À primeira vista, além de inusitada, a proposta soava, no mínimo, impraticável — como poderia o Instituto Camões aferir sequer se uma palavra tinha ou não sido empregue ao longo dos últimos três anos para assim a poder banir do dicionário português?
Ainda assim, apesar de várias pessoas terem feito essa mesma questão, em resposta à publicação no Twitter que criticava a medida, poucas terão sido as que colocaram em causa a veracidade do texto — que rapidamente começou a ser partilhado naquela e noutras redes sociais, como o Facebook.
No post original, publicado a 8 de fevereiro, o autor dava conta de um anúncio alegadamente feito nesse próprio dia pelo Instituto Camões: “Agora uma palavra é considerada morta se, nos últimos 3 anos, ninguém, absolutamente ninguém, a tiver proferido. O Instituto passará a anunciar publicamente as palavras finadas no mês que passou”. De seguida, enumerava os termos alegadamente “mortos” em janeiro, “de morte natural”, dizia: “anóveas, brunir, encasinação, lanfranhudo, pelém, sanapismo, zureta”.
Apesar do inusitado da situação e de em parte alguma ser possível encontrar tal comunicado do Instituto Camões, as partilhas sucederam-se — com acrescentos, de origem também impossível de apurar. “O Instituto Camões informou os cidadãos (que lhe pagam os vencimentos) que adicionou a missão de considerar mortas as palavras que não tiverem sido usadas durante 3 anos a todas as outras relevantes responsabilidades que já tem. (Prescrevem…assim como os ‘crimes’ do Sócrates…)”, pode ler-se num post partilhado cerca de um mês depois no Facebook.
Dias antes, Maria do Rosário Pedreira, a mais conceituada editora portuguesa, responsável editorial do Grupo Leya, e também escritora e poetisa, que dias antes tinha vencido o Prémio Literário Casino da Póvoa, no festival Correntes d’Escritas, tinha também ela escrito um texto, no seu blogue, a criticar a medida.
“Não sei se alguém reparou, mas no meu post de ontem, sobre o livro de Clara Dupont-Monod, usei dois vocábulos que estão em desuso: «flausina» e «mastragança». São palavras cheias de sumo, forradinhas de sentido, mas infelizmente a cair no esquecimento”, começou por dizer Maria do Rosário Pedreira, num texto a que chamou “Palavras Mortas” e que publicou a 2 de março no blogue “Horas Extraordinárias”.
“Porém, apelo aos leitores deste blogue que se esforcem por incluí-las nos vossos escritos e discursos; e, tal como estas que referi, muitas outras que todos ouvimos decerto aos nossos pais e avós e correm o risco de desaparecer dos nossos dicionários”, continuou. “Eu sei, não é normal retirar do vocabulário uma palavra só porque não anda nas bocas dos contemporâneos. Porém, segundo li, no mês passado o Instituto Camões anunciou que vai considerar palavras mortas todas aquelas que não tenham sido utilizadas nos últimos três anos”, concretizou a editora e escritora, para depois desfiar uma série de palavras, pouco ou nada utilizadas, que não gostaria de ver banidas da língua portuguesa.
Só onze dias e um novo post sobre o assunto depois é que Maria do Rosário Pedreira escreveu finalmente o texto a considerar-se culpada de ter difundido “fake news”.
O título do texto era exatamente esse: “Fake news e ingenuidade”. “Vivemos num tempo em que o jornalismo já não é o que era e não temos outro remédio senão acreditar nas notícias que nos passam debaixo do nariz”, começou por escrever a editora, que, ato contínuo, explica não ter bebido a informação a partir de uma notícia mas sim de um post, publicado por alguém que nem conhecia. “Como não sou diferente, também fui vítima das fake news e, pelos vistos, completamente ingénua ao crer num tweet de uma pessoa que nem conheço, no qual se dizia que o Instituto Camões consideraria mortas todas as palavras não usadas num período de três anos. A pessoa que partilhou o dito tweet no Facebook é respeitável e, como tinha exercido um cargo importante numa Secretaria de Estado da Cultura aqui há uns anos, não duvidei de que estivesse a veicular informação confirmada.”
Além de a informação ser inverossímil; de ser percetível através de alguns comentários ao post original que tudo não passou de uma brincadeira; e deste “mea culpa” de Maria do Rosário Pedreira — “Afinal, o Instituto Camões está tão interessado como nós na defesa e preservação da língua portuguesa e não vai matar palavras nenhumas” —, também não há qualquer referência ao assunto no site ou nas redes sociais do Instituto Camões.
Ainda assim, o Observador contactou o organismo, na dependência do Ministério dos Negócios Estrangeiros, para perceber se os seus responsáveis tiveram conhecimento desta informação posta a circular no início de fevereiro e se tomaram alguma medida para desmentir a situação. “De facto, fomos confrontados com referências a uma publicação nas redes sociais cujo teor é destituído de fundamento”, confirmou fonte do Instituto Camões, passando de seguida a clarificar a “missão” do organismo – de que não faz parte “a gestão terminológica da língua”.
“Propor e executar a política de ensino e divulgação da língua e cultura portuguesas no estrangeiro; assegurar a gestão da rede de ensino português no estrangeiro, a nível básico, secundário e superior; apoiar a colocação de docentes locais através de parcerias com instituições de ensino superior e organizações internacionais”, são as atribuições do Instituto Camões, pode ler-se na resposta, enviada por e-mail.
Considerando que parece “evidente o caráter humorístico da publicação no Twitter”, a mesma fonte confirma que o Instituto Camões se “apercebeu de reações de caráter mais sério, algumas veiculadas por autores publicados, em blogues”.
Apesar de em momento algum ser mencionado o nome de Maria do Rosário Pedreira, o organismo explicou ainda que “foi feito um contacto de esclarecimento junto de uma das autoras que veiculou essa informação, tendo sido publicado posteriormente um novo texto corrigindo a sua incorreção”.
Conclusão
Não é verdade que o Instituto Camões tenha anunciado que ia considerar “mortas” as palavras não utilizadas há três anos ou mais. Tudo não passou de uma publicação “humorística” partilhada nas redes sociais que acabou por ser partilhada como verdadeira.
Ao Observador, fonte do Instituto Camões explicou que, de entre as competências do organismo, não consta “a gestão terminológica da língua” e muito menos “o policiamento do uso da língua, com a consequente ‘despromoção’ de qualquer vocábulo”.
Confrontado com publicações que levaram a sério uma publicação de “evidente caráter humorístico”, o organismo tratou mesmo de esclarecer uma das autoras que o fizeram — e que mais tarde se retratou, num texto publicado no seu blogue.
Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:
ERRADO
No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:
FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.
NOTA: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.