O primeiro filho é como um caderno novo
Há muito tempo que não me dava com pessoas com um primeiro filho. Os meus amigos têm quase todos filhos da idade dos meus, sobretudo dos mais velhos, isto é, entre os 14 e os 21 anos, e partilhamos as mesmas preocupações adaptadas ao que estamos a viver: adolescência, saídas à noite, consumos, perigos, entradas na universidade, carta de condução, e por aí fora. Mas, entretanto, uns amigos tiveram um bebé. E é engraçado ver como nós, os decanos, olhamos para as ansiedades deles com um olhar que procura não ser de menosprezo, porque, se formos justos e puxarmos pela memória, vamos reconhecer que já fomos mais ou menos assim, mas que, por vezes, acaba a ser um nadinha altivo (ainda que não queiramos mesmo nada). |
Os pais de um primeiro filho estão empenhados em fazer tudo bem. Como quando temos um caderno novo e afinamos a letra, usamos as canetas coloridas, sublinhamos com as fluorescentes, e revemos a beleza do que fizemos com um indisfarçável orgulho. É compreensível. A sensação que se tem quando nasce um primeiro filho é a de que se tem um ser humano novinho em folha nas mãos. Podemos arruiná-lo ou fazer dele uma pessoa como deve ser. É um poder que nos foi investido e, se formos responsáveis e sãos da cabeça, vamos mesmo querer dar o nosso melhor. |
Lembro-me quando o Manel nasceu, há 21 anos. Tudo tinha de ser perfeito. Tudo tinha sido estudado. Logo para nos trocar as voltas, o miúdo berrava dia e noite. Ou seja, de certeza que não estaríamos a fazer alguma coisa bem. Pior: pelos decibéis produzidos por um corpo tão pequeno, só podíamos mesmo estar a fazer tudo mal. Bolas! Logo no primeiro, eis-nos a falhar à grande. |
Com um primeiro filho inconsolável em mãos, podem imaginar o que tive de ouvir: que não tinha leite suficiente, que o meu leite era fraco, que o bebé tinha colo a mais, colo a menos, devia estar demasiado agasalhado, teria frio de certeza, que havia barulho a mais na casa, barulho a menos, luz a mais no quarto, luz a menos, que a culpa devia ser de estarmos tão stressados, e que essas coisas passam para os bebés. Devo ter ouvido outras coisas, mas felizmente o tempo também ajuda a esquecer. Houve uma altura em que odiava pessoas, todas as pessoas e as suas teorias, e só queria poder cuidar do meu bebé à minha maneira, que – que diabo! – não havia de estar tão errada assim! |
Antes de ter outros filhos, apostei as fichas todas naquele. Afinal, era a minha primeira obra, e eu estava determinada em que fosse prima. Assim, o Manel foi submetido a toda a sorte de estímulos: teatros, circos, espetáculos imersivos de luz e cor, ginásios e inglês para bebés, musicais, museus, cenas-macacas-com-os-pais-em-roda-tipo-cena-freak, yoga para bebés, oficinas de expressão plástica, oficinas de expressão dramática… eu sei lá. Mais do que um filho, ele era um projeto, um ofício, uma missão. |
Depois vieram os outros. E, com eles, chegou a relativização da parentalidade. Não é que nos tenhamos tornado negligentes (não iria tão longe na minha autocrítica), mas relaxámos. Já pensei muito sobre isto e acho que há aqui vários fatores que justificam que não se invista tanto nos outros como se investe num primeiro filho. |
Por um lado, ao segundo já não estamos a “brincar aos pais e às mães” (e ao terceiro e quarto muito menos). A novidade foi gira, quisemos experimentar tudo, mas depois já não é novidade, e estamos cansados, e em vez de malharmos com os ossos numa oficina criativa às nove da manhã, só queremos mesmo é dormir mais dez minutos que seja. |
Por outro lado, há a questão financeira. Uma coisa é experimentar com um filho toda a espécie de programa cultural, pedagógico, sensorial e coiso, outra coisa é levar dois. É caro. Vai daí, os pais pensam: terá feito mesmo assim tanta diferença? Terá sido assim tão relevante do ponto de vista estrutural? Calhando, não. |
O mesmo acontece com todas as regras e com aquilo que começámos por achar que era verdadeiramente imprescindível. Vou dar um exemplo (hilariante) que aconteceu connosco. Certa vez, deixámos o nosso primeiro filho em casa da minha sogra. A recomendação era simples: tinha de usar aquele creme específico na pele do bebé. Quando ela perguntou se não podia ser um que tinha lá em casa, e que se compra em supermercados, saltaram-nos os olhos das órbitas. O quê??? Nunca-na-vida! A exclamação era como se a pobre senhora nos tivesse sugerido que aplicássemos lixívia na criança. |
Hoje, acho deliciosa esta candura (e tenebrosa esta sobranceria para com a minha sogra). Porque com os outros filhos já qualquer creme servia, até podia não se pôr creme, até podiam não tomar banho. |
Estou a escrever e a lembrar-me das roupas! A roupa do primeiro recém-nascido tinha de ser de cambraia! Óbvio! Lavada com detergente próprio para roupa de recém-nascido. Naturalmente. Ao quarto filho? Qualquer coisa servia. O mesmo com as esterilizações. Jamais o primeiro bebeu de um biberão que não tivesse sido rigorosamente esterilizado. Comprámos uma máquina que nos custou uma fortuna, onde enfiávamos biberões, tetinas e chuchas para que fossem exterminados todos os vírus e bactérias potencialmente nocivos para o nosso tesouro. O quarto filho? Estou segura de que terá partilhado chupetas com o cão! Esterilizar? Não me lixem! |
É este olhar que nós, os pais de filhos crescidos, não conseguimos não lançar aos pais recentes (e olhem que tentamos muito). Foi um olhar parecido, aquele com que fomos brindados pelos decanos da nossa altura. É uma espécie de ternura misturada com condescendência — e até alguma piedade. Qualquer coisa tipo: “Perdoai-lhes, Senhor, que eles não fazem ideia de que isto a que estão a dar uma importância capital não tem, em bom rigor, importância nenhuma”. |
Claro que nós sabemos que, para eles — que querem fazer o bem, o certo, o perfeito —, tudo é vital. A cama, os lençóis, o intercomunicador, o esterilizador, o baloiço automático, as cambraias, a sesta em total serenidade, o creme xpto, o banho, a hora de deitar. Olhamos para aquelas olheiras e sabemos o que elas representam, o esforço sobre-humano que aquela gente está a empreender no sentido de construir a melhor criatura que já habitou o planeta. E mais do que dizer alguma coisa, mais do que desvalorizar esse comovente empenho, devemos apenas ouvir e abraçar, se for caso disso, e esperar que, um dia, sejam eles a lançar, a uns novatos quaisquer, esse mesmíssimo olhar. |
Vale a Pena… |
… Ir à Quinta Pedagógica dos Olivais, em Lisboa
Sim, é um clássico. Mas merece sempre uma visita. Há cabras, vacas, patos, porcos, galinhas. É o campo dentro da cidade e permite aos miúdos citadinos saber que os ovos e o leite, por exemplo, não nascem nas prateleiras do supermercado. Podem sempre aproveitar para participar na oficina Aromas e Sabores, onde pais e filhos são convidados a preparar receitas da doçaria regional portuguesa, associadas ao ciclo anual de festividades rurais, ficando a conhecer os ingredientes, os seus aromas e texturas e… os seus sabores.
Entrada gratuita. Até ao final de setembro, fecha todos os dias às 19h00.
Rua Cidade de Lobito, Olivais, Lisboa. Tel.: 21 855 0930 |
… Dar um mergulho na Piscina Oceânica de Oeiras
Estamos no Verão, está calor, a miudagem adora piscinas e é uma excelente maneira de os manter entretidos. Esta piscina é alimentada com água do mar e tem quatro pranchas de salto para os mais destemidos. Na época alta (agora), os adultos pagam 20 euros e os miúdos (entre os 4 e os 11 anos) pagam 15.
Todos os dias, das 9h30 às 19h30 |
… Assistir ao Festival do Panda, no Porto
Já dei para esse peditório, estou livre, graças a Deus. Não me interpretem mal. Gosto do Panda, as músicas costumam ser boas, mas quatro filhos depois e já me sinto vacinada para tudo o que é evento infantil. Digamos que já tive a minha dose. Bom, mas se há por aí pais que ainda não deram tudo, este é o vosso momento de fazerem um brilharete. Diria que é quase impossível passar pela parentalidade, pelo menos nas duas maiores cidades do país, sem ir, nem que seja uma só vez, a um Festival do Panda.
Para celebrar os 15 anos, o Festival anda a circular por Portugal, divertindo a pequenada. O Panda procura novos talentos e decide convidar alguns amigos a participar num grande concurso de talentos. E é assim que o festival se enche de música, dança e alegria. Força aí, pais!
15 e 16 Julho, Estádio Dr. José Vieira de Carvalho, Maia. Bilhete individual: 21 euros.
Sessões: Sábado, dia 15, às 15h30. Domingo, dia 16, às 9h00 e às 15h30
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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