A questão da devolução de património material às antigas colónias europeias necessita ser tratada com prudência e bom-senso, evitando deixar arrastar o mérito do debate para a polarização político-ideológica que ameaça “deitar fora o bebé com a água do banho”, como é tão comum dizer-se.

De modo evidente, a devolução da arte aos seus países de origem convoca a “questão colonial”. Em primeiro lugar, esta padece de um problema epistemológico de confusão entre História e Memória. A História diz respeito aos factos, a um discurso que se quer científico, rigoroso e vazio de “estados de alma” sobre os acontecimentos. Apesar disso, a produção historiográfica tem sido produzida numa esteira que não é neutra, mas que antes enfatiza o lugar etnocêntrico dos vencedores e dos europeus como produtores de história escrita. Neste contexto de produção, a História Universal tem um lugar de referência nuclear, a Europa, a partir do qual se produziu o Homem Universal: heterossexual, branco e cristão. Como qualquer disciplina social, a História é território de disputa e ideologia, mas não deve adentrar pelas areias movediças da memória. Para autores como Halbwachs, Rousso ou Triaud, a memória tem uma dimensão coletiva, partilhada, selecionada, tendo por atributo imediato a garantia da continuidade do tempo e a resistência às ruturas, formando um elemento essencial da identidade, razão pela qual é um ativo político, enquanto seleção de acontecimentos por parte de um grupo dominante, fabrincando um “passado composto”.

Ora, a propósito do passado colonial europeu, o que está em disputa não é a História, os factos, mas a memória daqueles. Os factos são que (i) a ocupação de territórios não foi uma invenção colonial, mas antes é a própria natureza humana na sua produção de territórios políticos, desde cidades-estado a impérios; tal não invalida que o processo colonial se tenha afirmado – depois de um período marcado pelas trocas comerciais e pequenas feitorias – por uma presença efetiva, de ocupação de território, (ii) que a escravatura não foi uma invenção europeia em África, sendo prática ancestral humana, inclusive nos territórios africanos, do qual, efetivamente, os europeus se aproveitaram, mercantilizando pessoas, com aval da Igreja Católica (ao determinar que os africanos eram desprovidos de alma, logo do domínio das coisas e animais), que embora fosse prática comum à luz da época, a partir do século XVIII foi-se tornando um problema diante do crescimento de uma consciência jusnaturalista de dignidade humana, (iii) que o processo colonial produziu um ecossistema chamado por Quijano de «colonialidade», em que mesmo após as independências desses territórios (com enfoque na América Latina), as lógicas coloniais prevaleceram, (iv) que a ocupação colonial produziu alterações profundas nos territórios, pela consolidação de um sistema de racialização, de exploração e saque, alterações culturais e religiosas profundas, com perseguição às práticas religiosas nativas, bem como pela urbanização dos espaços com saneamento básico, hospitais, escolas, ferrovias e outras infraestruturas que dotaram os países de ferramentas úteis.

É, pois, no plano da memória que se disputa o passado colonial, entre uma narrativa de epopeia civilizadora dos selvagens sem História, e uma de opressão e dominação nefasta em absoluto. Trata-se, assim, de uma disputa entre memórias de grupos humanos. Entre ambas estão os factos.

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A devolução de património cultural

Neste capítulo, o problema volta a ser epistemológico em torno da descolonização. Enquanto na ótica ocidental, a descolonização terminou com o abandono dos territórios, na perspetiva da Teoria Crítica o processo permaneceu no plano material através da exploração empresarial dos recursos africanos e no âmbito da cultura, com um desapossar da dignidade africana, tanto no plano nativo quanto na diáspora. É sobretudo nesta última que o processo de descolonização é reivindicado. Enquanto no plano das sociedades africanas a repulsa colonial é pouco expressiva, na diáspora este processo tornou-se mais evidente, com uma reivindicação por uma revisão da História para que esta contenha a memória dos oprimidos, abrindo uma disputa sobre estátuas que invocam figuras com um passado ligado à posse e/ou comércio de escravos, sobre manuais escolares, e sobre a necessidade de dar voz aos grupos sociais historicamente oprimidos.

Nesse processo de descolonização cultural entra a política de devolução da arte aos seus países de origem. De acordo com um estudo realizado por Bénédicte Savoy e a Felwine Sarr, 90% da arte africana estará fora do continente. Este facto significa que o continente está desapossado da sua memória histórica, cultural e artística e, assim, sem acesso à sua própria produção historiográfica independente.

O dever ético da restituição cultural surgiu numa convenção da UNESCO de 1970, cuja ratificação tem sido sucessivamente atrasada por pressão dos museus europeus, que temem perder o seu espólio e, assim, o seu fundamento de existir. À margem da preocupação com a sobrevivência dos museus de património colonial – questão que deve ser marginal, atendendo à natureza do problema – convoca-se, necessariamente, a questão de avaliação das condições para acolhimento destas peças. Tal questão não é de somenos importância, mas permite uma inversão das políticas museológicas, convocando uma colaboração internacional no sentido de dotar os países de origem de tais peças de condições para preservação, conservação, restauração e disponibilização ao público, sob, por exemplo, salvaguarda de período de exposição nos países que os receberam, ainda que indevidamente, mas que os preservaram até ao presente. Mas é preciso, de igual modo, que tais países queiram ou solicitem receber tais peças.

Portanto, a devolução não deve implicar, isso é consensual, uma dimensão de devolução arbitrária, mas antes garantir a salvaguarda do espólio cultural, garantindo a sua continuidade como património cultural dos seus países de origem e da humanidade.

De uma ótica da sociedade civil, compreender o alcance deste processo pode passar por imaginar um cenário em que as invasões francesas fossem responsáveis pelo saque de 90% da arte portuguesa. Será que Portugal e os portugueses não iriam querer a sua devolução?

Posto isto, é importante desligar a política de devolução da disputa sobre a memória colonial, assumindo-a como parte da diplomacia mundial e do reconhecimento de que sejam os sarcófagos egípcios ou as tábuas de adivinhação de Ifá, são objetos que afirmam a identidade dos seus países de origem, e que é naqueles, com a devida garantia de preservação, que devem estar, sob pena de continuarmos a esvaziar de sentido tais peças e deter múmias como parte de coleções privadas, violando a dignidade dos objetos e pessoas.

Por fim, dado o caldo histórico e ideológico que este assunto arrasta, não deve ser incluído num contexto de pedido de desculpas ou ato de contrição histórica colonial, de modo a retirar-lhe um peso acrescido de natureza político-ideológica com vocação para arrastar o tema para as guerras culturais em torno da memória histórica, levando a rejeição popular e partidária onde de contrário poderia existir concordância.