A Literary Review de Fevereiro de 2024 confirma a actualidade de Hannah Arendt, dando notícia de mais um livro sobre a pensadora política: We Are Free To Change The World: Hannah Arendt’s Lessons in Love and Disobedience, de Lindsey Stonebridge, professora de Literatura, Humanidades e Direitos Humanos na Universidade de Londres. A recensão de Stuart Jeffries, intitulada “Anatomist of Evil”, diz que Stonebridge acrescenta novidade à já longa história de Arendt e da “banalidade do Mal”.

A banalidade do Mal

Banal e banalidade não são coisas que se associem ao Mal – ao Mal absoluto, ao Mal com maiúscula, obra do Príncipe das Trevas, do Inimigo de Deus e do Homem – ou mesmo ao mal político. Os monstros que, no século XX, orquestraram ou executaram as grandes hecatombes do comunismo e do hitlerismo, por exemplo, nada teriam de banal.

Por isso, quando Eichmann em Jerusalém – A banalidade do mal saiu em 1963, o choque perante a proposição de Hannah Arendt sobre um dos principais executores da “solução final” hitleriana foi geral. Tanto para os que, com Rousseau e outros optimistas, consideravam o Homem um ser “naturalmente bom”, como até para os tributários do pessimismo antropológico que, com a Bíblia, Maquiavel, Hobbes, De Maistre, consideravam o mal uma coisa inerente ao Homem:

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“Seria reconfortante acreditar que Eichmann era um monstro”, escrevia Arendt, mas, a verdade é que ele, e outros como ele, eram “terrivelmente normais”.  O totalitarismo burocratizava e banalizava o mal, anestesiava as consciências, suspendia o julgamento moral, ético, pessoal, manipulava palavras e conceitos, instituindo como bem supremo a obediência ao chefe ou ao partido, detentores e administradores do ideal.

Em Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt fazia o relato ensaístico do julgamento de um dos carrascos do “povo escolhido”, que começara em Abril de 1961 na capital histórica de Israel.

Tal como outros altos funcionários do regime nazi, Eichmann tinha escapado para a Argentina peronista, onde encontrara acolhimento, e onde um comando israelita o descobrira e o raptara em Maio de 1960. Israel usava o julgamento para lembrar ao mundo a perseguição que tinham sofrido os judeus europeus nos países ocupados pela Alemanha nazi.

Hannah (Johannah) Arendt era uma judia alemã, nascida em Linden, em 14 de Outubro de 1906. Tinha vivido em Königsberg (hoje Kaliningrado, na Rússia), estudado em Berlim e em Marburgo e feito o doutoramento em Heidelberg, em 1929, com uma tese sobre o conceito de Amor em Santo Agostinho, Der Liebesbegriff bei Augustin: Versuch einer philosophischen Interpretation, orientada por Karl Jaspers. Em Marburgo fora aluna e amante de Martin Heidegger.

Em 1933, com a subida de Hitler ao poder e depois de uma breve detenção pela Gestapo, Hannah saíra da Alemanha, passara pela Checoslováquia e pela Suíça e fixara-se em Paris. A seguir à invasão e ocupação da França, no Verão de 1940, partira para os Estados Unidos via Portugal, o Portugal neutral de Salazar. Viveu em Lisboa, com o segundo marido, Heinrich Blücher, entre Janeiro e Maio de 1941, na Rua da Sociedade Farmacêutica, nº 6.

Arendt rejeitaria expressamente o atributo de “filósofa” a propósito do seu livro The Human Condition (1958).  Em 1951 escrevera um clássico sobre as Origens do totalitarismo, mas seria o seu polémico ensaio-reportagem sobre o julgamento de Eichmann para a New Yorker, publicado em livro em 1963, que lhe trariam a fama.

Lera e reflectira longamente sobre a Filosofia e a filosofia política ocidental: de Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, Maquiavel, Hobbes e Kant até aos modernos pensadores políticos Marx, Trotsky e Mussolini. Além de Heidegger e Jaspers, tivera como mestres um leque diversificado de pensadores, do teólogo católico Romano Guardini ao luterano Paul Tillich. De Heidegger, ficara-lhe o bom e mau da relação pessoal e as afinidades de um pensamento errante, interrogante, insatisfeito, crítico.

Sabia o que era o Mal, sofrera na pele o mal político e estudara nas Origens do totalitarismo o comunismo e o nazismo. Mas quando apareceu Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil foi duramente atacada por Jacob Robinson na revista Facts. Robinson era um dos assistentes de Gideon Hausner, o acusador público do processo Eichmann, e chamou a Arendt “inimiga do povo judeu”. A partir daí, ficaria sob suspeita. Segundo Robinson, ao “banalizar” o mal do burocrata do Extermínio, que se justificava com o “cumprimento de ordens” e a “obediência devida”, Arendt estava a desculpar, a explicar, a atenuar, a barbaridade do Holocausto.

Eichmann fora interrogado preliminarmente e sujeito a um processo público integralmente filmado. O que perturbava era que, tal como Arendt, o primeiro interrogador de Eichmann, Avner Less, também vira nele, não o monstro que esperava, mas um “homem comum”, um alemão nascido em 1906, inscrito no NSDAP em 1932, funcionário de carreira, nomeado responsável do RSHA (Reichssicherheitshauptamt – Serviço Central de Segurança do Reich) e “encarregado dos assuntos judaicos e das evacuações”.

Os totalitarismos

A partir da famosa conferência de Wannsee, a da “solução final”, o burocrata Eichmann ficaria responsável pela logística das “evacuações”, isto é, das deportações em massa. Só podia ser um monstro. Monstros como os que adivinhávamos entre alguns chefes católicos e protestantes nas guerras religiosas, entre os jacobinos e nas polícias políticas da Reacção, entre os revolucionários do século XIX, entre bolcheviques e anti-bolcheviques na guerra-civil russa, e aqui ao lado, em Espanha, também na guerra-civil. E, evidentemente, entre nazis e comunistas, na Gestapo e nas Tcheckas.  Porém, Hannah Arendt, por mais que quisesse e por mais reconfortante que tal pudesse ser, não conseguira descobrir em Eichmann nada de “diabólico” ou de “demoníaco”.  Antes vira no logístico da “Solução Final” a “banalidade do mal”.

A engrenagem totalitária criava nos seus executivos e operacionais sentimentos de obediência devida que apagavam qualquer outro juízo de valor, religioso ou moral. Hans Frank, o jurista do Reich, ilustrava-o bem quando aconselhava: “Agi sempre de tal modo que, se o Führer soubesse das vossas acções, as aprovaria”. Arendt explicá-lo-ia melhor nas Origens do totalitarismo: os novos totalitarismos criavam – no hitlerismo como no comunismo soviético – um “princípio de obediência total às ordens do chefe, do Partido, da ideologia”.

A origem do totalitarismo, de Arendt, divide-se em três ensaios –Antissemitismo, Imperialismo e Totalitarismo. Arendt inclui o hitlerismo alemão e o comunismo ou o estalinismo soviético nos regimes totalitários, mas não o fascismo mussoliniano. Para a autora de On Revolution, apesar de Mussolini falar em “Estado Totalitário”, o fascismo não fora um verdadeiro totalitarismo, já que a negociação com os poderes estabelecidos – a Monarquia, o Exército, a Burguesia Industrial e, sobretudo, a Igreja Católica – o teria aproximado mais dos autoritarismos nacionais português e espanhol de Salazar e de Franco. “O que prova que a ditadura fascista é, por natureza, não totalitária, é que as condenações políticas do regime foram poucas e leves”, escreve.

Ora o verdadeiro totalitarismo assentava na redução das classes sociais a massas fanatizadas, na destruição sistémica de toda e qualquer lealdade concorrencial, de todo o vestígio de independência perante o chefe e o Partido. Num regime totalitário, o Terror não era um simples meio, mas um pilar do sistema. E o verdadeiro totalitarismo produzia executivos e executores como Eichmann, que, perdido todo o sentido moral, usavam o imperativo do dever kantiano para se defenderem.

A nossa banalidade

Ao fim de uma já longa vida posso dizer que vi muita gente boa ao serviço de causas más e muita gente má ao serviço de causas boas. Talvez porque, na minha vida, nas nossas vidas, não sofremos o verdadeiro totalitarismo, o que elimina a noção de Bem e de Mal, transformando tudo em “obediência devida”. Somos, como sempre repetia Jorge Borges de Macedo, “uma nação muito antiga”, sem as vertigens do grande poder; uma nação onde o cristianismo e a sociedade civil quase sempre temperaram os eventuais excessos do Estado.

Porém, todos sabemos o que são laivos e indícios de totalitarismo, todos sabemos o que é, o que pode hoje ser, a banalidade do Mal, o entorpecimento do pensamento e a comodidade da “obediência devida” a ideologias que se querem dominantes e únicas; a cedência resignada à mediocridade, à simplificação, à perversão dos valores, ao maniqueísmo, aos eufemismos que encobrem e justificam mortes, ao pensamento correcto.

Arendt tinha aquilo a que Kant chamava uma “mente larga”, uma cabeça que, além de brilhante, era abrangente.  E o espírito crítico, livre e de “desobediência devida” da pensadora política de Men in Dark Times revela-se hoje particularmente útil e necessário.  Até para que, nos tempos cinzentos da nossa latitude e na mediocridade insinuante de algumas aparências de bem, possamos pressentir e prevenir alguns caminhos subtis para a banalização do Mal.