Pacheco, um dos quatro faroleiros da altura, passou a ter a missão de “controlar o vulcão”: “Acompanhava os cientistas, fazia medições e registava o que ia acontecendo”, conta Luís Decq Mota, que diz que muitos homens da terra foram chamados para construir umas casas de madeira, para substituir as que tinham abatido com o peso das cinzas, e que era preciso limpar os telhados das casas que resistiam assim que os detritos se começavam a acumular, para não lhes acontecer o mesmo.

Toda a ajuda era pouca e o que não faltava era o que fazer: “Andavam mais uns quatro, a distribuir comida e roupas”, conta Manel da  Ti’Ana que, no meio do caos e da destruição e apesar do trabalho que o levava todos os dias para o Capelo, tinha entretanto conhecido Balbina, aquela que viria a ser sua mulher durante 50 anos, mãe das suas três filhas. Assim que despachava o serviço, voltava o mais depressa possível para a capital da ilha, para ir namorar, “à antiga, à janela”.

Por ordem do governador Freitas Pimentel, as freguesias mais próximas do vulcão tiveram de ser evacuadas

Luís Decq Mota

O de Manel da Ti’Ana e Balbina é apenas mais um exemplo, muito prosaico, de como do vulcão, que tanto mal provocou, também resultaram coisas boas para os habitantes do Capelo e das freguesias mais afetadas, garantiram ao Observador mais de uma dezena de entrevistados.

Por muito que todos tivessem o que comer, as famílias eram numerosas e viviam com poucos recursos. Automóveis praticamente não existiam na zona, aparelhos de rádio idem — “Só conhecia uma pessoa que tinha, um parente do meu pai, baleeiro. A família era pequena e ele conseguiu juntar dinheiro para comprar um rádio”, conta Tomás Matos, que em 1957 tinha 20 anos e vivia no Canto do Capelo, mesmo junto ao vulcão, com os pais e alguns irmãos, já não sabe dizer quantos — eram nove filhos ao todo, uns já estavam casados, outros continuavam a viver na mesma casa e a trabalhar nas terras da família.

“O vulcão veio beneficiar mais do que prejudicar. A vida modificou-se logo, a caça à baleia saiu daqui e foi para Castelo Branco, ao pé do aeroporto; muitas pessoas emigraram e conseguiram vidas melhores; e os que não foram ficaram com mais terras para cultivar”
Tomás Matos, 84 anos

“Tínhamos quatro vacas, que foram as primeiras a sair, e um carro de bois. Logo em outubro, por ordem do governador, todas as pessoas tiveram de deixar as suas casas. Nós fomos para a Feteira, mas todos os dias vínhamos para cima, trabalhar a terra ou ajudar a limpar as cinzas das estradas”, recorda, aos 84 anos, sentado a uma das mesas do “Vulcão”, o café que em 1990 abriu com a mulher, no cruzamento da estrada que vai para os Capelinhos.

“O vulcão veio beneficiar mais do que prejudicar. A vida modificou-se logo, a caça à baleia saiu daqui e foi para Castelo Branco, ao pé do aeroporto; muitas pessoas emigraram e conseguiram vidas melhores; e os que não foram ficaram com mais terras para cultivar”, conclui Tomás Matos. A freguesia do Capelo, que na década de 1950 tinha 1.369 habitantes, chegou a 1960 com apenas 851. Agora, em 2021, tem ainda menos: 527.

Uma série de desastres naturais (e outras tantas promessas e procissões)

Há outro fator que faz com que os faialenses não considerem a erupção dos Capelinhos a pior coisa que lhes aconteceu: desastres naturais maiores e com consequências muito mais graves. “Nesse ano o tal vulcão fez tudo o que sabia, esteve quase a matar a gente toda. Mas não matou ninguém e o sismo de julho de 98 matou. Tínhamos cinco casas, foram todas pelo chão menos esta”, argumenta José Freitas, o “Zé da Lomba”, alcunha assentada desde que se lembra à conta do lugar onde mora e onde, já em 1957, tinha uma taberna com mercearia — “Agora é que dizemos café” —, na freguesia do Salão, a 20 quilómetros dos Capelinhos, na zona norte da ilha.

Na madrugada de 9 de julho de 1998, pelas 5h30, um sismo de 5,9 na escala de Richter abalou violentamente o Faial e foi responsável pela morte de 8 pessoas e pela destruição de 70% das casas da ilha — até no Pico, do outro lado do canal, houve danos a registar.

José Freitas foi para a tropa, depois de a erupção começar. Controlava a passagem para o vulcão, com uma bandeira branca e outra vermelha

Entre julho e outubro, os moradores do Salão tiveram de viver em tendas, praticamente toda a aldeia ficou destruída. “Só debaixo desta parreira tínhamos 48 pessoas a dormir e havia mais acampamentos por aí”, aponta José Freitas, para o espaço livre ao lado do café, hoje entregue aos netos. O terramoto foi tão violento que revirou as campas do cemitério, a imagem do caixão do avô, sepultado sete meses antes, novamente aberto, mais uma vez em cima da terra, é algo que nunca lhe sairá da memória, confessa ao Observador.

Já da erupção dos Capelinhos, que primeiro foi de cinza e só mais tarde de lava, tem recordações menos tétricas. Na manhã em que o vulcão finalmente despertou, depois de uma dúzia de dias em que a terra de Salão, Cedros, Capelo e Praia do Norte não parou de tremer, se bem que de forma muito mais ligeira — foram registados cerca de 200 sismos, todos abaixo de 5 na escala de Mercalli modificada, que vai de 1 a 12 —, também ele foi lá abaixo ao Capelo, ver o que se passava.

A fase mais bonita foi a da lava, que começou em maio de 1958, dizem todos os que assistiram à erupção

Luís Decq Mota

Na altura tinha 20 anos e estava prestes a entrar na tropa, que o haveria de pôr ao serviço do vulcão, na estrada, junto à casa onde tinha sido instalada a missão científica, de bandeiras na mão, a controlar o trânsito, mais pedestre do que outra coisa, já se sabe. “Tínhamos duas bandeiras, uma branca, outra vermelha. Vinha muito turismo, as pessoas vinham de fora, achavam graça àquilo. Se o vulcão estava tranquilo, era bandeira branca, se estavam aquelas explosões púnhamos a bandeira vermelha e eles até corriam!”

No primeiro impacto, o que o marcou foi a água que borbulhava, o peixe que boiava morto à tona e os ímpetos da população, que mandou logo uma lancha ao mar, para tentar cercá-lo e trazê-lo para terra. “Congros, abróteas, bocas-negras, chicharros, todo o peixe que existia estava morto em cima da água e as pessoas foram todas apanhar o peixe, mas depois o governador mandou botar tudo fora, podia ter gases venenosos”, conta o faialense,  agora com 84 anos.

“Congros, abróteas, bocas-negras, chicharros, todo o peixe que existia estava morto em cima da água e as pessoas foram todas apanhar o peixe, mas depois o governador mandou botar tudo fora, podia ter gases venenosos”
José Freitas, 84 anos

“Naquele tempo estávamos ceguinhos do que era um vulcão, a lava, as explosões, a chuva de cinzas. Não era como agora, que há informação”, já tinha dito horas antes Maria Belmira Faria, de 74 anos, ao Observador. Muito por causa dessa falta de conhecimento, compensada em larga escala pela fé, explica, desde o início multiplicaram-se as procissões ao vulcão, organizadas pelos párocos locais ou até sem eles, a pedir o fim da ira de Deus, expressa pela erupção. “Há muitas histórias dessa altura, pessoas que dizem que iam com a coroa do Espírito Santo à lava e ela virava, tinham muita fé”, conta a faialense, que só tinha 10 anos e morava na Praia do Norte, a freguesia mais pequena da ilha, com os pais, o irmão e a irmã bebé, quando o vulcão dos Capelinhos despertou.

Muitas das tradições religiosas da ilha, repleta de Impérios, pequenas capelas em louvor ao Espírito Santo erguidas não pela Igreja Católica mas pelos próprios habitantes de cada lugar, organizados em irmandades, tiveram origem noutras catástrofes naturais.

Houve procissões ao vulcão desde o início. “Há muitas histórias dessa altura, pessoas que dizem que iam com a coroa do Espírito Santo à lava e ela virava”, conta Maria Belmira Faria

José Decq Mota

A 18 de maio de 1672, depois da erupção do vulcão do Cabeço do Fogo, que arrasou a Praia do Norte — que em 1958, na crise sísmica que abalou todo o Faial e deu início à fase mais explosiva dos Capelinhos, voltou a ficar completamente destruída — o governo do Faial aprovou um voto solene, “tanto pelos benefícios recebidos de não ser maior o dano que o dito fogo podia fazer como pelo mais que de todo se espera ver quieto e consumido”. Ainda hoje, em todos os Domingos de Pentecostes, sai da igreja matriz da Horta uma procissão, o chamado Império dos Nobres, a expensas do município da Horta.

Em todos os restantes lugares da ilha, explica Maria Belmira Faria, cada Império organiza a sua própria procissão, em que a coroa e o estandarte do Espírito Santo são levados à igreja, seguida por um almoço de sopas de carne, carne cozida, carne assada, massa sovada e vinho, e arraial popular depois. “Quando chega o tempo da festa do Espírito Santo, todos os irmãos, que vão pagando as pautas durante o ano, ajudam, mas são sempre escolhidos os mordomos, que são quem vai oferecer a festa e matar um boi ou uma vaca para o almoço. Em 1958, os mordomos da Praia Grande eram os meus avós”, recorda Maria Belmira Faria, que a 5 de dezembro de 1957, pouco mais de dois meses depois do início da erupção, se mudou para o Pico, com a mãe e os irmãos. “O meu pai era empreiteiro, estava lá a fazer a adega regional. Aqui não podíamos cultivar nada e até os ovos das galinhas apodreciam quando lhes caía a cinza quente em cima, por isso fomos ter com ele. Mas como os meus avós eram os mordomos da festa e no dia 12 de maio havia uma novena a Nossa Senhora, a minha mãe veio para ajudar e trouxe a minha irmã, que tinha dois anos.”

12 de maio de 1958, a noite de todos os tremores de terra

Quando a terra começou a tremer, no fim desse dia, os habitantes da Praia Pequena estavam praticamente todos reunidos na igreja. Foi a pior noite de toda a erupção; entre as 18h desse 12 de maio, uma segunda-feira, e o meio-dia de dia 14, quarta-feira, foram registados 460 sismos, em toda a ilha, mas na manhã de dia 13 a Praia do Norte e o lugar da Ribeira do Cabo, no Capelo, já estavam completamente devastados, não restou uma única casa de pé. Outros locais, como Areeiro, Cruzeiro e Espalhafatos, não ficaram muito melhor.

Apesar da destruição, não morreu ninguém: quem não fugiu a tempo, foi retirado por ordem do governador, que se deslocou àquela ponta da ilha para alertar a população, era demasiado perigoso, ninguém podia ali ficar.

“Era um espetáculo incrível, a terra tremia, estava nevoeiro e a cair uma chuva miudinha, não se via nada, só se ouvia os cães a ladrar e as vacas a mugir, foi a única noite da minha vida em que achei que não havia hipótese de sobreviver”
Maria Eduarda Rosa, 74 anos

As pessoas da Praia do Norte, como os avós e a mãe de Maria Belmira Faria, depois de perceberem que as orações não tinham poder para fazer parar a terra, puseram-se a caminho dos Cedros, a 13 quilómetros de distância, para norte: “Estava muito mau, as casas começaram a cair e abriam-se fendas no caminho. Eu estava no Pico, também havia abalos, mas nada como aqui. O meu pai meteu-se numa lancha e veio à procura da minha mãe”.

Já as pessoas do Capelo, que entretanto tinham voltado às respetivas casas, começaram a descer, na direção da Horta. Maria Eduarda Rosa, que tinha 10 anos e morava no lugar do Areeiro, na freguesia do Capelo, a que o pai chegou a presidir, lembra-se de estar sentada à beira da estrada, à espera de que passassem todas as pessoas que fugiam a pé. “Era um espetáculo incrível, a terra tremia, estava nevoeiro e a cair uma chuva miudinha, não se via nada, só se ouviam os cães a ladrar e as vacas a mugir, foi a única noite da minha vida em que achei que não havia hipótese de sobreviver.”

A crise sísmica de maio de 1958 destruiu completamente a freguesia da Praia do Norte

Quando acabou a procissão, bem diferente daquelas em que tantas vezes tinha participado, para rogar o fim da erupção, Maria Eduarda Rosa e a família entraram no Austin preto do pai, um dos três únicos carros do Capelo. Eram cinco crianças, quatro adultos e um cão, que não parava de uivar. “Chegámos à Ribeira do Cabo e, logo depois de passarmos, abriu-se uma vala no caminho. Ficámos o resto da noite perto da igreja de Castelo Branco, dentro do carro, calhou-me ficar com um irmão ao colo, que só tinha menos dois anos do que eu”, ri-se, para depois recordar como um dia antes disso tinha feito a Profissão de Fé e ficado com o vestido branco todo encardido das cinzas do vulcão.

Quando amanheceu, a solidariedade começou a funcionar e as pessoas de Castelo Branco, junto ao local onde 13 anos mais tarde seria inaugurado o aeroporto do Faial, vieram trazer-lhes cobertores, para se instalarem no pavilhão onde ainda chegaram a passar uma noite, no chão. “Depois a minha professora, a Dona Eduína, foi-nos buscar. Ficámos três meses com ela, até restaurarmos a casa. Quando voltámos os brinquedos estavam todos destruídos. Foi nessa altura que começámos a fazer serenatas ao vulcão, eu tocava bandolim, o meu pai violino, éramos uma família muito musical. A fase da lava foi uma das coisas mais bonitas que vi na minha vida. Íamos a cantar e a tocar a pé, depois havia um sítio onde parávamos porque tínhamos medo da lava.”

“A crise sísmica acabou por gerar fraturas no seio da Caldeira, que tinha muito mais água do que tem hoje. Essa água foi drenada e evaporou em contacto com o magma e com as rochas aquecidas e também se viram lamas a ferver, mas não passou disso, de uma erupção freática. Se este entrasse em erupção toda a ilha teria de ser evacuada. Existiam de facto planos e barcos próximos da ilha para o caso de isso acontecer”
Sara Alves, Centro de Interpretação do Vulcão dos Capelinhos

O momento em que o vulcão dos Capelinhos começou a expelir lava em grandes quantidades coincidiu com a noite de 12 para 13 de maio de 1958, em que toda a ilha tremeu, e também com uma súbita atividade no vulcão da Caldeira, mesmo no centro da ilha. Durante a noite, conta Sara Alves, do Centro de Interpretação do Vulcão dos Capelinhos, chegou mesmo a temer-se que também ele pudesse entrar em erupção. “A crise sísmica acabou por gerar fraturas no seio da Caldeira, que tinha muito mais água do que tem hoje. Essa água foi drenada e evaporou em contacto com o magma e com as rochas aquecidas e também se viram lamas a ferver, mas não passou disso, de uma erupção freática”, explica. “Se este entrasse em erupção toda a ilha teria de ser evacuada. Existiam de facto planos e barcos próximos da ilha para o caso de isso acontecer.”

José Decq Mota, na Horta, foi enviado com os irmãos e a tia Maria Leonor, que era solteira, para a casa de uns amigos, no Pico. Durante 10 dias, enquanto não houve aulas, ficaram lá. Maria Eduarda Rosa e os irmãos tiveram de trocar de escola, durante uns meses, foram alunos em Castelo Branco.

Os tremores de terra foram tão fortes que, na Horta, foram dezenas as pessoas que abandonaram as respetivas casas e se instalaram nas tendas entretanto montadas no Largo do Infante. Maria Luna Ribeiro e o marido, estavam entre eles: “Com medo dos abalos também fomos para lá dormir, dividimos tenda com quatro casais amigos. Era um disparate, mas até era divertido”, recorda a faialense, que se orgulha de ter sido a primeira mulher a usar biquíni na ilha, para depois revelar que, num desses dias, só não provocou o maior escândalo que a Horta alguma vez viu porque o leiteiro chegou na hora H. “Acordei e fui a casa, para tomar o meu banho. Pus-me nua e veio um abalo forte, não pensei duas vezes, larguei a correr. Já estava a descer as escadas quando entrou o homem que ia lá a casa levar o leite: ‘Ai, dona Maria Luna, está nua!’. Lá me sossegou, ficou à minha espera, vesti-me e depois saí.”

A fuga para a América: “Fomos com duas malinhas, 8 meses depois o meu pai comprou um carro em cash”

Da América, de onde Maria Luna Ribeiro mandou vir os seus primeiros biquínis e cigarrilhas de cores variadas, para combinar com os vestidos, começou entretanto a chegar ajuda. Primeiro, em forma de roupa e bens alimentares para os “sinistrados”, mais tarde, através de autorizações de viagem. Com o vulcão dos Capelinhos, apesar de ter ganho uma nova península e 2,4 quilómetros quadrados de superfície (que entretanto a erosão já reduziu para 500 metros quadrados), o Faial perdeu quase metade da população. Só nos quatro anos após a erupção e apenas rumo aos Estados Unidos foram quase cinco mil as pessoas que abandonaram a ilha.

“Já existiam fortes comunidades açorianas a residir nos Estados Unidos nesta altura, principalmente nos estados de Massachusetts, Rhode Island e Califórnia”, contextualiza Sara Alves. “Começou um movimento, por parte das próprias comunidades, a enviar cartas e fotografias para políticos e senadores a relatar o que se estava a passar na ilha do Faial. John O. Pastore, senador de Rhode Island tentou aprovar uma lei especial, a chamada Azorean Refugee Act, para que fossem emitidos vistos para as vítimas do vulcão. Esta lei foi depois apoiada pelo senador de Massachusetts, John F. Kennedy, e a 2 de setembro de 1958 foi aprovada.”

“Isto era um país morto, não se ganhava quase nada, a maneira melhor era sair daqui e ir para a América. Já não havia nada antes, isto era uma ilha que tinha gente a mais. Depois do vulcão até ficou um bocadinho melhor”
António Duarte Faria, 78 anos

Ao todo foram disponibilizados 1.500 vistos para chefes de família, a que mais tarde, por pressão de António de Freitas Pimentel, o então Governador Civil do Distrito Autónomo da Horta, se juntaram outros 500. Esgotados os documentos, o êxodo não parou ao longo dos anos que se seguiram, acrescenta a guia, sempre tendo como destino preferencial “a América”. Hoje, diz, o Faial tem cerca de 15 mil habitantes. Antes do vulcão tinha 26 mil.

Maria Belmira e António Duarte Faria fazem parte das duas estatísticas: saíram depois do vulcão — ela, aos 12 anos, com os pais, ele sozinho, com 18 —, mas entretanto regressaram, faz no próximo mês de dezembro duas décadas. “Isto era um país morto, não se ganhava quase nada, a maneira melhor era sair daqui e ir para a América”, justifica António Duarte Faria, hoje com 78 anos, garantindo que a situação não foi sequer agravada pelo vulcão, bem pelo contrário. “Já não havia nada antes, isto era uma ilha que tinha gente a mais. Depois do vulcão até ficou um bocadinho melhor.”

António Duarte Faria e a mulher, Maria Belmira, cresceram a poucos quilómetros de distância, no Faial, mas só se conheceram nos Estados Unidos, para onde emigraram. Voltaram aos Açores em 2001

Nos Estados Unidos, em Bristol, no estado de Rhode Island, onde chegou em 1962, começou por trabalhar a lavar pratos, num restaurante, e rapidamente arranjou emprego numa fábrica que produzia barcos de fibra. Quando saiu de lá, 15 anos mais tarde, montou o seu próprio negócio, na mesma área. Maria Belmira, a mulher, que só conheceu naquela vila americana, apesar de no Faial viverem a escassos quilómetros de distância, ela na Praia do Norte, ele na Ribeira do Cabo, relata uma experiência idêntica, mas vivida pelos pais. “Fomos com duas malinhas na mão, daí a oito meses o meu pai comprou um carro e pagou em cash. Na América havia oportunidade, aqui não tínhamos nada, o meu pai foi trabalhar nos bancos, a minha mãe começou a limpar casas.”

Em Rhode Island, de onde resolveram sair em 2001, deixaram três filhos (Tony, hoje com 52 anos, Lynn, 51, e Michelle, 49) e vários netos — são todos americanos, não faialenses, mal falam português. “Percebi que o negócio da fibra estava a escassear, vendi e fui trabalhar para uma fábrica de peças para máquinas. Depois, um dia, a fábrica foi vendida, chegámos lá de manhã e não tínhamos trabalho. Cheguei a casa e perguntei-lhe: ‘Queres ir para o Faial? É agora!’. Fui buscar um contentor, pus lá o meu barco e a minha carrinha e viemos”, conta António Duarte Faria, sentado na sua moradia com jardim no Varadouro, com vista privilegiada para o mar, uma das estâncias balneares mais concorridas do Faial.

Tomás Matos tinha 20 anos quando o vulcão dos Capelinhos surgiu. A mulher, Maria Humberta, foi a primeira filha de "sinistrados" do Faial a nascer nos Estados Unidos

Quem também regressou entretanto foi Maria Humberta Matos, que apesar de só ter 61 anos, menos três do que o vulcão, também faz parte desta história: foi a primeira bebé, filha de “sinistrados” dos Capelinhos, a nascer nos Estados Unidos, revela ao Observador, ao balcão do café “Vulcão”, que há 31 anos abriu com o marido, Tomás.

“Nasci em fevereiro de 1960 em Providence, Rhode Island. O meu pai era lavrador, foi para lá trabalhar numa fábrica de pintar barcos, mas aborreceu-se. Estiveram lá um ano e meio e voltaram. Tinha nove meses quando vim”, começa por contar, para depois revelar que o facto de ter nacionalidade americana a prejudicou mais do que ajudou. “Dei aulas de português e francês durante três anos na Horta, sempre a contrato, nunca consegui ficar efetiva. Como sou estrangeira, só podia lecionar quando não houvesse portugueses para ocupar o cargo.”

64 anos depois, o regresso à Casa da Missão

De uma forma ou de outra, as vidas das pessoas que assistiram à erupção dos Capelinhos entre 1957 e 1958 ficaram para sempre marcadas pelo vulcão.

Depois de ter passado a vida toda impressionada com os Capelinhos, ainda que à distância, no continente e na Alemanha, onde deu aulas de português, Maria Eduarda Rosa voltou ao Faial em 1999 e finalmente conseguiu escrever a sua história do vulcão — “Demorei 31 anos.” Na Faialentejo, a pequena editora que fundou com o companheiro, José Francisco Pereira, dedicou-se depois a recuperar os relatos de outras pessoas e em 2007, nos 50 anos do vulcão, publicou 14 livros em forma de testemunho — “Coleção Piroclástica”, como os pedaços de rocha quente que as erupções fazem disparar pelo ar, foi como lhe chamou.

Já José Decq Mota, que dez anos depois da erupção estragou a máquina fotográfica de fole do pai, num dia em que resolveu levá-la à caça à baleia, acredita que o vulcão foi determinante para o rumo que, anos mais tarde, decidiu dar à vida. Logo em 1964, com 15 anos, começou, com o irmão Luís Carlos e um amigo, a completar tripulações de baleação. “Não havia tripulação suficiente, foi um dos setores mais afetados com a emigração. Para sair eram precisos três botes, cada um com 7 pessoas, mais duas lanchas com três pessoas cada, para ajudar a delimitar a área de navegação da baleia e a rebocar, depois. Nós íamos para ajudar, não ganhávamos dinheiro nenhum”, conta.

Maria Eduarda escreveu um livro sobre o vulcão. E publicou outros 14

Cinco anos mais tarde, já tinha ido estudar Matemática para Coimbra, veio ao Faial de visita e encontrou os baleeiros, no botequim do costume, revoltados com a “soldada” do ano, que tinham acabado de receber e era apenas metade do que aquilo com que estavam a contar. “O patrão tinha-lhes dito que a cisterna do óleo de baleia do Porto Pim tinha aberto uma fenda com um sismo qualquer que tinha acontecido e que por isso tinha de lhes pagar menos. Ajudei-os, disse-lhes que não se podiam ficar e que tinham de ir falar com o capitão do porto. Não receberam tudo o que esperavam mas conseguiram 85% ou 90%”, recorda José Decq Mota, que entretanto resolveu enveredar pela atividade política, foi coordenador do PCP Açores entre 1978 e 2005, deputado regional por São Miguel e pelo Faial, e vereador da Câmara Municipal da Horta durante 27 anos.

Quando se perderam de amores pela casa com cisterna e atafona onde hoje moram, no Canto do Capelo, com janelas para o vulcão, Gonçalo Tocha e a mulher, Sophie, não faziam ideia de que tinha sido ali que a missão científica de Raquel Soeiro de Brito e Orlando Ribeiro tinha ficado instalada, 60 anos antes. Continuaram sem saber ao longo dos 11 meses em que fizeram todas as diligências possíveis para descobrir quem era o proprietário da casa, para poderem fazer uma oferta por ela. E assim se mantiveram já as longas obras de recuperação iam a meio, até que um vizinho lhes disse que a casa onde iam morar, outrora propriedade do lavrador Tomás Vargas, “tinha história”.

Depois de terem investigado e confirmado que tinha sido mesmo assim, o realizador de “É na Terra não é na Lua”, documentário que em 2011 recebeu o Grande Prémio do Doclisboa, e a mulher, produtora, entraram em contacto com Raquel Soeiro de Brito, que convidaram para regressarem novamente ao Faial, pela primeira vez desde 1958 à casa que entretanto rebatizaram como “Casa da Missão”.

Gonçalo Tocha e Sophie Barbara receberam a geógrafa Raquel Soeiro de Brito, 64 anos depois, na Casa da Missão

Gonçalo Tocha

Várias conversas e uma pandemia depois, a professora aterrou no Faial a 27 de setembro de 2021, 64 anos certos após o nascimento do vulcão, estava a ilha prestes a ser atingida pelas partículas expelidas pelo Cumbre Vieja, em La Palma, a 1.481 quilómetros de distância.

Durante uma semana, pôde voltar a olhar pela janela onde costumava sentar-se em 1957 e 1958, de caderno apoiado no parapeito e esferográfica em punho. O quarto onde ficou instalada na altura é hoje o dos filhos de Gonçalo e Sophie, de 10 e 5 anos. As imagens em bruto desta sua passagem pela ilha, registadas pelo cineasta, que se mudou em 2017 para o Faial e está na fase de rodagem de um documentário sobre as três ilhas do triângulo dos Açores, foram exibidas no passado dia 2 de outubro. Ao evento público, organizado por Gonçalo e Sophie sob o selo da produtora “AvistaVulcão: A Casa da Missão” em cima da cisterna daquela que é agora a sua própria casa, acorreram mais de 120 pessoas, muitas delas contemporâneas da erupção. Manuel da Ti’ana estava lá, José Freitas, o “Zé da Lomba”, José Decq Mota, António Duarte e Maria Belmira Faria também.

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