As fotografias mostram um barco atulhado de pessoas, enquanto outras estão agarradas a cordas e uma multidão permanece num porto. São apresentadas como se aquelas pessoas fossem refugiados europeus a tentar chegar ao norte de África, durante a II Guerra Mundial. Já foram utilizadas quer a favor quer contra a imigração e, assim, a publicação já ultrapassou as cem mil partilhas. Mas, na verdade, aquelas pessoas são refugiados albaneses a chegar ao porto de Bari, em Itália, em agosto de 1991 — e não refugiados europeus a fugir para o Norte de África durante a II Guerra Mundial.

Publicadas por um utilizador do Facebook em outubro de 2015, as imagens já foram, desde então, partilhadas 105 mil vezes, maioritariamente por utilizadores portugueses. E não param: só na segunda-feira passada, 8 de julho, as partilhas foram mais de 70. Na legenda, o autor afirma que as pessoas no barco “são europeus fugindo para o norte de África, na Segunda Guerra Mundial”. Aqui, a legenda foi feita como forma de sensibilizar as pessoas para a questão dos refugiados — “São as voltas que o mundo nos dá. Só para refletir”, lê-se —, mostrando erradamente que a crise de refugiados já aconteceu de forma inversa à que acontece nos dias de hoje: com europeus a fugirem para outros países e não o contrário. A mesma imagem já foi partilhada, no entanto, com este mesmo objetivo, mas indicando que estas pessoas estariam a chegar à América do Sul e não ao norte de África.

Mas esta não é a única interpretação que os utilizadores vão fazendo. Por vezes, partilham-na como sendo uma imagem atual de refugiados a tentar chegar a países europeus. E usam-na para defender opiniões anti-imigração — sendo que, nalguns casos, referem-se às pessoas que aparecem no barco como sendo sírios. Outras vezes, como libaneses.

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Esta falta de coerência das partilhas sugere, desde logo, que há algo de errado. Na verdade, está tudo. O próprio autor da publicação no Facebook que gerou mais de 105 mil partilhas admite, num comentário à foto, que cometeu um “lapso” e que a imagem não foi captada durante a Segunda Guerra Mundial. Mas não explica em que circunstância foi tirada, nem alterou a legenda que a acompanha. Resultado: a imagem continua a ser partilhada por utilizadores convencidos de que as pessoas são refugiados europeus a tentarem chegar ao norte de África, durante a Segunda Guerra Mundial.

As fotografias tiradas ao cargueiro Vlora tornaram-se o símbolo da crise dos refugiados (Luca Turi/WikimediaCommons)

Ora, não são refugiados da II Guerra, nem sírios, nem libaneses. Não estão a tentar chegar nem à América do Sul, nem ao norte de África. Nem a foto foi tirada durante a guerra. Aquele barco é um cargueiro conhecido pelo nome Vlora. Construída em 1960, a embarcação ficou, aliás, conhecida por ter transportado mais de 20 mil refugiados albaneses até ao porto de Bari, no sul de Itália, na madrugada de 8 de agosto de 1991. As fotografias tornaram-se o símbolo da crise dos refugiados e foram publicadas, no dia seguinte, em jornais como o The New York Times.

Outra grande onda de imigrantes albaneses invadiu a costa italiana do Adriático esta quinta-feira em busca de um refúgio económico“, lia-se na notícia publicada a 9 de agosto de 1991.

Na sequência da queda do comunismo na Albânia, nos anos 90, e da crise económica que se seguiu, milhares de albaneses quiseram fugir à falta de alimentos e à agitação política e social que se sentia no país. Muitos fugiram para a Grécia, outros para a ex-Jugoslávia. Mas no dia 7 de agosto, o cargueiro Vlora, vindo de Cuba com uma carga de açúcar, atracou na cidade albanesa de Durrës, não só para descarregar, mas para fazer uma série de reparações. Enquanto isso, numa tentativa de deixar o país, milhares de pessoas aproveitaram para subir ao barco.

Mais de 20 mil albaneses entraram na embarcação. Incapaz de fazer com que abandonassem o navio, o capitão Milaqi não teve outra opção senão seguir a rota estipulada. Na madrugada de 8 de agosto, o Vlora chegou ao porto de Brindisi — o destino previsto — já com graves danos devido ao peso excessivo. Ao aproximar-se de Brindisi, o capitão Milaqi foi avisado de que a população daquela cidade não queria que o barco atracasse ali e optou por navegar mais 60 quilómetros, até Bari.

Quando Vlora chegou a Bari, o governo italiano já sabia o que tinha acontecido em Brindisi e tentou bloquear a entrada da embarcação. Mas devido às avarias que o barco havia sofrido e ao facto de aqueles albaneses estarem há várias horas sem comer ou beber, havendo até feridos a bordo, o capitão recusou voltar para trás e o Vlora acabaria por atracar num porto mais afastado do centro da cidade de Bari. As fotografias que têm vindo a ser partilhadas foram captadas neste momento.

Do governo chegou a ordem de manter os albaneses no porto e enviá-los de volta nos dias seguintes. “A maioria dos albaneses foram levados para um estádio de futebol, de onde tentaram fugir na noite desta quinta-feira, numa tentativa de ultrapassar o cordão policial”, lia-se na notícia do The New York Times do dia seguinte. Embora o governo tivesse decidido fechar as portas do estádio, houve mesmo quem tivesse conseguido fugir. Alguns conseguiram ficar em Itália — nunca se apurou o número ao certo —, mas a maioria foi levada de volta para a Albânia, ao engano: disseram-lhes que iam de barco para outro destino, em Itália.

Além de serem partilhadas por utilizadores no Facebook, um dirigente local do Mouvement Réformateur (“Movimento Reformador”, em português), um partido de centro-direita belga, partilhou estas imagens com a legenda: “O PS [Partido Socialista da Bélgica] está salvo, os novos eleitores chegaram”.

A publicação foi de tal forma polémica que os administradores da página viram-se obrigados a retirar a publicação e levou o partido a emitir um comunicado, em que garantia que “não aprova este tipo de mensagens, de forma alguma!”. O dirigente acabaria por pedir a demissão.

Conclusão

A imagem tem vindo a ser partilhada e interpretada de várias formas. Há utilizadores que garantem que se tratam de refugiados europeus a chegar ao norte de África — por vezes, à América do Sul. Noutros casos, é partilhada como se tratando de uma imagem atual de refugiados a tentar chegar a países europeus — nalguns casos, referem-se às pessoas que aparecem como sírios, outras vezes como libaneses.

Com tantas interpretações, as fotografias já foram usadas para defender quer opiniões anti-imigração quer pró-imigração e, assim, a publicação já ultrapassou, só num único post, as cem mil partilhas. Mas, na verdade, aquelas pessoas são refugiados albaneses a chegar ao porto de Bari, em Itália, em agosto de 1991.

Assim, segundo a classificação do Observador, este conteúdo é:

Errado

No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:

FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

Nota: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

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