Quando lavar é terapêutico
Não percebi ainda se este prazer recente que retiro na realização de tarefas domésticas se inscreve naquela máxima que diz que “quem nasce para lagartixa nunca chega a jacaré” (e eu, assim sendo, estou condenada a não passar de um pequeno réptil inofensivo), ou se é algo mais profundo, enraizado numa educação que veio finalmente ao de cima, e que me talhou para retirar prazer de fazer acontecer com as próprias mãos, como se só assim a valorização fosse plena. |
Vamos lá ver: se estivesse a nadar em dinheiro, duvido que esta questão se pusesse, sequer. Quem, no seu juízo perfeito, se põe a fazer uma limpeza de obra se tiver massa para esbanjar à grande e à francesa? Assim de repente não estou a imaginar um Champalimaud de joelhos no chão a esfregar com vigor um trapo com lixívia no soalho, só para sentir o real prazer da obra feita. Ou mesmo eu, de vulgar apelido Santos, se pudesse escolher entre estar estendida entre dois coqueiros nas Maldivas ou a lavar retretes, também julgo não ter dúvidas de qual seria a minha escolha. |
Concordamos, então, que tudo começa com uma necessidade: a de poupar umas coroas, já que a obra a que nos propusemos quando comprámos um monte no Alentejo era suposto ter durado dois meses e já vai em sete, e sobre o resvalo financeiro nem vos vou falar porque não é elegante tocar nesses temas (e porque me dá azia, sobretudo). |
Mas a verdade, ainda que tudo parta da falta de liquidez, é que me tem sido prazeroso limpar, lavar, pintar, remodelar, forrar, arrumar. Tenho os dedos das mãos queimados, ásperos como lixa, e há qualquer coisa de orgulho sempre que o digo ou, como agora, quando o escrevo. O inesquecível Caco Antibes, do memorável “Sai de Baixo”, se me ouvisse ou lesse, diria com um revirar enojado de olhos um “tenho horror a pobre” ou “pobre fazendo pobrice”. |
Compreendo. Até porque eu nunca fui esse tipo de pessoa. Sabem aquelas almas que olham para um objeto bonito e a primeira coisa que conseguem dizer é: “Ui, isso para limpar…” Pois bem, nunca pensei nisso. Até chegar a esta idade, ter deixado de ter empregada, e ter passado a ser eu a fazer. Não me tornei maníaca da limpeza (muuuito longe disso), mas – lá está – dou por mim feliz por algo estar lavado e ter sido eu a fazê-lo. |
A limpeza depois de uma obra consegue ser frustrante: uma pessoa limpa, fica satisfeita com o resultado, e quando pisca os olhos duas vezes já há pó fininho por todo o lado outra vez. Parece que o diabo se entretém a soprar sujidade para cima de tudo aquilo que laboriosamente limpámos, num jogo de paciência em que o demo tende a levar a melhor. Nas últimas duas semanas, já terei lavado o chão de salas e quartos e casas de banho umas dez vezes, e o aspeto continua a ser o de um chão pouco limpo. |
Ainda assim, persisto. E – o que é verdadeiramente assustador – retiro real satisfação disso. Disso e de outras coisas. Por exemplo: houve dois fins-de-semana em que nós e os nossos filhos, a namorada de um dos filhos, e a minha mãe, viemos para o monte pintar portas. A obra nunca mais andava para a frente e nós decidimos vir “dar uma lição” aos homens. Foi um fim-de-semana duro, em que as portas pareciam beber a tinta como um bêbado numa taberna e, por mais que tentássemos, nunca mais atingiam o tom de branco que tínhamos desejado. Pior: como somos uns amadores e uns precipitadinhos do pior, não protegemos o chão. Nada de plásticos a revestir, ou jornais (como nos bons velhos tempos) ou fitas adesivas, sequer. Nada. O resultado foi catastrófico: não só as portas ficaram mal pintadas (como se nós todos tivéssemos 3 anos e falta de motricidade fina), como a tijoleira do chão passou a ter gravuras rupestres por todo o lado.
Os homens devem ter-se rido, quando entraram em casa na segunda-feira seguinte. “Otários, deviam achar que chegavam aqui e isto era um passeio no parque. Agora sempre queremos ver como é que vão limpar esta brincadeira.” |
Não foi fácil, posso garantir. Tentei com dois produtos até ter encontrado um químico que me corroeu duas escovas, os dedos, mas fez desaparecer (à custa de muito vergar de mola) todos os nacos de tinta espalhados por quase 300 metros quadrados de área coberta. |
Todos os dias há o que fazer, por aqui. Estamos cá há duas semanas e já fizemos muito, sabendo, porém, que ainda há tanto por fazer. Mas até para os miúdos tem sido pedagógico e, mais do que isso, uma espécie de cimento-cola na nossa relação. Por exemplo, no fim-de-semana foi preciso acartar móveis de um sítio para o outro, tirá-los de uma arrecadação improvisada onde centenas de aranhas e outros bichos decidiram fazer morada. Ficará para sempre na memória, o carro do pai a desbravar o terreno carregado de mobília acabada de alombar, e um dos miúdos mais velhos com os pés de fora da janela, aos gritos, a dizer que havia uma iguana dentro do carro. Não era, naturalmente, uma iguana. Mas, já que começámos o texto com a alusão a lagartixas e a jacarés, posso dizer-vos que aquele bicho tinha um tamanho já mais próximo do jacaré – e creio que ainda estará dentro do carro, algures. Que São Cristóvão, padroeiro dos condutores, e santo que deu nome à aldeia onde agora também vivemos, nos ajude quando formos a conduzir e dermos de caras com o lagarto. |
Há qualquer coisa de ancestral nisto de construir em comunidade. Remete-nos, provavelmente, para um tempo que nos está inscrito (ainda) nos genes, em que a união fazia efetivamente a força, sobretudo quando o inimigo espreitava sob a forma de animal selvagem. Talvez esteja a ser lírica, imaginando comparações com antepassados seminus e de lança em riste, mas a verdade é que sempre que estamos todos a montar um móvel que era da minha avó, a limpar terreno, a regar árvores, ou a guinchar em conjunto por causa de uma aranha king size, parece que ficamos mais próximos do que nunca. Quanto mais não seja pelas histórias que teremos para contar depois. Porque uma casa nunca é só uma casa, é tudo o que ela representou de sacrifício, de diversão, de partilha. |
Ainda sobre as limpezas, e esta pessoa em que pareço estar a tornar-me, acho que também há muito de expurga nisto. Quando limpo, é como se expurgasse o mal. Dito assim parece que me passei dos carretos e preciso de intervenção especializada (de um exorcista, talvez), mas não é bem isso. Não é bem “o mal” no sentido de “a besta”, lúcifer, belzebu. É talvez o mal de alma, o mal de tudo o que queríamos fazer e não fazemos, de tudo o que queríamos controlar e não controlamos (nomeadamente a conclusão destas benditas obras). É como se esfregar me devolvesse um qualquer controlo que preciso sentir, ainda para mais porque é uma ação visível e de retorno imediato: está sujo, fica limpo; cheira mal, passa a cheirar bem; está feio, fica bonito. Depende de mim, e eu consigo. |
Estou a fazer sentido, ou já há alguém a chamar o INEM? |
Talvez não seja mais do que a história de ter nascido para lagartixa. Apenas e só. Calhando, se andássemos todos a desbravar as redondezas em moto 4, ou montando cavalos na Comporta enquanto alguém tratava de tudo o que há aqui para fazer, era ainda melhor. Só prazer, sem sacrifício. Também aprecio, não me interpretem mal. Mas, neste momento, o esforço faz parte do gozo que tudo isto me dá. Vidas. |
(Entretanto, esta newsletter vai de férias – ou de limpezas – e estará de regresso a 2 de Setembro. Boas férias!) |
Vale a Pena… |
… cavalgar na areia. Já que falei nisso no texto, por que não? Um passeio de cavalo em família na areia, mesmo ali junto ao mar, na Comporta. A empresa chama-se Cavalos na Areia. Nunca fiz, mas deve ser ótimo. Nesta altura do ano, também é caro: 110€ por pessoa, um passeio de 1h30. Cavalguem, filhos, cavalguem. Eu continuarei a montar vassouras, pelo menos nos tempos mais próximos. |
… subscrever a Caixa d’Histórias. O conceito é muito giro: Por 29,95€ podem subscrever este serviço que vos faz chegar a casa uma caixa com 3 livros surpresa. Há duas faixas etárias contempladas: dos 4 aos 6 anos e dos 7 aos 9. A ideia é promover e estimular os hábitos de leitura, tudo com o elemento surpresa, porque nunca se sabe que livros virão em cada mês dentro de cada caixa. |
… assistir à peça A Bela Adormecida, no Jardim Botânico Tropical de Belém.
Não há quem não conheça a história mas ela continua a exercer um fascínio irresistível em miúdos e graúdos. A história de Aurora, jovem princesa que, por despeito de uma feiticeira, vê o seu futuro ser amaldiçoado. Salva pela sabedoria de uma fada, Aurora cresce feliz, sob a proteção de todos aqueles que a amam. Só que o rancor da velha feiticeira consegue ser mais forte e, ao completar dezasseis anos, Aurora é apanhada na terrível maldição. Como poderá ser salva, a bela princesa? Que destino estará reservado à maléfica feiticeira? Poderá o bem vencer o mal?
Jardim Botânico Tropical de Belém, 30 Julho, 11h e 15h. 10€ |
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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