Seis jovens, cujo nome ficou por saber – foi esse o acordo –, esperam pelas 9h da manhã, no paredão da praia de Carcavelos, em frente às instalações da Wave by Wave, para entrarem no balneário e trocarem a roupa que trazem pelo fato de surf que lhes servirá de pele nas próximas três horas.
“De fato somos todos iguais” é um dos slogans do projeto que usa o surf e o contacto com o mar como terapia para trabalhar com crianças e jovens em risco por questões relacionadas com comportamentos violentos, trauma, autoestima, confiança, empatia, resiliência e regulação emocional. É um slogan feliz. Sobretudo para eles, que nasceram e cresceram em lugares onde a desigualdade está ancorada, limita horizontes e dita percursos.
É segunda-feira e o primeiro dia do Campo de Verão da Wave by Wave para estes seis jovens internados num centro educativo em regime semiaberto, porque a idade e a menor gravidade do crime que cometeram os livrou de serem encarcerados numa prisão ou de ficarem em regime fechado.
Em comum têm a ausência, ou quase, de vínculos estáveis, de referências, sobretudo da figura paterna, o insucesso ou abandono escolar, a incursão na delinquência e no pequeno crime, tráfico, roubo e agressão, a violência como solução para os problemas. Antes de darem entrada no centro educativo, alguns viviam no sistema de acolhimento, outros com a família.
Às 9h15, fato vestido, chapéus a proteger do sol, que começa a aquecer, descem para a praia, acompanhados pelo psicólogo clínico Francisco Almeida, pelos instrutores de surf Rodrigo Verdes, Alan Souza e Tomás Valente e pela educadora social Diana Nequinha, gestora do projeto.
A roda da partilha
Na areia formam uma roda onde, durante cerca de uma hora, fazem uma sessão de grupo terapêutico. Com uma corda que cada um vai agarrando à medida que fala, dizem que animal se sentem hoje e qual é o seu superpoder, e a partir deste “jogo” vão desatando nós e partilhando histórias, emoções, razões.
“A roda é um momento fundamental da intervenção da Wave by Wave”, diz Rodrigo Verdes, coordenador dos instrutores de surf e psicólogo do desporto. “É o nosso primeiro momento na praia, em que nos aproximamos e iniciamos a partilha. A corda tem um valor simbólico, de ligação e de união das teias que se vão tecendo ali.”
Depois vem o aquecimento, a entrada no mar e a prática de surf. A manhã termina com outra roda, que encerra com um grito em uníssono. “É o nosso grito ‘Wave by Wave’, que fecha a manhã passada no mar e que volta a trazer mais sensações e mais união. Estes miúdos carregam uma bagagem muito pesada de violência e trauma e a nossa intervenção no mar e fora dele, através da surf therapy, procura aliviar esse peso, trabalhando coisas como o medo, a confiança, os sonhos, as relações, o futuro”, diz Rodrigo Verdes.
Os Campos de Verão da Wave by Wave realizam-se nos meses de junho e julho na praia de Carcavelos. Durante uma semana, todas as manhãs, em sessões de três horas, seis jovens institucionalizados num centro educativo (ou 12, de contextos diversos, no caso do trabalho com jovens em casa de acolhimento) experimentam uma intervenção em grupo que tem o mar e o surf como mediadores terapêuticos. A resposta chega a cerca de cinquenta pessoas por ano e pretende ser um ponto de partida para uma intervenção mais aprofundada, de entre as que a organização luta por oferecer.
Este campo de verão, que envolve rapazes do Centro Educativo Padre António Oliveira (para jovens entre os 12 e os 21 anos, que cometeram um crime ou delito punível com pena de prisão e onde as medidas de internamento em regime aberto, semiaberto ou fechado podem ir de seis meses a dois anos), tem o apoio da Câmara Municipal de Oeiras e é a primeira fase de um programa que irá procurar acompanhá-los ao longo do ano em sessões regulares de Mentoria Terapêutica.
A Mentoria Terapêutica prevê um apoio mais individualizado, com as primeiras sessões a acontecerem no centro educativo, em grupo, e as restantes na praia, e que, idealmente, os acompanha até saírem do centro e nos três meses seguintes, período determinante para o sucesso da intervenção, que passa também pelo apoio à integração social e a criação de um projeto de vida e de futuro, porque o risco de reincidência é grande.
“O momento de maior risco é quando se aproxima a altura da saída e os outros três meses, porque voltam ao meio natural de vida”, diz Ema Shaw Evangelista, psicóloga clínica e co-fundadora do projeto Wave by Wave. “Mesmo com as medidas de supervisão intensiva que existem, é muito fácil perdê-los. Temos vários jovens com quem trabalhámos em campos de verão e em quem identificávamos um grande potencial de reabilitação que neste momento estão presos. Daí este projeto que estamos a começar de Mentoria Terapêutica, que assenta no vínculo ao mentor, que é a figura de referência, e vai acompanhar o jovem em articulação com o centro educativo, para o apoiar na criação de um projeto de vida e de futuro.”
As primeiras ondas
Os campos de verão são apenas uma parte do trabalho desenvolvido desde 2017 pela iniciativa Wave by Wave, integrada na Associação Portuguesa de Surf for Good, fundada por Ema Shaw Evangelista e pelo então vice-campeão nacional de surf José Ribeiro Ferreira.
Depois de, em 2016, terem organizado um campo de verão – o Surf Salva Camp – para crianças e jovens institucionalizados em casas de acolhimento na zona da Grande Lisboa, decidiram elevar a fasquia e fazer disso um projeto de intervenção terapêutica para crianças e jovens em risco.
A experiência piloto de três meses, que envolveu 48 participantes divididos em três grupos, teve como objetivo fazer uma intervenção terapêutica baseada no surf, no sentido de promover o bem-estar e a saúde mental em populações de risco. A iniciativa foi alvo de um estudo de avaliação levado a cabo pela equipa Aventura Social, da Faculdade de Motricidade Humana, liderada pela investigadora Margarida Gaspar de Matos, de que resultou a primeira publicação científica em Portugal na área da terapia pelo surf.
Ema Shaw Evangelista é hoje presidente da Associação Portuguesa de Surf for Good e alma do projeto pelo qual luta todos os dias, à procura de parceiros, financiamentos, apoios, bolsas, mecenas e protocolos que lhe garantam sustentabilidade e lhe permitam continuar o trabalho de reparar o trauma, promover a saúde mental e melhorar a vida de crianças e jovens em risco.
“O artigo da [investigadora] Margarida Gaspar de Matos, que confirmava os benefícios de utilizar o surf como instrumento de intervenção psicoterapêutica em jovens inseridos em contextos de vulnerabilidade psicossocial, teve um impacto enorme porque havia muito pouca investigação, quer em Portugal quer no mundo, sobre a eficácia da surf therapy”, conta Ema. A Wave by Wave foi, em setembro de 2017, uma das seis organizações fundadoras da International Surf Therapy Organization, que já conta com cem membros em todo o mundo, e é fundamental na divulgação de boas práticas, validação terapêutica, formação, medição do impacto e reconhecimento internacional deste tipo de intervenção.
“Começámos a contactar com organizações de diversos países e a perceber que havia projetos extraordinários e muito consistentes que usavam o surf como terapia em populações de risco, desde mulheres vítimas de violência à reabilitação de populações altamente traumatizadas ou à prevenção do suicídio com veteranos de guerra”, diz a psicóloga, que dá como exemplo a Marinha dos Estados Unidos.
“A US Navy investe milhões de dólares em programas de surf therapy, porque teve um resultado absolutamente incrível na prevenção do suicídio entre os veteranos de guerra. Existe um outro projeto, um dos mais antigos em terapia do surf, que é uma referência para nós, o Surfers Not Street Children, que tira crianças da rua em Moçambique e na África do Sul.”
É essa inspiração e a vontade de reparar vidas marcadas pelo trauma, pela violência, pelos maus-tratos, pela disfuncionalidade familiar e por tudo aquilo que leva a retirar uma criança ou jovem à família e a colocá-lo no sistema de acolhimento que faz a equipa da Wave by Wave trabalhar de forma contínua há seis anos com instituições que acolhem estas crianças e jovens.
Os números justificam-no. Segundo dados de 2020, existem 69.992 crianças e jovens sinalizados em Portugal por risco ou perigo, há 6.706 institucionalizados, a esmagadora maioria em instituições de acolhimento, e 134 internados em centros educativos. “Isto significa que cerca de 76 mil crianças e jovens no país estão sujeitos a situações adversas e traumáticas, com pouco acesso a soluções integradas que deem o devido suporte emocional”, diz a psicóloga. “Somos o país da Europa com maior número de crianças e jovens acolhidas em instituições – 97 por cento. Apenas três por cento estão em famílias de acolhimento. Mudar este paradigma é uma das nossas causas.”
A Wave by Wave contribui para a mudança. A resposta terapêutica central deste projeto, que nestes cinco anos já chegou a cerca de seiscentas pessoas, é a Intervenção Anual, que consiste na integração de crianças e jovens de casas de acolhimento e de crianças de contextos ditos normativos num grupo terapêutico que decorre de outubro a junho e “migra para a praia os princípios fundamentais desta intervenção em grupo, baseados na consistência, continuidade e previsibilidade das sessões, que acontecem sempre no mesmo dia da semana, à mesma hora, no mesmo local, com o mesmo grupo de jovens e adultos, ao longo de um ciclo letivo”, explica a psicóloga clínica.
O poder terapêutico do surf
Despir a roupa de todos os dias e vestir o fato de surf é, na prática, o primeiro momento terapêutico. É uma nova pele e é protetora. Depois, a caminhada até ao mar, pés na areia, sem solas a separar do campo gravitacional da Terra. E, finalmente, a entrada no mar, que faz um reset e tem efeitos anti-depressivos, anti-ansiogénicos e até anti-inflamatórios naturais.
“Garantidas as condições de segurança, o mar tem este papel de mediador terapêutico, assim como o surf, que obriga a ativar o foco e a concentração, mas também a lidar com o medo e a frustração e, por outro lado, a perceber que se é capaz e a saborear as conquistas”, explica Ema Shaw Evangelista. “Nestas crianças e jovens é muito regulador, porque ao invés de terem um adulto a dizer-lhes o que têm de fazer, o adulto diz-lhes e, se não fizerem, é o mar que vai mostrar-lhes”.
O mar e o surf funcionam então como aliados que impõem limites naturais que ajudam a gerir a frustração e promovem uma relação de dependência saudável com o terapeuta. “É muito benéfico, porque cria uma relação terapêutica natural, que nestas crianças e jovens é uma oportunidade gigante. Se querem aprender a fazer surf, têm de se ligar àquele adulto. E, a partir daí, cria-se uma relação de confiança e eles começam a partilhar e inicia-se o processo terapêutico.”
Além de trabalhar com crianças e jovens, a Wave by Wave também tem como preocupação a saúde mental das equipas, a sua e a das entidades parceiras, casas de acolhimento, centros educativos, escolas e comissões de proteção de crianças e jovens.
“A área em que trabalhamos é a do trauma e é preciso ter consciência da necessidade de proteger as equipas porque o nível de desgaste a que os técnicos estão sujeitos é elevado”, diz Ema Shaw Evangelista. “Quando os jovens começam a partilhar, não é fácil, mesmo quando se tem muita experiência. De negligência a maus-tratos, a abuso físico e sexual, trabalhamos numa área com histórias muito pesadas, em que as partilhas por vezes surgem quando menos esperamos.”
“É fundamental termos a nossa capacidade de escuta preservada e desenvolvermos mecanismos próprios, com ajuda de muita formação, supervisão e idealmente psicoterapia pessoal para mantermos a nossa função terapêutica protegida e ativa” diz a psicóloga clínica, que, além de ter um modelo de prevenção do stress e do burnout que garante que a equipa é ouvida, acompanhada, supervisionada e tem espaços regulares de gestão emocional, também promove na Wave by Wave aquilo a que chama Apoio ao Apoio, com ciclos de sessões de terapia do surf para adultos que trabalham na área social.
Há mar e MAR
A intervenção da Wave by Wave baseia-se no MAR – Modelo Ação-Reflexão –, sendo todas as atividades desenvolvidas por uma equipa que inclui psicólogos clínicos, instrutores de surf, técnicos de ação social e educadores sociais. Antes e depois das sessões com as crianças e jovens, a equipa técnica que acompanha o grupo reúne-se para preparar a sessão e para a avaliar. Há ainda uma reunião semanal para discussão de casos, com supervisão clínica.
Ema Shaw Evangelista gostaria de certificar o Modelo de Ação Reflexão como metodologia de intervenção em terapia do surf e terapia pelo mar e vê-lo replicar-se. Para isso, a Wave by Wave levou a cabo, entre 2018 e 2021 um estudo de eficácia do programa, através de um ensaio clínico cujos resultados foram positivos, “nomeadamente ao nível da promoção dos comportamentos pró-sociais nos grupos de intervenção”.
“Imagine um kit Wave by Wave, que permitisse a formação de técnicos no nosso modelo de intervenção e orientasse em termos de logística, etc. Conseguiríamos replicar o modelo e levá-lo a zonas do país que precisam e têm condições para o implementar, como o Algarve ou os Açores.”
Ideias, projetos, vontade e empenho não faltam à presidente da Wave by Wave e à sua equipa. Uma onda de cada vez, vão sarando e mudando vidas de crianças e jovens, cujo horizonte está muito aquém do que o mar pode dar.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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