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Westway Lab: dois dias entre a inquietação musical de Guimarães 

Acompanhar conferências, ver concertos, fazer brindes e colecionar descobertas. Este é um arrojo festivaleiro que junta músicos, fãs e curiosos num raro encontro que se renova ano após ano.

Foi a décima edição do Westway Lab. O festival que nasceu para divulgar novos projetos é hoje um evento que junta velhos amigos, novas bandas, artistas e projetos que resultaram de colaborações e residências artísticas. “Esse é a essência deste evento”, diz-nos o diretor artístico, Rui Torrinha, enquanto caminhamos para o Cor de Tangerina, um restaurante dedicado à nova gastronomia, mas que nesta tarde de sexta-feira serve de encontro para os artistas que durante uma semana frequentaram uma residência artística culminando com a apresentação de um showcase fundindo as várias influências de cada um, do hip hop, ao rock e à folk. A cocriação é uma das características mais marcantes do Westway Lab — que junta músicos de diferentes geografias e proveniências musicais — assim como as conferências dedicadas às diferentes áreas da música e de um negócio que movimenta milhões em todo o mundo. Durante dois dias, acompanhámos a programação e a cidade. Um diário de bordo no qual importa apostar ano após ano.

Sexta, 17h30: uma mulher na indústria da música

Almudena Herdero foi recentemente nomeada diretora do Primavera Sound de Madrid, que este ano tem como cabeças de cartaz nomes como Blur, Pet Shop Boys, Depeche Mode e Calvin Harris. No lab lounge do Centro Cultural Vila Flor (CCVF), conversa em tom informal com o editor da IQ Magazine, Gordon Masson, sobre as dificuldades de erguer a segunda versão do festival na capital espanhola. “Tínhamos uma grande questão com a vizinhança, era preciso encontrar um espaço que estivesse abandonado”, conta Almudena. O local escolhido foi Arganda del Rey, situado a 27 quilómetros da cidade. “Implica uma enorme logística e desafios de mobilidade, já que não existe metro”. São 10 palcos para três dias de música. Os bilhetes já estão esgotados, diz Almudena, que é também vice-presidente da Associação de Mulheres na Indústria da Música. Num negócio dominado maioritariamente por homens, Herdero aposta tudo na diversidade, no palco e fora dele. “Trabalhamos com diferentes associações LGBT e, na administração, somos amigas que trabalhamos na música há muitos anos.” Tal como acontece no Westway Lab, já organizou concertos em todo o tipo de espaços: mercearias, pequenos bares ou restaurantes. “Conseguimos pôr o Beck a tocar num club.”

Sexta-feira, 18h15: um caleidoscópio de influências

Caminhamos apressados do CCVF até ao Cor de Tangerina, no centro histórico da cidade, para escutarmos os músicos que estiveram nas residências durante toda a semana. Há portugueses, mas também artistas internacionais. “A indústria é tão exigente que nos sufoca”, diz a espanhola Nerea Loron, voz dos La Furia, que no dia seguinte tocará no Café Concerto do CCVF. Feminista assumida, com quatro discos editados, a sua música tem como base intelectual o hip hop, embora com diferentes influências. “Esta semana pudemos experimentar o lado mais humano da música, como se estivéssemos dentro de uma cápsula. Mas também passámos a semana a dizer que teríamos de voltar ao mundo real.” Um músico intervém: “A mim interessa-me cantar na minha língua materna. O Inglês até pode abrir uma porta mágica. Sem querer parecer anti-imperialista, quero cantar em basco”. Uma coisa parece certa: todos os músicos que estiveram na residência sentem que dali sairá um disco. “Sentimos uma ligação imediata. Sem pressão artística, as coisas fluíram naturalmente.”

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Sexta-feira, 20h15: alface para Fachada

Falta pouco mais de uma hora para Bernardo Fachada subir ao palco do auditório principal do CCVF. Os bilhetes para o músico lisboeta, que se apresenta a solo, com uma viola braguesa e uma caixa de ritmos, estão há muito esgotados. No restaurante reservado para os artistas e convidados, Fachada está sozinho a um canto. Há lombo no forno, bacalhau com broa e saladas. Fachada aposta tudo na alface. Sento-me na mesa ao lado e ele cumprimenta-me. “Já nos conhecemos, certo?”. Respondo que sim: Por uma mera coincidência foi ali que falámos pela primeira vez, em 2010, onde os Diabo na Cruz, muito antes de encherem festas populares e algumas das salas mais respeitadas do país, deram o seu segundo concerto. De camisola amarela, com uma boina xadrez pendurada na cadeira, Bernardo vai timidamente cumprimentando quem se aproxima, enquanto bebe um gin e uma garrafa de água. Não há pressas e o músico deixa o restaurante minutos antes da hora marcada para o seu espetáculo.

Sexta-feira, 21h12: imitação de grafonola

A maior mesa da sala é ocupada pela comitiva dos Linda Martini, os cabeças de cartaz desta sexta-feira. Na parte exterior do restaurante, num espaço ajardinado, reparo que o guitarrista, Rui Carvalho, também conhecido no meio musical pelo seu projeto Filho da Mãe, conversa com um dos técnicos da banda lisboeta. Discutem sobre uma grafonola instalada junto à porta, que lhes parece meramente decorativa. “Achas que é verdadeira?” “Duvido muito”, diz Carvalho, enquanto fuma um cigarro e acaba a cerveja. Lá dentro a equipa conversa animada, enquanto Hélio Morais não larga o telemóvel. De regresso ao interior, tiro as dúvidas com o dono do espaço, cuja família gere vários restaurantes de Guimarães. “Quem me dera que fosse verdadeira”, diz, apontando para a grafonola. “Aquilo é um simples bibelô. Mas em casa tenho um piano verdadeiro. Já me ofereceram uma pequena fortuna por ele.”

Sexta-feira, 21h35: B Fachada e os Lambe-cús

Pelo corredor que nos conduz ao auditório principal, já se escutam os primeiros acordes de B Fachada. O palco parece grande para um homem só, mas a sala está cheia e o público vibra com as canções e piadas que Bernardo vai soltando entre músicas: “Isto está tudo controlado”, diz enquanto acerta o tempo na caixa de ritmos para a próxima canção. “Padeirinha”, talvez a segunda ou terceira música da noite, do disco “Rapazes e Raposas”, lançado em 2020, mexe com o público vimaranense. A letra é longa, mas todos conhecem alguma parte. “Venho ao Minho muitas vezes e adoro. Lá em baixo [no Sul] é sempre para meia-dúzia de pessoas. Aqui está sempre cheio. Mas tenho a certeza que também há disto”, diz antes de se atirar à canção “Lambe-cús”, para gargalhada geral. Segue-se “Memórias de Paco Forcado #2” com o povo a cantar a frase mais sonante: “Enche de vermelho a quem se armar ao pingarelho”. Da timidez do jantar ao palco, Fachada transfigura-se: dança, bate com os pés no palco, conversa com o público. No final, tira a guitarra do peito e mostra-a com pormenor. Provavelmente, só não saberia que aquela guitarra é original de Braga, a apenas 30 quilómetros. Mas, pelo menos aqui, não existem rivalidades. O “problema” é mesmo o futebol.

Sexta-feira, 22h18: numa Redoma

De regresso ao Café Concerto, a dupla Redoma já vai soltando os seus beats em palco. A nova dupla do Porto, assinada por Carolina Viana (cantora e rapper) e por Joana Rodrigues (produtora), conheceram-se na Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo (ESMAE). A sala está cheia e mal se consegue chegar ao bar. Num concerto curto mas intenso, revisitaram o EP “Parte”, definido como “um manifesto existencialista caracterizado pela sonoridade rap de ritmo desconstruído e poético”.

Sexta-feira, 23h04: one woman show, Ana Lua

Se tivéssemos de definir o Westway Lab numa palavra, provavelmente seria “diversidade”. É isso mesmo que nos ocorre quando escutamos Ana Lua Caiano, que junta sons tradicionais portugueses com música eletrónica. De vestido comprido a remeter para as roupas minhotas, ajeita as tranças enquanto usa um bombo tradicional e dois sintetizadores e canta repetidamente “ando aos círculos”. Hélio Morais, dono dos ritmos de Linda Martini, está sentado no chão, na parte lateral do palco, atento ao espetáculo, enquanto tira algumas fotografias. Mais tarde, no seu concerto, durante uma das intervenções ao microfone, dirá “props para a Ana Lua Caiano”.

Sábado, 00h35: Boca de Sal com a voz dos Linda Martini

A celebrar 20 anos de carreira, os Linda Martini encheram a black box do CCVF, durante uma hora de pura descarga de energia. Percebe-se que a banda tem um culto de diferentes gerações: junto às grades que separam o público do palco, adolescentes e jovens cantam as letras de cor. Mas a verdadeira explosão acontece ao terceiro tema, quando a banda interpreta “Boca de Sal”, com André Henriques a poupar a voz e a deixar o público cantar o refrão. A setlist é um verdadeiro desfile de êxitos, com destaque para Amor Combate. “Começamos esta banda sem qualquer expetativa”, diz Hélio Morais, o baterista que assume a comunicação com o público. “Agora, 20 anos depois, estamos aqui.” Pelo meio, ainda houve tempo para alguns percalços com o baixo de Cláudia Guerreiro, que por pouco não deixou cair o instrumento ao chão. Valeu a pronta intervenção do road manager. O fim do concerto dá direito a um encore com o vocalista a dizer as primeiras palavras: “Vamos tocar isto sem ter ensaiado?” Se assim foi, no público ninguém notou.

Sábado, 9h30: rock ao pequeno-almoço

Na sala do pequeno almoço do Hotel de Guimarães, onde ficaram instalados os artistas e convidados, há caras de sono e de ressaca. Restabecem-se as energias porque o dia vai ser longo: concertos durante a tarde no centro da cidade e à noite no CCVF. É o último dia do Westway Lab, mas ninguém vacila. Um pouco mais tarde, já no café concerto do Teatro São Mamede, os Ledher Blue, banda com origens em Guimarães, fazem esquecer o cansaço da noite anterior. São muito jovens e percebe-se que as famílias de alguns elementos estão lá para apoiar o seu rock poderoso a fazer lembrar os The Strokes. “Esta é uma característica particular do festival, a aposta em novas bandas”, diz-nos o diretor artístico, Rui Torrinha. “O CCVF assistiu aos primeiros concertos de bandas que vieram a afirmar-se no panorama musical português, como Diabo na Cruz ou Capitão Fausto. Queremos mostrar aos novos músicos que é possível.”

Sábado, 17h: fusões e rock do País Basco

Ao longo de uma década de festival, vários artistas convidados acabaram por solidificar colaborações, editar discos e dar concertos. É o caso dos X IT que se conheceram na edição de 2022 e junta o produtor português St. James Park (Tiago Sampaio), o pianista holandês Daniël Tomàs (Daniël van der Duim) e a vocalista holandesa/alemã Eliën (Élénie Wagner), numa abordagem dançável de eletropop. Foi também o caso de Yann Cleary que integrou uma residência artística no ano passado. Intérprete de uma folk sensível, subiu ao palco do Oub’lá para um dos concertos mais interessantes desta edição, a fazer lembrar os ambientes criados por Nick Drake. Do lado oposto a esta sonoridade, fomos encontrar os bascos Ezpalak na velha fábrica de curtumes, numa zona ao ar livre com direito a mosh nas filas da frente. “Isto devia ser assim todos os fins de semana”, diz um jovem local depois do espetáculo.

Sábado, 22h52: o tira-finos

Rui Freitas, um dos funcionários do Café Concerto do CCVF, senta-se na nossa mesa para beber uma cerveja. Uma das bandas da noite está a fazer o sound-check enquanto ele nos conta a sua história: era conhecido em Guimarães pelo “tira-finos”, emigrou para a Alemanha, depois para o Brasil. De regresso à terra natal, diz-nos que o bar está quase sempre cheio aos fins de semana. E isso muito se deve à sua simpatia e capacidade de trabalho. Resumindo: “Isto é como uma carroça puxada por um burro. O burro sou eu”, diz-nos com a simplicidade típica das gentes nortenhas. Certo é que durante os dois dias que o Observador passou no festival, ele lá estava sempre atrás do balcão. A fazer o quê? A tirar finos, compreensivelmente.

Sábado, 23h: a Purga de Rita Vian

D.R.

Doce, melancólica, com voz de fadista. Assim nos soa Rita Vian, que também explora a eletrónica numa fusão com o tradicional. A meio do concerto, perante uma black box cheia, conseguiu silenciar a sala e cantar uma música à capela, do seu disco “Purga”. B Fachada teria gostado deste concerto.

Domingo, 00h30: façam perguntas aos Criatura

O último concerto desta edição do Westway Lab esteve reservado aos Criatura. Com dois discos editados, este coletivo de dez músicos em palco provoca uma viagem agitada às raízes da música tradicional. Apesar do cansaço visível no público, o concerto foi a despedida ideal para quem ainda queria dar um pé de dança. Gil Dionísio, violinista e vocalista, mostrou ser um mestre de cerimónias e um ativista social: “Quantos de vocês ainda fazem perguntas? Façam perguntas, questionem-se”, berrou já perto do fim do concerto, literalmente tocado a rasgar.

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