Longe vão os tempos do famoso cartoon da New Yorker onde se lia “on the internet nobody knows you’re a dog”. A realidade de hoje é muito diferente: não só é possível saber quem é o internauta, como, entre outros detalhes, quem são os seus familiares e amigos, onde vive e onde trabalha, a sua música favorita, os seus interesses e preferências, onde passou e fez pagamentos. Mas além da perda de anonimato, visões mais ou menos catastrofistas salientam, entre outros, os riscos da crescente perda de autonomia de quem “vive” intensamente o digital. São os casos, entre outros, do austríaco Max Screhms, ativista e fundador da NOYB (None Of Your Business), que em 2018 convidei para palestrar numa conferência da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, e que ganhou notoriedade com a litigância – bem sucedida – contra a exportação de dados pessoais da Europa para os EUA, levada a cabo pelo Facebook; ou de Shoshana Zuboff, cuja obra mais recente, “Capitalismo de vigilância”, em qualquer caso, mais se assemelha a uma crítica ao capitalismo do que propriamente ao problema da vigilância.

Parte da desconfiança que legitimamente formamos face ao digital, e recorrendo a uma descrição quiçá exageradamente simples, reside na opacidade da estrutura e dos participantes responsáveis pela mediação entre o internauta e a informação que procura ou, dito de outra forma, na ausência de conhecimento e de controlo sobre o ambiente onde o internauta compra, lê, forma a sua opinião, discute ideias, enfim, passa uma boa parte do seu dia-a-dia. Nem é necessário recorrer a um episódio da série Black Mirror para explicar o que está em causa, já que a realidade, em algumas situações, consegue ser bastante mais criativa do que a própria ficção, como ocorreu  com o caso Cambridge Analytics: através do preenchimento de um inquérito ou da realização de um “teste psicológico”, proposto apenas a eleitores criteriosamente selecionados nas respetivas páginas de Facebook, milhares de pessoas, sem o saberem, transmitiram informação sobre si a terceiros desconhecidos que, posteriormente, a utilizaram para influenciar as posições políticas dos inquiridos e de terceiros que com eles se relacionavam. Já uns anos antes, em 2013, as revelações de Edward Snowden haviam dado a conhecer ao mundo métodos semelhantes para a atuação dos serviços de informação dos EUA, mas também de alguns países europeus.

Mas engane-se quem pensar que os riscos do digital se esgotam nas redes sociais e na Internet em sentido estrito. Basta pensar nas consequências do sistema de créditos sociais Chinês, implementado, por exemplo, em Rongcheng, que penaliza o cidadão que assuma comportamentos tidos como socialmente negativos, como serão, entre outros, a passagem de um sinal vermelho, fumar na rua, ouvir música demasiado alto no comboio, ou escrever sobre censura e corrupção do governo. O cidadão prevaricador passa a ter um rating social negativo, que pode conduzir a que não possa, por exemplo, marcar um bilhete de avião ou de comboio, comprar uma casa ou ter acesso a crédito. Não é reconhecida, neste sistema, qualquer via de recurso para o cidadão.  A informação é compilada a partir da combinação de um big brother formado por câmaras de videovigilância, aplicações de inteligência artificial com o reconhecimento facial, e feeds de informação diversa, recolhida na internet.

Dir-me-ão que na Europa e nos EUA dificilmente chegaremos a este ponto. Não deixa, contudo, de haver sinais preocupantes, como os que nos são dados pela França, onde o Presidente Macron pretende criar um sistema de identidade digital através do reconhecimento facial, proposta que está a gerar bastante controvérsia. Nos EUA a sociedade civil e a classe política — dos dois lados do espetro partidário — criticam a utilização desta tecnologia na atividade das polícias e na autenticação de identidades. Em Portugal a sociedade civil deverá pensar estes temas, sobretudo se quer proibir estas e outras aplicações tecnológicas, ou se haverá formas de “racionalizar” a sua utilização.

As soluções legislativas tradicionais, sobretudo assentes numa lógica de gestão de riscos, nem sempre são as mais eficazes no seu garantismo, ao que acresce uma impossibilidade fática do legislador em acompanhar, no tempo e no espaço, a evolução da tecnologia em geral. Em todo o caso, a Europa tem-se dedicado bastante a pensar soluções normativas , seja através de legislação da União Europeia como o Regulamento Geral de Proteção de Dados ou de iniciativas mais recentes como a do Conselho da Europa sobre a inteligência artificial. A chamada “auto-regulação”, com maior ou menor participação legislativa, também se assume como uma ferramenta importante, em especial na perspetiva das empresas e dos setores tecnológicos que querem preservar o bom nome, reputação e alimentar a confiança do consumidor. Mas é na sociedade civil, na sua ação de fiscalização, e nas literacias digitais, ou seja, nos comportamentos individuais de cada um, que reside grande parte da salvaguarda face aos perigos do digital. É fundamental combater a iliteracia digital do cidadão comum que, por exemplo, nunca ouviu falar de uma VPN, ou que acriticamente fornece dados e informação, em troca de serviços tidos como “gratuitos”. Neste campo, a comunicação social tem um papel muito relevante a desempenhar, destacando a esse título, o excelente “The Privacy Project”, do New York Times, com conteúdos atualizados diariamente. Uma sociedade civil informada sobre os riscos do digital fará de todos nós consumidores mais exigentes, mais informados e verdadeiramente livres nas escolhas que fazemos no nosso dia-a-dia.

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