O vídeo parece claro. Bill Gates, o empresário fundador da Microsoft que tem investido muitos dos seus milhões no combate à Covid-19, é confrontado numa entrevista e, perante várias perguntas incómodas, acaba por terminar abruptamente a interação. “Chega. Esta entrevista acabou”, diz a certa altura o milionário.
O embate acontece depois de uma linha de perguntas incisivas, que vão desde a acusação de que Gates não criou a Microsoft (por esta se ter baseado no sistema MS-DOS comprado pelo empresário em 1981) até à ideia de que não tem qualificações para promover vacinas de combate à Covid-19. A entrevistadora acaba mesmo por afirmar que o milionário demonstra um “padrão” de comportamento: “Roubar tecnologia de outros que não compreende, vender um produto cheio de defeitos, provocar danos em massa e lucrar com isso de uma forma espetacular”, é a conclusão apontada, que acaba por resultar no abandono da entrevista pelo empresário.
Uma pesquisa mais aprofundada, porém, revela uma realidade diferente.
Bill Gates foi de facto entrevistado em janeiro de 2023 por aquela mulher — trata-se de Sarah Ferguson, jornalista da cadeia de televisão australiana ABC e apresentadora do programa 7.30. O vídeo da entrevista completa está até inteiramente disponível no Youtube e um resumo por escrito foi disponibilizado no site da ABC. Mas ao consultar ambos é possível perceber que estas interações referidas nas publicações em causa não ocorreram.
Curiosamente, na entrevista original, as teorias da conspiração e a IA foram temas abordados. Bill Gates confirmou que fez queixas às empresas tecnológicas por informação falsa que tem sido divulgada a seu respeito — “Talvez me devesse queixar ainda mais”, diz a certa altura o milionário. Sobre a inteligência artificial, o empresário da área da tecnologia admite que esta poderá dar azo a “coisas como desinformação”, mas elenca sobretudo o potencial positivo da IA em áreas como o ensino e a saúde.
A entrevista verdadeira do 7.30 termina com a jornalista Sarah Ferguson a agradecer a Bill Gates por ter estado presente, com o empresário a limitar-se a sorrir. Não há nenhum protesto e Gates também não decreta que “a entrevista acabou”, o que contrasta com o argumento central do autor desta publicação, quando alega que Gates “encerra” a entrevista “por não ter respostas às questões” que lhe foram sendo colocadas.
Mas como explicar, então, a discrepância entre a versão original da entrevista e aquela que está a ser divulgada em publicações como aquela aqui em análise?
O especialista forense digital Hany Farid, da Universidade de Berkeley, é perentório: “Isto é obviamente falso”, afirmou à Associated Press, num fact check feito pela agência de notícias. “Para além de ter acesso ao original para fazer a comparação, a sincronização dos lábios no vídeo falso está muito mal feita. O áudio parece ter sido feito por Inteligência Artificial [IA].”
Outro especialista apresentou a mesma conclusão à agência Reuters: “O áudio falso foi colocado por cima de uma versão editada da entrevista”, afirmou Dominic Lees, professor de cinema da Universidade de Reading. “A versão editada no Twitter inclui um corte [ao minuto 1.38] que não é possível num estúdio de televisão com várias câmaras”, acrescentou.
Ou seja, na prática, embora as imagens utilizadas sejam verdadeiras, internautas terão usado ferramentas de IA para alterar o movimento dos lábios de entrevistadora e entrevistado e incluir um novo áudio, que foi dobrado por cima.
Conclusão
A publicação em causa é falsa. Embora Bill Gates tenha sido entrevistado por Sarah Ferguson, naquele estúdio, o vídeo original foi adulterado através de ferramentas de inteligência artificial. Nem a entrevistadora fez perguntas em que denuncia o empresário como uma fraude, nem Gates terminou a entrevista mais cedo por “não ter resposta para as questões”, como é dito numa das publicações. Todo o áudio foi dobrado por cima do original e o movimento dos lábios na imagem foi alterado, como confirmaram especialistas.
No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:
FALSO: as alegações dos conteúdos são uma mistura de factos precisos e imprecisos ou a principal alegação é enganadora ou está incompleta.
NOTA: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.