O Holocausto continua a ser um dos eventos mais discutidos nas redes sociais, mesmo que estejamos já em 2020. Nesse sentido, surgiu uma publicação no passado dia 3 de dezembro onde se alega que Hermann Göring — um dos líderes nazis fundamentais, membro do Partido Nacional Socialista Alemão, fundador da Gestapo e um dos homens próximos de Adolf Hitler — terá dito, no Tribunal de Nuremberga, o seguinte: “A única coisa que precisa de ser feita para se escravizar as pessoas é assustá-las. Pode fazê-lo num regime nazi, socialista, comunista, numa monarquia ou até numa democracia. Se consegues descobrir uma maneira de assustar as pessoas, podes levá-las a fazer o que quiseres.” Esta resposta teria surgido depois de Göring ter sido questionado sobre o facto de ter conseguido que o povo alemão aceitasse todas as atrocidades cometidas pelo regime nazi. Atingiu as 173 partilhas. Trata-se, no entanto, de uma atribuição falsa das palavras, já verificada por fact-checkers internacionais.
Esta publicação tornou-se viral um pouco pelo mundo inteiro, já que Robert Kennedy Jr., advogado anti-vacinação e neto do antigo presidente norte-americano, Robert Kennedy, decidiu falar nessa suposta citação histórica durante um discurso “anti-coronavírus” em Berlim, no passado mês de agosto. O discurso foi relatado pelo jornal francês Le Monde, que verificou o post inicial em que se atribuem aquelas palavras ao responsável nazi. Kennedy Jr. referiu a suposta citação de Göring estabelecendo um paralelo entre a aceitação das medidas restritivas contra a pandemia e as atrocidades cometidas pelos nazis, que foram também aceites pelo povo alemão. O problema é que a frase foi manipulada e não corresponde, de todo, à verdade.
Tal como dito pelo historiador François Kersaudy, autor de uma biografia sobre o líder nazi em questão, e que foi ouvido pelo Le Monde, existe um problema inicial: Hermann Göring não testemunhou nos famosos julgamentos de Nuremberga — foi, sim, um dos acusados. Além dessa incorreção histórica, nem o historiador nem o Le Monde encontraram uma citação semelhante à que é apresentada na publicação, depois de consultarem as transcrições dos julgamentos de Nuremberga, que estão disponibilizados na Yale Law School.
Contactada pelo Observador, a historiadora Irene Pimentel, afirma que “não lhe parece verosímil” a citação do post original, até pela informalidade com que a mesma é apresentada. “Não me lembro de ter visto esse trecho, até porque estão a tratar o Göring por tu”, assinala. A historiadora disponibilizou ainda mais links das transcrições, onde também não foi possível encontrar um resultado semelhante.
Ou seja, as afirmações do líder nazi nada têm a ver com submeter “o povo à escravatura através do medo”, tal como dito pelo autor da publicação original. O Observador consultou as transcrições e não encontrou nenhum resultado que comprovasse a veracidade do que foi divulgado. Já quanto a fotografia, ela é verdadeira, podendo ser encontrada em bancos de imagem, como no Getty Images.
Como o post foi difundido noutras línguas (polaco, português e francês), como forma de reagir contra a estratégia de combate à pandemia, outros órgãos internacionais de comunicação social verificaram esta publicação, tal como o Le Monde, considerando-a falsa. Até porque outras figuras conhecidas da política internacional, como Eduardo Bolsonaro, filho do atual presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, partilharam o post nas suas redes sociais. A Agence France Press (AFP), também não encontrou qualquer referência igual nas transcrições que analisou, quer em inglês quer em alemão. Esses documentos históricos estão também disponíveis para consulta na biblioteca alemã Zeno e no site da Faculdade de Direito da Universidade de Missouri, nos Estados Unidos da América.
No entanto, tanto a AFP como o Le Monde, depois de procurarem por frases semelhantes, encontraram uma passagem semelhante à descrita na publicação viral no livro de Gustave Gilbert “TheNurembergJournal”. Publicado em 1947, o livro reúne o material que o psicólogo recolheu no seu contacto com todos os presos da prisão de Nuremberga, depois de lhe ter sido concedido livre a esses antigos responsáveis do regime nazi. Gilbert conversou com Hermann Göring, que disse o seguinte, a 18 de abril de 1946: “Naturalmente, as pessoas comuns não querem guerra, nem na Rússia nem na Inglaterra ou na América ou até na Alemanha. Mas, apesar de tudo, são os líderes dos países que determinam as políticas e é sempre uma tarefa fácil arrastar as pessoas para essas políticas, seja em democracia, numa ditadura fascista, num parlamento ou numa ditadura comunista.”
Nesse diálogo, o psicólogo respondeu que havia uma diferença. É que, “numa democracia, as pessoas têm uma palavra a dizer através dos representantes que elegem e, no caso dos EUA, só o congresso é que pode declarar guerra”. Ao que Göring respondeu: “Com voz ou sem voz, o povo pode ser levado a submeter-se à vontade dos seus líderes. Isso é fácil. Tudo o que se tem de fazer é dizer-lhes que estão a ser atacados, denunciar os pacifistas por falta de patriotismo e por exporem o país ao perigo. Resulta da mesma forma em diferentes países”, afirmou.
Os julgamentos de Nuremberga começaram em 1945, num momento em que Hermann Göring era já o único nazi ainda vivo depois de ter assumido as mais altas funções no regime nazi. Hitler, Joseph Goebbels e Heinrich Himmler já tinham todos morrido. Só a 13 de março de 1956 o também antigo ministro do Interior da Prússia começou por ser ouvido. Foi sentenciado a morte por enforcamento. Acabou por se suicidar.
Conclusão
Não é verdade que Hermann Göring, antigo líder nazi e fundador da Gestapo, tenha defendido, durante os julgamentos de Nuremberga, que para escravizar as pessoas basta assustá-las. Essa informação foi desmentida por dois órgãos de comunicação social estrangeiros: o Le Monde e a AFP. Os jornais verificaram as transcrições dos julgamentos e não encontraram qualquer evidência do que foi descrito no post viral. Uma frase semelhante pode ser encontrada no livro do psicólogo Gustave Gilbert, que teve acesso aos presos em Nuremberga e conversou com Hermann Göring. Mas mesmo aí, o político alemão nunca defendeu que basta assustar o povo para o escravizar.
Segundo a classificação do Observador, este conteúdo é:
ERRADO
No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:
FALSO: As principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.
Nota: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.